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Capítulo 4 – Desconstrução da estrutura clássica da responsabilidade civil?

4.3. As alterações nos pressupostos da responsabilidade civil

4.3.3. O dano

4.3.3.3. Desnecessidade de substituição da estrutura atual de

4.3.3.3.2. Indenização sem dano

Ao lado da ideia de punição, há, como apontado, a tentativa de autorizar o Poder Judiciário a determinar que o agente “indenize” alguém sem que necessariamente haja dano. Se a inclusão da função punitiva à responsabilidade civil é criticável pelas

363 O antigo Projeto de Lei º 6.960/2002 do deputado Ricardo Fiúza previa a inclusão de um §2º no artigo

944 do Código Civil com a seguinte redação: “§2º A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”. Esse projeto de lei encontra-se arquivado, mas tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 699/2011, que mantém a mesma proposta do projeto Fiúza. Todavia, pelas razões expostas, esta redação não é adequada, porque nela a indenização teria seu valor indevidamente alargado. Propõem-se, aqui, duas sanções: a de indenização, e, em determinadas casos, também a sanção de multa – que teria finalidade punitiva e também dissuasória.

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razões há pouco articuladas, a ideia de “indenização” sem dano é, para dizer no mínimo, absurda.

O significado do verbo indenizar é o de tornar indene – do latim in dene –, retirar o dano. É, pois, impossível lógico retirar dano se dano não há para ser retirado.

Quando alguns autores defendem a possibilidade de indenização sem dano, ora o fazem porque desconhecem ou parecem desconhecer distinções dogmáticas, como a que há entre medida judicial preventiva e medida judicial satisfativa; ora o fazem porque não percebem que a situação que descrevem já é de dano e, portanto, estão defendendo o óbvio: indenização de dano.

Nas hipóteses expostas por Daniel de Andrade Levy da usina que despeja seus detritos no rio e, com isso, contamina as propriedades ribeirinhas e da usina que ainda não despejou seus detritos no rio, podem-se divisar claramente duas situações jurídicas distintas: uma constituída por um dano injusto e outra constituída por um perigo de dano. Para ambas, o autor busca solução no esquema de responsabilização civil, sem, ao que parece, lembrar que o sistema jurídico, não de hoje, já contempla soluções distintas para o dano e para o perigo de dano. Para o primeiro, há a indenização; para o segundo, os esquemas normativos de proibição de condutas capazes de gerar risco de dano injusto para situações jurídicas alheias e cujo esquema prototípico é o artigo 461 e parágrafos do Código de Processo Civil364, além, é claro, das regras previstas na Lei 7.357/85, que disciplina a ação civil pública.

364 “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz

concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que

assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1o A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela

específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2o A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).

§ 3o Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento

final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o

juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

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Aqueles que, como o autor, fazem menção à responsabilidade civil preventiva confundem, portanto, estas duas modalidades distintas de situações jurídicas ilícitas: a consistente no dano injusto, cujo elemento sistemático de estabilização é a indenização, imposta pela deflagração da estrutura de responsabilização civil; e a consistente na submissão de posição jurídica a risco de dano injusto, para a qual existem os elementos de prevenção e imunização de posição jurídica contra intromissões alheias indevidas, elementos esses já clássicos em nosso sistema jurídico365.

É evidente que, quando o autor fala que “o magistrado pode, além de

determinar a imediata eliminação do risco, impor indenização que estimulasse o agente a tomar as medidas de prevenção necessárias para evitar, ao máximo, a futura ocorrência do dano”, a palavra indenização esta, aí, mal utilizada, pois só se retira ou afasta dano,

quando há dano a ser afastado. O que se pretendeu dizer foi, simplesmente, que o juiz poderia impor ao réu o dever de pagar quantias em dinheiro até sanar a situação de criação indevida de riscos, o que, nem de longe, é indenização, e sim a já bastante velha astreinte.

No trabalho de Teresa Ancona Lopez, vê-se que, na passagem reproduzida acima em que a autora defende o “dano de risco”, ela própria cuida de tratar o risco ou ameaça de dano como um dano injusto366, o que joga pá de cal na discussão, afinal, se há dano injusto, a solução é a indenização.

