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Relação de causalidade e relação de imputação O nexo físico e o nexo

Capítulo 3 – Estrutura da responsabilidade civil

3.4. Nexo de causalidade

3.4.1. Relação de causalidade e relação de imputação O nexo físico e o nexo

O espírito humano, em sua ínsita busca por respostas que o permita entender a realidade, cedo necessitou atribuir uma origem aos acontecimentos físicos mais relevantes para sua existência. Fê-lo, primeiramente, por meio da criação de lendas, mitos, deuses e, posteriormente, por meio do exercício da razão, baseada na observação e experimentação.

230 É o equivoco de todos os que, como Fernando Noronha, imaginam possível a existência de

responsabilidade civil sem nexo de causalidade. Cf.: Direito das Obrigações: fundamentos do direito das

obrigações: introdução à responsabilidade civil, v. 1, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 489.

231 “A articulação entre causas e efeitos realizada por um observador depende dos interesses com que

ordena o objeto, ou na medida em que confere importância a determinados efeitos”. Niklas Luhmann,

Introdução à teoria dos sistemas, aulas publicadas por Javier Torres Nafarrate, tradução de Ana Cristina

Arantes Nasser, Petrópolis, Editora Vozes, 2009, p 104.

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Pode-se dizer que, de certo modo, a filosofia nasce desta ânsia por respostas, em que invariáveis são apenas as perguntas. Realmente, desde os filósofos pré-socráticos percebe-se a tentativa de explicar os fenômenos a partir da ideia de causa233, sendo certo que Aristóteles procedeu à sistematização conhecida como doutrina das quatro causas, entre as quais tem relevância imediata para este trabalho a causa eficiente ou impulsiva.

Para Aristóteles, a causa eficiente é aquela “de onde provém o começo primeiro da mudança ou do repouso, por exemplo, é causa aquele que deliberou, assim como o pai é causa da criança e, em geral, o produtor é causa do produzido e aquilo que efetua a mudança é causa daquilo que se muda234”, sendo dever do filósofo, isto é, do cientista descobrir e expor a causa geradora dos fenômenos investigados.

Após a sistematização aristotélica, os trabalhos puramente filosóficos que mais influenciaram o Direito em matéria de causalidade foram o de David Hume e Immanuel Kant. David Hume buscou demonstrar que todo conhecimento humano decorre da experiência e que a relação de causa e efeito não decorre de uma necessidade, mas é fruto da conclusão baseada em experiências anteriores235. Já Kant, influenciado profundamente pela obra de Hume, desenvolveu sua obra capital para, em apertadíssima síntese, demonstrar os limites da razão, a partir da constatação de que, embora todo conhecimento principie pela experiência, isto não significa que todo ele derive da

233 Como ensina Gerd A. Bornheim, Aristóteles referia-se aos pré-socráticos como físicos, mas não no

sentido moderno atribuído à palavra física, mas sim à physis, que compreende a totalidade de tudo o que é. “Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e a partir da physis pode então aceder a uma compreensão da totalidade do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça”. Os pré-socráticos, então, foram pioneiros na explicação do mundo circundante, o que fizeram, cada qual a sua maneira, também por meio do recurso à ideia de causa, seja ela “o fogo de Heraclito” ou “as forças do amor e do ódio de Empedocles”. Os filósofos pré-socráticos. Clássicos Cultrix, São Paulo, Editora Cultrix, 1967, p. 14.

234 ARISTÓTELES, Física I-II, prefácio, tradução, introdução e comentários de Lucas Angioni,

Campinas, Editora da Unicamp, 2009, Livro II, Capítulo 3, [194b 23], p. 48.

235 Para Hume, é apenas pela experiência “que podemos inferir a existência de um objeto da existência de

outro. A natureza da experiência é a seguinte. Lembramo-nos de ter tido exemplos freqüentes da existência de objetos de uma certa espécie; e também nos lembramos que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre acompanharam os primeiros, existindo em uma ordem regular de contigüidade e sucessão em relação a eles. Assim, lembramo-nos de ter visto aquela espécie de objetos que denominamos chama, e de ter sentido aquela espécie de sensação a que denominamos calor. Recordamo-nos, igualmente, de sua conjunção constante em todos os casos passados. Sem mais cerimônias, chamamos à primeira de causa e à segunda de

efeito, e inferimos a existência de uma da existência da outra”. HUME, David, Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais, 2ª ed. rev. e ampliada,

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experiência, ou seja, para demonstrar que a razão humana é dotada de certos conhecimentos a priori, fundamentais para toda e qualquer experiência236.

