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Quadro teórico-conceptual da Educação Intercultural como processo para valorizar a Diversidade Cultural

2.2. O conceito de “Cultura”: uma nova visão

Face ao que ficou anteriormente exposto e, ainda, à emergência da pluralidade cultural no contexto educativo, propomos um novo entendimento do conceito de “cultura”, no sentido antropológico, consequência da introdução desta variável nos problemas da educação65, conferindo-lhe uma atmosfera culturalista (idem, ibidem).

Assim, a diferença de religiões, línguas, artes, técnicas, instrumentos, ideias, entre tantos outros aspectos, torna o mundo diverso66. Esta pluralidade é uma realidade bem presente em muitas escolas portuguesas, pois torna-se hoje frequente a presença de crianças e jovens com experiências de vida muito distintas e origens significativamente diferentes. Quando falamos de educação escolar, referimo-nos, então, a um contexto onde podem coexistir diferenças culturais. O professor tem, por sua vez, de saber lidar com crianças com hábitos de vida que diferem dos valores vigentes, integrando a sua experiência de vida na função específica da escola. Como relembra Peres, “Os fluxos migratórios têm vindo a criar um mosaico de línguas e culturas na escola que, por sua vez, provocam dilemas, tensões e conflitos, exigindo da instituição escolar respostas adequadas às necessidades educativas de todos e de cada grupo.” (2000: 165).

Outro aspecto a reter releva do facto de a igualdade de oportunidades de acesso à educação ter transformado a escola no lugar privilegiado da emergência da Diversidade, o que implica que esta instituição tenha de levar a cabo práticas que se aproximem da realidade discente plural, não esquecendo que “É toda a problemática (ou não será antes a riqueza?) que decorre de, nesta escola, naquela escola, estarem alunos mais ou menos misturados mais

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Não esqueçamos que devemos ter em conta a pluridimensionalidade do acto educativo e, por isso, não se trata, do nosso ponto de vista, de culturalizar os fenómenos educativos, mas enriquecer as perspectivas sociológicas e psicológicas com a dimensão cultural.

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Note-se que esta diversidade é, também, resultado do processo de abertura a outros universos culturais decorrente do estreitamento das relações entre as sociedades.

87 ou menos isolados, de idades diferentes, de meios rurais, de zonas urbanas e suburbanas, de classes abastadas, de bairros de lata, de meios piscatórios, do interior, de rapazes e de raparigas, que dão corpo a muitas tonalidades de arco-íris cultural” (Cortesão e Stöer, 1996: 41).

Urge, portanto, afastarmo-nos de um “daltonismo cultural” (Cortesão e Stöer, ibidem) que impede a visão de outras cores, isto é, de outras diferenças que surgem, muitas vezes, entre “iguais”. Como sublinha Pereira (ibidem: 28), “Pensar a diversidade é interpelar a pluralidade, é interrogar pelo lugar que essa pluralidade implica no contexto de uma educação multicultural. Dialogar com a diversidade é ter a consciência de que o outro não pode ser reduzido à lógica do mesmo, nem transformá-lo em “postal ilustrado” para fruição do turista à procura do exótico. É compreender a necessidade de preservar o outro nas suas diferenças e na sua dignidade como pessoa. É libertar o ouvido para a escuta do outro, no comum e no diferente”.

É exactamente este novo entendimento de cultura que nós propomos. Pode, de facto, existir uma maior ou menor heterogeneidade dos alunos nas salas de aulas, mas em todas elas coexistem diferentes grupos sociais e culturais. Refira-se, porém, que estas diferenças não assentam unicamente em questões linguísticas, raciais, étnicas ou religiosas, mas englobam peculiaridades económicas, sociais, geracionais, sexuais, de estilos de aprendizagem, motivações, interesses…

Não esqueçamos, também, que o próprio corpo docente é composto por pessoas com diferentes culturas, na medida em que apresentam visões distintas da escola, em geral, e do acto educativo, em particular, agindo na prática lectiva de formas diferenciadas.

Em suma, a escola é uma “encrucijada de culturas” (Pérez Gñmez, 1998: 11), na medida em que, mesmo num contexto escolar em que todos os agentes educativos possuam os mesmos referentes linguísticos, étnicos e/ou raciais, a

88 diversidade cultural impõe-se, visto que cada Eu é representante de uma cultura única que é fruto não só da nacionalidade, mas também do meio de onde provém, da classe familiar em que insere, do sexo, da idade, do nível sócio-cultural, das motivações e interesses, do apoio familiar, dos conhecimentos, do desempenho escolar, das capacidades, dos hábitos de trabalho/estudo e do comportamento.

