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Capítulo 3 – Estrutura da responsabilidade civil

3.3. Dano

3.3.2. Conceito de dano

Etimologicamente, a palavra dano vem do latim damnum, que deriva do verbo demere, o qual significa tolher, privar, decrescer, diminuir, e é contrário a emere, que, por sua vez, significa adquirir, aparecer. Propriamente, a palavra dano significa “qualquer privação ou subtração sofrida por um sujeito em seu aspecto físico ou moral”165.

Em linguagem jurídica, Agostinho Alvim, inventariando os diversos conceitos atribuídos à palavra dano pela doutrina, observa que esse termo foi classicamente conceituado como toda e qualquer diminuição do patrimônio de alguém166. Segundo relatos trazidos pelo autor, isso se deu, muito provavelmente, devido à influência exercida pela definição de dano apresentada pelo jurisconsulto romano Paulo, em passagem do Digesto167.

Esse conceito, no entanto, conforme relata ainda o autor, passou a ser contestado por grande parte da doutrina, pois ele não permitiria abranger os denominados danos não patrimoniais, já que a palavra patrimônio, em boa técnica, refere-se tão somente “ao conjunto das relações jurídicas de uma pessoa, apreciáveis em dinheiro”168.

legitimamente, na esfera jurídica alheia, sem o consentimento de seu titular ou autorização do ordenamento jurídico (...)”. Idem.

164 Este princípio permeia todo o ordenamento jurídico, podendo ser inferido do artigo5º, inciso V, da

Constituição Federal, bem como de toda legislação infraconstitucional que estabeleça o dever de reparar danos injustos.

165 ROMANI, Giovanni, Dizionario Generale de’Sinonimi Italiani, v. 1, Milano, Giovanni Silvestri,

1725, p. 403, verbete “danno”.

166 ALVIM, Agostinho, Da inexecução das obrigações e suas consequências, 2ª ed., São Paulo, Saraiva,

1955, p. 185-188.

167 Idem. Essa constatação é, segundo Agostinho Alvim, de Giovanni Formica. A passagem a que este

autor se refere é a seguinte: Paul. 47 ad ed., D. 39, 2, 3: “Damnum est damnatio ab ademptione et quasi deminutione patrimonii dicta sunt”.

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Alguns doutrinadores insurgiram-se contra esta crítica, requerendo fosse dado um conceito mais abrangente ao termo patrimônio, de forma a abarcar também as relações não patrimoniais169. Não houve muito sucesso.

Ganharam força, então, os conceitos de dano que procuram fazer menção tanto à natureza patrimonial quanto à natureza não patrimonial que ele pode assumir. Tornou-se comum o recurso à figura do bem jurídico170. Afirma-se, assim, que dano é “a diminuição ou subtração de um bem jurídico”171 ou “a lesão de qualquer bem jurídico”172.

No entanto, dado à vagueza da expressão bem jurídico, que tanto pode significar o objeto de direito subjetivo173, como o próprio direito subjetivo, prefere-se conceituar dano recorrendo-se à categoria da esfera jurídica, assentando-se, assim, que

dano é toda afetação negativa da esfera jurídica alheia174.

169 Idem.

170 Ibid., p. 186-188.

171 FORMICA, Giovanni apud ALVIM, Agostinho, Da inexecução das obrigações e suas consequências,

2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1955, p. 187.

172ALVIM, Agostinho, Da inexecução das obrigações e suas consequências, 2ª ed., São Paulo, Saraiva,

1955, p. 187. Esse autor ainda traz um conceito de dano em sentido amplo: “Nós entendemos que o têrmo dano, em sentido amplo, vem a ser a lesão de qualquer bem jurídico, e aí se inclui o dano moral”. Idem. Hans Albrecht Fischer entende que: “É dano todo o prejuízo que o sujeito de direitos sofra através de violação dos seus bens jurídicos, com excepção única daquele que a si mesmo tenha inferido o próprio lesado: êsse é juridicamente irrelevante”. FISCHER, Hans Albrecht, A reparação dos danos no direito civil, tradução de António de Arruda Ferrer Correia, São Paulo, Livraria Acadêmica – Saraiva & C.ª – Editores, 1938, p. 7.

173 Emprega-a nesse sentido, por exemplo, Menezes Cordeiro. CORDEIRO, António Menezes, Tratado

de direito civil português, v. II – Direito das Obrigações, Tomo III – Gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2010, p. 511-512.