A obra de Teresa Ancona Lopez é dogmaticamente consistente, pois, embora em um primeiro momento pareça concordar com a possibilidade de responsabilização civil sem dano, cuida logo de enquadrar a “ameaça de dano” no rol dos danos injustos, restaurando, com isso, a coerência sistemática do esquema tradicional de responsabilização civil adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

§ 6o O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se

tornou insuficiente ou excessiva”. Grifaram-se os dispositivos mais especificamente apropriados à questão

da prevenção de danos injustos.

365 Basta lembrar-se, além dos dispositivos citados do CPC, dos artigos 12, 20, 1.280, 1.308 etc. do

Código Civil.

366 A autora fala que: “O medo constante de ser portador de vírus de doença incurável é, com certeza,

dano indenizável”. Op. cit., p. 139. Está-se, pois, diante de dano extrapatrimonial, consistente na lesão à integridade psíquica da pessoa.

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Com relação ao trabalho de Lucas Abreu Barroso e Pablo Malheiros da Cunha Frota, também aplicam-se as críticas feitas até aqui.

Como já anotado, os autores afirmam textualmente que o direito de danos busca “concretizar a responsabilidade sem danos, pois a possibilidade de sua verificação já acionaria o dever de reparar por parte daquele que possa vir a causá-lo” 367. Perceba-se que os autores não se preocupam em dizer o que será reparado, afinal de contas eles mesmos dizem que não houve dano e, como, insistentemente, demonstrou-se, a indenização não é medida apta a sancionar condutas potencialmente causadoras de dano.

No caso da talidomida, que lhes serve de mote para a defesa do “direito de danos”, os autores entendem ser necessário esse novo paradigma para permitir que se apliquem os princípios da prevenção e precaução e, assim, no caso, retirar a talidomida do mercado.

Evidentemente que, pelo menos desde a vigência do Código de Defesa do Consumidor368, o ordenamento jurídico brasileiro já conta com instrumentos hábeis para determinar a retirada de produtos nocivos do mercado369. O artigo 6º, inciso VI desse diploma fala expressamente em prevenção de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.

Além do que os documentos resultantes da Eco 92, já analisados, e que foram incorporados ao direito brasileiro, consagraram expressamente referidos princípios, não deixando margem a dúvidas: quando uma atividade é efetivamente perigosa ao meio ambiente, à saúde e à vida do ser humano, ou quando haja incerteza científica sobre seus efeitos, devem ser adotadas medidas para evitar consequências desastrosas.

Cumpre apontar também que, diferentemente do que sustentam os autores, o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor consagra o chamado “risco do

367 BARROSO, Lucas Abreu; FROTA, Pablo Malheiros da Cunha, op. cit., p. 106.

368 Pelo menos, porque o Código de Processo Civil de 1973 já continha a previsão de medidas cautelares. 369 Vide, por exemplo, artigo 6º, incisos I e VI; artigo 9º; artigo 10; artigo 83, artigo 84, caput e

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desenvolvimento”370 como excludente do dever de indenizar não pode ser aceito à luz do ordenamento jurídico brasileiro, sendo desnecessário, mais uma vez, o recurso ao direito de danos para se chegar a esta conclusão.

De fato, há uma corrente que defende que o Código de Defesa do Consumidor permitiria a exclusão de responsabilidade civil do fornecedor pelo risco do desenvolvimento. Nesse sentido, argumenta-se que fazer o fabricante suportar esses riscos pode inviabilizar o progresso científico e tecnológico, já que, por não conhecê-los, ele não os internalizaria em seus custos e, consequentemente, não os dividiria com o consumidor371.

Entretanto, as conquistas em matéria de direito do consumidor, embasadas em princípios cujo norte é, obviamente, a sua proteção, e, mais genericamente, em matéria de direito coletivo, com destaque para os princípios da prevenção e precaução e todas as construções que deles decorrem e que, inegavelmente, já se encontram incorporadas ao direito positivo brasileiro, não dão espaço para esse tipo de discurso.

Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin esclarece que:

“O Código não inclui, entre as causas exoneratórias, os riscos de desenvolvimento, isto é, os defeitos que – em face do estado da ciência e da técnica à época da colocação em circulação do produto ou serviço – eram desconhecidos e imprevisíveis. Por adotar um sistema de responsabilidade civil objetiva alicerçado no risco de empresa, a lei brasileira não podia, com razão, exonerar o fabricante, o produtor, o construtor e o importador na presença de um risco de desenvolvimento372. (...)

370 Não se entende ser pertinente, nesse estudo, fazer uma análise mais detida do risco do

desenvolvimento. Apenas para aventar o conceito, segundo Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, o risco do desenvolvimento é “o risco que não pode ser cientificamente conhecido no momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto ou serviço. É defeito que, em face do estado da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço em circulação, era desconhecido e imprevisível”. Comentário ao Código de Proteção do Consumidor, coordenação de OLIVEIRA, Juarez de, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 67.

371 Cf.: CAVALIERI FILHO, Sergio, op. cit., p. 177. 372 Idem.

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Os defeitos decorrentes de risco de desenvolvimento representam uma espécie do gênero defeito de concepção. Só que aqui o defeito decorre da carência de informações científicas, à época da concepção, sobre os riscos inerentes à adoção de determinada tecnologia nova.

Se o fabricante de medicamentos conseguir provar que, à época da fabricação do produto, desconhecida seu potencial para causar defeitos genéticos, ainda assim será responsabilizado, posto que, ao fabricá-lo, assumiu todos os seus riscos. Há, ai, verdadeiro defeito de concepção”373.

Finalmente, também não há necessidade do chamado “direito de danos” para estabelecer a responsabilidade civil dos laboratórios. Claramente, a legislação buscou facilitar a indenização das vítimas da talidomida, concentrando na União o pagamento das indenizações. Mas isso não significa que a União esteja impedida de regressar contra os laboratórios. A hipótese em questão é a do parágrafo único do artigo 942 do Código Civil, que consagra responsabilidade civil solidária entre os responsáveis pela causação do dano (autores e coautores), no caso, entre a União, que autorizou a colocação da talidomida no mercado, e os laboratórios que comercializaram os medicamentos à base de talidomida. Aplicam-se, portanto, todos os efeitos da solidariedade.

Do exposto, reafirma-se que os chamados princípios da precaução e prevenção não têm o condão de ampliar o objeto da responsabilidade civil para que ela passe a abarcar hipóteses em que não haja dano injusto.

Reitere-se: os momentos antecedentes ao dano injusto e que são o locus

proprium de tais princípios exigem mecanismos de estabilização social que, embora

próximos, são inconfundíveis com os da responsabilidade civil. Se é verdade que o princípio geral do direito consubstanciado na fórmula neminem laedere é o fundamento comum tanto da prevenção/precaução como da reparação, também é certo que seus pressupostos são assaz distintos. Por imperativo lógico, insista-se, a indenização pressupõe

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a ocorrência de intromissão injusta e prejudicial na esfera jurídica alheia, enquanto que a precaução/prevenção exige uma ameaça de intromissão injusta.

Tanto a situação jurídica de dano injusto como a situação jurídica de ameaça de dano injusto devem ser anatematizadas por serem ilícitas, mas o meio de anatematização diferencia-se completamente. No primeiro caso, como foi dito, há a deflagração da estrutura de responsabilização civil que culminará na imposição do dever de indenizar; no segundo caso, haverá a deflagração de mecanismos de antecipação que são de existência indiscutível no ordenamento jurídico brasileiro, bastando que se lembre, uma vez mais, da chamada multa cominatória e de todos os outros consectários do poder geral que o juiz tem de conceder tutelas antecipadas, satisfativas e cautelares, positivados paradigmaticamente nos artigos 273, 461, 798 e 799, do Código de Processo Civil.

A tentativa de ampliação do objeto da responsabilidade civil, além de tecnicamente equivocada, tem o inconveniente de retirar a clareza conceitual das categorias jurídicas, o que é de todo desastroso para a solução dos problemas concretos.

Feitas essas análises pontuais da responsabilidade civil e das tentativas de modificá-la, cumpre, por derradeiro, enquadrá-la no sistema jurídico, para que, com isso, tenha-se uma visão global do instituto.

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CAPÍTULO 5 – O DANO INJUSTO COMO PRESSUPOSTO DO