Por isso, corroboramos Geertz quando afirma que “O conceito de cultura que eu defendo, (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.” (1973:15).

Consideradas estas observações, sublinhamos que cultura é um conjunto de respostas e práticas possíveis de um indivíduo às solicitações do meio67 e que resulta de factores variados: a raça, a etnia, a nacionalidade, o meio de origem, a classe familiar, o sexo, a idade, o nível sócio-cultural, as motivações, os interesses, o percurso escolar, os conhecimentos, a profissão, o núcleo de amizades, os hábitos…

Na construção do conceito de cultura, não podemos ignorar, também, a importância dos capitais herdados. (Abdallah-Pretceille & Porcher, ibidem). Bourdieu, Chamboredon & Passeron (1983), como referimos, sugerem este conceito para analisar e descrever os bens simbólicos de cada um, isto é, o conjunto de conhecimentos e de saberes disponíveis. No entanto, e seguindo Bourdieu (ibidem), os capitais culturais próprios são reorganizados ereestruturados perante, por exemplo, a acção da escola. Esta reconfiguração reveste-se de uma importância fulcral, na medida em que se os capitais culturais são herdados, podemos dizer que “C‟est là que s‟enracine l‟inégalité

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Reiteramos, uma vez mais, qu e estes comportamentos se adaptam aos contextos e evoluem de acordo com o desenvolvimento do indivíduo.

89 des élèves devant l‟institution scolaire.” (Abdallah-Pretceille & Porcher, ibidem:30).

A função da Escola não se confina especialmente à reconfiguração dos capitais culturais individuais, antes deverá promover os capitais sociais, isto é o conjunto das relações de um indivíduo, tendo total consciência de que os capitais culturais e os capitais sociais diferem de um aluno para outro, o que constitui uma das fontes fundamentais da diversidade da escola contemporânea. Daí a importância da troca e da partilha. Aliás, “la capacité de faire des différences, c‟est-à-dire de ne pas confondre, de ne pas amalgamer, de ne pas mélanger, de distinguer, donc. l‟aboutissement, l‟horizon, l‟objectif de la culture, c‟est justement, “la distinction.” (idem, ibidem:33).

Assim sendo, a forma como reagimos a estímulos, as atitudes que tomamos, as representações e comportamentos conferem singularidade a cada ser e podem ser semelhantes ou diferentes entre indíviduos com referentes linguísticos, étnicos ou raciais distintos ou não. É exactamente essa postura perante a vida que constitui o novo conceito de cultura que aqui propomos, já que, durante a vivência em sociedade, o homem aproxima-se ou afasta-se de determinados grupos, partilhando ou discordando de determinados ideias. Por isso, o Eu é composto de fragmentos (sub)culturais que se vão reajustando aos diferentes contextos68, levando cada Eu a representar uma cultura distinta, ou seja, várias subculturas69.

É neste sentido que defendemos que a finalidade da escola é o aprender em conjunto para saber viver em conjunto (Develay, 1996). Tal objectivo pressupõe entender que cada um como portador de uma cultura única que alberga em si todas as outras numa perspectiva inclusiva e nunca segregacionista. Por isso, face aos saberes que tem de ensinar, o professor deve fazê-los significar algo

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Note-se que as culturas são dinâmicas, estando em constante transformação.

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Salienta-se que são os próprios seres humanos, em interacção, os construtores da cultura que é transmitida de geração em geração. Cada indivíduo é, de facto, um ser único, mas é também produto de várias construções (sub)culturais.

90 para os alunos, já que são os próprios saberes que ajudarão os discentes a conhecer o mundo, os Outros e a si próprios.

Assim sendo, a Escola deve dar voz aos diferentes padrões culturais que se fundamentam em valores, crenças e conhecimentos variados, uma vez que tem de trabalhar para uma diversidade de seres.

Dado que integramos este trabalho no campo da Didáctica, em geral, e das Línguas Vivas e Culturas Estrangeiras, em particular, urge compreender o lugar a ocupar pelo conceito de cultura, tal como aqui o defendemos, quer no currículo, quer no processo de ensino-aprendizagem das LE, o que nos ocupará nos pontos seguintes.