174 Esse conceito de dano tem a ver com o que Antônio Junqueira de Azevedo denomina dano-prejuízo.

Precisando os vocábulos “lesão”, “dano” e “prejuízo”, frequentemente utilizados na língua portuguesa para se referirem, ora ao ato que viola o bem jurídico, ora ao prejuízo que resulta desta lesão, o autor ensina que dano-evento é o primeiro momento, isto é, o ato que viola o bem juridicamente protegido, já o dano-prejuízo é o segundo momento, ou seja, o prejuízo resultante da violação. AZEVEDO, Antonio Junqueira, O direito

como sistema complexo e de 2ª ordem; sua autonomia. Ato nulo e ato ilícito. Diferença de espírito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuízo para haver direito de indenização na responsabilidade civil (parecer), in Estudos e pareceres de direito privado, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 33-

34. Esta distinção é de grande importância. Em regra, tanto o dano-evento quanto o dano-prejuízo estarão presentes. Entretanto, é perfeitamente possível que haja dano-evento sem que haja dano-prejuízo. Pode-se pensar no seguinte exemplo: um pedreiro quer demolir o muro de sua própria casa. Programa para executar o serviço em determinado dia. No dia anterior ao que iria executá-lo, um caminhoneiro embriagado perde a direção do veículo que conduzia e colide no muro, derrubando-o. Não há aqui dano-prejuízo. Há tão somente dano-evento. A conduta do caminhoneiro violou uma posição jurídica subjetiva alheia (ingerência ilegítima na esfera jurídica alheia), mas esse ato não gerou prejuízo, isto é, não gerou efetiva repercussão (afetação) negativa a essa posição jurídica. Logo, não há dever de indenizar. O que se indeniza é o dano-prejuízo.

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A esfera jurídica designa a totalidade das posições jurídicas subjetivas de que é titular um sujeito de direito175. Seu conteúdo é variável, podendo ser mais ou menos amplo176.

Na esfera jurídica, identifica-se uma estrutura bipartida composta pelos chamados hemisfério patrimonial e hemisfério não patrimonial. No hemisfério patrimonial, encontra-se a totalidade de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas dotadas de valor econômico e, consequentemente, suscetíveis de expressão pecuniária. São posições jurídicas, tendencialmente, disponíveis. O hemisfério não patrimonial, por sua vez, é composto de posições jurídicas não suscetíveis de avaliação pecuniária, sendo, portanto, tendencialmente, indisponíveis177.

Em cada um desses hemisférios, ou setores, existe um núcleo onde se localizam as posições jurídicas indisponíveis – ilustrativamente, o núcleo do setor não patrimonial é maior do que o do setor patrimonial –. O ordenamento jurídico coloca nesses núcleos as posições jurídicas que considera as mais importantes, não permitindo ao titular da esfera jurídica delas dispor livremente178.

Dessas considerações, obtêm-se, conclusivamente, os conceitos de dano patrimonial e de dano não patrimonial ou moral. Diz-se que um dano é patrimonial quando é negativamente afetada posição jurídica localizada no setor patrimonial da esfera jurídica de um sujeito de direito. A expressão dano não patrimonial, por sua vez, tem a ver com

175 Esse conceito de esfera jurídica foi exposto pelo Professor Alcides Tomasetti Júnior em aulas

ministradas no curso de direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, durante o 1º semestre de 2004. A expressão sujeitos de direito é preferível a de pessoas. Como é sabido, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, há entes que, embora desprovidos de personalidade jurídica, são titulares de algumas posições jurídicas ativas e passivas. Assim, por exemplo, a herança jacente e vacante e também a massa falida.

176 Segundo ensina José Oliveira Ascensão: “Não se imagina uma esfera jurídica vazia: a esfera jurídica

não é um mero continente. As pessoas singulares têm, logo que vêm à existência, direitos de personalidade”. E, em nota a esta afirmação, o autor acrescenta: “E mesmo as pessoas coletivas desfrutam logo de direitos assim que adquirem personalidade jurídica. Não têm apenas capacidade, têm direitos concretos. Mas é um fato que a situação aqui é mais complexa, por uma pessoa coletiva poder nunca ter nenhuma atividade, ficando reduzida sempre aos direitos inerentes à sua personalidade jurídica”. ASCENSÃO, José de Oliveira,

Direito Civil – Teoria Geral: Introdução. As pessoas. Os bens, v. I, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 126.

177 Essas considerações sobre a esfera jurídica foram também expostas pelo Professor Alcides Tomasetti

Júnior em aulas ministradas no curso de direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, durante o 1º semestre de 2004.

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lesões a posições jurídicas localizadas no setor não patrimonial da esfera jurídica de um sujeito de direito.

Sucede, todavia, que essa noção de dano, até aqui defendida, não é satisfatória para abarcar as hipóteses em que o sistema de responsabilização civil é chamado a atuar. Efetivamente, o que se indeniza não é o dano pura e simplesmente; mas o dano qualificado: o dano injusto.