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Capítulo 3 – Estrutura da responsabilidade civil

3.2. Conduta

3.2.3. Valoração da conduta: noção de ato ilícito e conduta culposa

3.2.3.1. Que é ato ilícito?

Embora seja fundamental a distinção entre o mundo da cultura e o mundo da natureza, não se pode olvidar que o Direito não é exclusivamente formado por normas descritoras de fatos, mas que essas normas são, também, preenchidas por valores130, cabendo ao intérprete no desempenho de sua função guiar-se por tais vetores axiológicos.

As noções de ato ilícito e conduta culposa131 são exemplos de valorações jurídicas levadas a efeito para determinar a quem deve ser imputada a responsabilidade pela causação de um resultado.

Valendo-se da classificação das normas jurídicas que as distinguem em normas atributivas de competência e normas de conduta132, fica claro que o ato ilícito e a conduta culposa têm por ambiente próprio o das normas de conduta.

Com efeito, diante dos modais deônticos próprios das normas de conduta, a saber, proibido, obrigatório e permitido, há ato ilícito sempre que se faça algo descrito como proibido, ou deixe-se de fazer algo descrito como obrigatório, hipótese em que é mais preciso falar-se em omissão ilícita133. Já a conduta culposa é sempre um ato ilícito

130 Como demonstrou Miguel Reale em sua Teoria tridimensional do direito: preliminares históricas e

sistemáticas, 3ª ed. revista e atualizada, São Paulo, Saraiva, 1980.

131 Em razão do argumento a fortiori, a noção de conduta culposa abrange, aqui, a de conduta dolosa. 132 Sobre a classificação das normas em de conduta e de competência, cf.: ROSS, Alf, Logica de las

normas, traducción por Jose S.P. Hierro, Madrid, Editorial Tecnos, 1971.

133 Há, entre os civilistas brasileiros, tendência no sentido de identificar o ato ilícito com a causação de

dano. Neste sentido lê-se em Clóvis Bevilaqua: “Acto illicito é, portanto, o que, praticado sem direito, causa

damno a outrem”. Theoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1929, p.

347. E em Francisco Amaral: “Ato ilícito é o ato praticado com infração de um dever legal ou contratual, de que resulta dano para outrem”. Op. cit., p. 552. Este autor inclusive identifica seu conceito com os conceitos apresentados por Silvio Rodrigues, Orlando Gomes e Caio Mario da Silva Pereira. Porém, o ato ilícito danoso é apenas uma modalidade de ato ilícito, conceito pertencente não ao Direito Civil, mas à Teoria Geral

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decorrente da violação de norma que imponha dever de cuidado, afinal a culpa consiste na violação do dever de cuidado que cabe ao homem médio observar.

Fica, pois, evidenciado que a relação entre ato ilícito e conduta culposa é relação entre gênero e espécie134.

Como ensinam os doutrinadores que versam a responsabilidade civil135, atualmente, esta disciplina vem sofrendo alteração relativamente à abordagem que confere aos personagens envolvidos: houve um deslocamento do foco de interesse da responsabilidade civil, que do autor do dano passou a sua vítima.

Ora, enquanto o foco da responsabilidade civil esteve voltado ao autor do dano, o sistema jurídico procedeu à valoração de sua conduta, somente imputando-lhe o dever de indenizar se sua conduta, além de danosa, fosse considerada um mal em si mesma, violadora de norma de conduta e, por isso, ilícita. Se a norma violada fosse a impositiva de dever de cuidado, falar-se-ia de conduta culposa; se, conscientemente dirigida à causação do mal, conduta dolosa.

No momento em que se altera o eixo de interesse da responsabilidade civil, voltando-se todas as atenções à vítima, o que passa a ser valorado mais enfaticamente é o

do Direito. Conforme já afirmado, o ato ilícito consiste na conduta contrária ao Direito, pouco importa se desta conduta decorre ou não dano a outrem. Nesse sentido, Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado –

Parte Geral – Tomo II – Bens. Fatos Jurídicos, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1970, p. 201; e Menezes

Cordeiro, Tratado de direito civil português, v. II – Direito das Obrigações, Tomo III – Gestão de negócios,

enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2010, p. 444. Poder-se-á argumentar

que o Código Civil brasileiro traz conceitos próprios de ato ilícito, quais sejam os dos artigos 186 e 187. O artigo 187, como que completando a redação do artigo 186, inicia seu texto com a frase “também comete ato

ilícito...”, permitindo concluir que não só o ato danoso, como também o abusivo é ilícito. Porém, da

conjugação destes artigos não se pode inferir que o Código Civil brasileiro tenha optado por uma noção restritiva de ato ilícito, ao contrário, apenas descreveu o suporte fático de duas modalidades de ato ilícito, sem com isso pretender excluir quaisquer outras.

134 Assim, não há ato culposo que não seja ilícito, mas, é perfeitamente possível ato ilícito sem culpa.

Neste sentido, Pontes de Miranda ensina que: “À contrariedade a direito não é essencial juntar-se culpa; há o contrário a direito sem culpa, como se o devedor não paga porque não contou com a interrupção do pagamento por seus devedores ou se ocorre algum caso de responsabilidade pelo fortuito ou força maior”.

Tratado de Direito Privado – Parte Geral – Tomo II – Bens. Fatos Jurídicos, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi,

1970, p. 197.

135 Por todos, Geneviève Viney, As tendências atuais do direito da responsabilidade civil, tradução de

Paulo Cezar de Mello, in Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional:

anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da cidade do Rio de Janeiro, organizador

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dano, e não a sua causa, é dizer, a conduta, daí falar-se em “ocaso da culpa”136, ou em esvaziamento axiológico da responsabilidade civil.

Contudo, no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, há a convivência de ambos os sistemas de responsabilidade civil, isto é, tanto o fundado na valoração da conduta do autor do dano, como o voltado mais diretamente aos interesses da vítima do dano.

Assim sendo, o sistema brasileiro de responsabilidade civil, estruturado a partir da noção de dano injusto, é formado por normas descritoras de condutas ilícitas e normas que abstraem qualquer valoração da conduta. No primeiro caso, se está diante da responsabilidade civil subjetiva; no segundo, da objetiva. Quando se trata de responsabilidade civil subjetiva, só surgirá o dever de indenizar se a conduta do agente foi dolosa ou culposa, sendo certo que, como já sinalizado, estes elementos são irrelevantes para a caracterização da responsabilização objetiva137.