Embora Hume tenha-se dedicado mais detidamente sobre a questão da causalidade, Kant, pelo menos para o Direito, o supera em importância porque influenciou sobremaneira Hans Kelsen, talvez até hoje o filósofo do direito mais estudado do ocidente.

Assim como Kant afirma serem possíveis juízos acerca da realidade que sejam independentes de qualquer experiência, Hans Kelsen busca construir uma teoria universal do Direito, isto é, que não se limite a dado ordenamento específico237. Para concluir este projeto, Hans Kelsen necessariamente eleva suas afirmações à extrema abstração, o que, consequentemente, afastam-nas de qualquer realidade subjacente.

É, então, a partir deste plano abstrato que Hans Kelsen estrutura sua Teoria Pura, de características marcantes, entre as quais se destaca a cisão radical que realiza entre o ser e o dever ser. É justamente nesta cisão em que se acredita estar a chave para o início de uma coerente abordagem do nexo de causalidade.

Com efeito, os planos ontológico e deontológico seguem lógica diversa de compreensão, na medida em que, naquele, as relações de antecedente e consequente são descobertas, ao passo em que, neste, são construídas, ainda que a partir de, ou sobre, substrato ôntico. Por não resultar de uma necessidade, mas de uma decisão de poder238, a causalidade jurídica (imputação) não se submete aos mesmos limites a que se submete a causalidade natural239.

236 KANT, Immanuel, Crítica da razão pura, 7ª ed., tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre

Fradique Morujão, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

237 KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, 6ª ed., 5ª tiragem, tradução João Baptista Machado, São

Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 1.

238 Miguel Reale ensina que as fontes do direito “são sempre estruturas normativas que implicam a

existência de alguém dotado de um poder de decidir sobre o seu conteúdo, o que equivale a dizer um poder

de optar entre várias vias normativas possíveis, elegendo-se aquela que é declarada obrigatória, quer erga omnes, como ocorre nas hipóteses da fonte legal e da consuetudinária, quer inter partes, como se dá no caso

da fonte jurisdicional ou da fonte negocial”. REALE, Miguel, Fontes e modelos do direito: para um novo

paradigma hermenêutico, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 11.

239 Sendo o inverso igualmente verdadeiro. O raio não deixará de matar o camponês em razão de isto ser

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É por não se submeter a tais limites que, em matéria de nexo causal, o Direito pode-se comportar de, pelo menos, três maneiras distintas em relação à causalidade natural, isto é, utilizando-a, ignorando-a ou, de certa maneira, criando-a. Realmente, no mais das vezes, o Direito vale-se da causação física de uma consequência e a incorpora em seu sistema como causação jurídica, atribuindo ao causador mecânico a causação jurídica240. Porém, casos há em que o Direito ignora certa sucessão causal natural, e deixa de atribuir a causação jurídica ao causador mecânico241. Finalmente, é perfeitamente possível que o Direito atribua a causação jurídica sem se valer de qualquer substrato causal natural imediato242.

A clareza dessa certa independência do Direito com relação ao natural é dogmaticamente fundamental para que se evitem más compreensões sistemáticas como as que resultam na afirmação da possibilidade de responsabilização civil sem nexo causal, quando, na verdade, simplesmente, se está diante de hipótese de responsabilização civil com nexo causal jurídico sem substrato em relação causal natural, afinal, se houve a atribuição a alguém do dever de indenizar, é porque houve imputação (causação jurídica).

É tarefa da doutrina, então, estabelecer os pressupostos teóricos para o reconhecimento da causação jurídica e, com isso, permitir ao intérprete realizar o direito da vítima à indenização. Esta tarefa doutrinária é realizada por meio do desenvolvimento e estudo das chamadas teorias do nexo causal.