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Responsabilidade civil e punição do causador do

Capítulo 4 – Desconstrução da estrutura clássica da responsabilidade civil?

4.3. As alterações nos pressupostos da responsabilidade civil

4.3.3. O dano

4.3.3.3. Desnecessidade de substituição da estrutura atual de

4.3.3.3.1. Responsabilidade civil e punição do causador do

Contemporaneamente, conforme assinalado, sustenta-se que a responsabilidade civil teve ou deve ter sua finalidade ampliada por meio dos punitive

damages ou exemplary damages, que serviriam para punir o causador do dano e também

para desestimular o lesante ou outros membros da coletividade a praticar conduta causadora de dano injusto.

Para melhor compreender a questão das “funções” da responsabilidade civil, convém atentar para a distinção entre função (alvo) e efeitos secundários (colaterais) – consequências – da realização da função.

A responsabilidade civil, como de resto todo mecanismo jurídico de imposição de sanção, possui, em maior ou menor grau358, como efeitos a prevenção especial (dissuasão do autor da conduta para que não a repita) e a prevenção geral (dissuasão dos membros da comunidade para que não adotem a conduta adotada pelo sancionado), não havendo nisso nenhuma novidade.

Assim, quando a alguém é imposto o dever de reparar o dano injusto que causou, a indenização da vítima (finalidade da responsabilização civil) poderá também funcionar como medida para que o sancionado não mais adote aquele comportamento potencialmente lesivo (prevenção especial) e, ainda, para desestimular outras pessoas a imitarem a conduta lesiva do sancionado (prevenção geral).

Não obstante, os defensores da ampliação da finalidade da responsabilidade civil não se contentam em dar ênfase às funções colaterais e pretendem alterar radicalmente a própria estrutura da responsabilidade civil por meio do aumento do valor imposto como “indenização”. Tal valor, agora superior ao que seria suficiente a reparar a

358 As sanções criminais, em geral, têm maior força dissuasória pelo fato de atingirem, no geral, não – ou

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vítima, há de ser tal que transforme os efeitos colaterais em efeitos principais, que ladeariam a função reparatória.

A ideia não é ruim. Na se pode duvidar de que o sistema jurídico esteja autorizado a punir aquele que cause danos injustos, mas esta punição não é papel da responsabilidade civil e não pode ser feita através da indenização, bastando a esta conclusão simples leitura do artigo 944 do Código Civil.

Lembre-se, inicialmente, de que o sistema jurídico brasileiro é pertencente à família do civil law e tem como “inegável ponto de partida”359 o direito positivo, mais especificamente as normas que o compõem. Então, já se pode afirmar a incoerência e a irresponsabilidade da tentativa de atribuir viés punitivo à responsabilidade civil brasileira a partir da leitura do artigo 5º, inciso XXXIX, 2ª parte, da Constituição Federal de 1988360.

O artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal contém duas normas: uma que trata da definição de crime, a qual não tem interesse nessa análise, e outra que trata da cominação de pena, seja por que motivo for. Esta segunda norma do dispositivo autoriza concluir que as sanções punitivas, tenham elas natureza criminal, administrativa ou civil, por serem consequências de uma norma de proibição, devem ser submetidas ao princípio da legalidade, “garantia essencial dos direitos individuais contra a arbitrariedade dos órgãos incumbidos da aplicação da lei”361.

Portanto, o princípio da legalidade afasta a possibilidade de defender-se que o Judiciário possa, legitimamente, ampliar o quantum da indenização para punir o causador do dano, afinal, não há nenhuma cominação legal que o autorize a isso.

Além dessa inequívoca proibição constitucional, a tentativa de embutir função punitiva na responsabilidade civil é retrocesso histórico evidente.

359 Alusão ao princípio da inegabilidade dos pontos de partida. Cf.: Tércio Sampaio Ferraz Jr.. Cf.:

Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação, 4ª ed., São Paulo, Atlas, 2003.

360 “Art. 5º. (...).

XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”

361 BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha, A função ética da pena privada, tese apresentada à Faculdade

de Direito da Universidade de São Paulo para inscrição em concurso público visando à obtenção de título de livre docente, São Paulo, 2010, p. 77.

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Conforme se demonstrou no capítulo 2 dessa dissertação, as responsabilizações civil e penal distinguiram-se a partir da primeira codificação, isto é, com a edição do Código Civil francês em 1804 e do Código Civil alemão (BGB) em 1900. Essa distinção em responsabilização civil e penal foi fundamental para a evolução da responsabilidade civil, podendo-se mesmo afirmar que sem ela, até hoje, não haveria espaço para responsabilidade civil objetiva.

Como abordado, a ideia de responsabilização em geral tem por objeto situações socialmente inconvenientes que, em um primeiro momento histórico, eram aquelas provocadas por condutas reprováveis. O alvo, então, do esquema de responsabilização – sem qualquer distinção em civil e penal – eram as condutas socialmente reprováveis.

Se o foco da responsabilização eram as condutas reprováveis, mister que tais condutas apresentassem alguma nota que permitisse sua qualificação como inconvenientes. Tal nota foi justamente o modo com que a conduta foi realizada. Eram qualificadas como socialmente inconvenientes as condutas dirigidas conscientemente a causação de um mal (dolosas) e as condutas desastradas (culposas). Tanto as responsabilizações penais quanto as civis só se faziam sentir quando esse pressuposto estivesse preenchido, o que as qualificava como eminentemente subjetivas.

Se a premissa era evitar condutas causadoras de situações sociais indesejadas, naturalmente que só se poderia sancionar o agente que quisesse agir mal ou que por descuido inescusável agiu mal. O eixo de interesse da estrutura de responsabilização (penal ou civil) era o agente, e não sua vítima. Esta é, felizmente, até hoje a premissa pela qual se pauta o direito penal, razão pela qual não há um só autor penalista que defenda responsabilização penal objetiva.

Contudo, a responsabilidade civil, ao longo dos anos, e, graças ao intenso trabalho dogmático de autores renomados362, alterou radicalmente seu eixo de interesse, focalizando-o não mais exclusivamente no agente, mas principalmente na vítima. Daí que, para haver responsabilização civil, não importa se a conduta foi dolosa ou culposa, mas,

362 No Brasil, esta viragem é atribuída, principalmente, a Alvino Lima. Cf.: Culpa e risco, São Paulo,

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fundamentalmente, se o dano sofrido pela vítima deve ou não ser suportado por ela, em resumo, se é justo ou injusto.

Portanto, diferentemente do que sustentam os defensores do “direito de danos”, a tentativa de integração da função punitiva à responsabilidade civil é retrocesso científico e histórico que, ao invés de atender às vítimas, poderá dificultar sua indenização. Isso porque, caso se insista em punir o agente por meio da responsabilidade civil, fatalmente, será necessário trazer à baila a discussão sobre o valor ou desvalor da conduta, afinal só há sentido em punir ou, como alguns preferem, desestimular condutas que sejam em si mesmas reprováveis.

Desta forma, a introdução de sanção punitiva ao causador de determinados danos injustos no ordenamento jurídico brasileiro só pode ser feita por via própria e não por meio da responsabilidade civil.

Poderia, por exemplo, haver a inclusão de um parágrafo no artigo 944 do Código Civil autorizando que o magistrado, na análise do caso concreto e diante de determinadas circunstâncias, que devem ser balizadas pelo legislador, possa fixar multa ao causador do dano363, além, é claro, do valor devido a título de reparação do dano. O magistrado, assim, ficaria autorizado a aplicar ao causador do dano não só a sanção consistente no dever de indenizar o dano (artigo 944, caput, do Código Civil), mas também a sanção de multa.