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Conceito e natureza jurídica de poder familiar

3.1 PODER FAMILIAR E A SUA EVOLUÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

3.1.3 Conceito e natureza jurídica de poder familiar

Perante o desenvolvimento de uma nova visão jurídica sobre família e, desta forma, do instituto do pátrio poder, construiu-se outra elaboração legal a este respeito, que denota mais democracia, respeito e dignidade em seu conceito, denominando-se poder familiar. Vários doutrinadores debruçaram-se para traçar uma conceituação que fosse mais apropriada para a realidade histórica e social.

Rodrigues127 conceituou poder familiar como o “conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes”.

Diniz128 apresentou em sua obra o seguinte entendimento:

Conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho.

Para Monteiro129, o instituto é considerado como o “conjunto de obrigações, a cargo dos pais, no tocante à pessoa e bens dos filhos menores”.

Cabe trazer à baila que, para Comel130, não houve, neste ínterim a criação de um novo instituto a partir do pátrio poder, mas apenas uma adequação conceitual e de nomenclatura, pois:

Assim, o que se tem é que o Código Civil evoluiu da denominação pátrio poder para poder familiar, sendo certo que não criou uma nova figura jurídica, ma assim o fez para compatibilizar a tradicional e secular existente aos novos conceitos jurídicos e valores sociais, em especial para que não evidenciasse qualquer discriminação entre os filhos a ele sujeitos, também entre o casal de pais com relação ao encargo de criar e educar os filhos, destacando o caráter instrumental da função. Tal conclusão – a de que não se criou uma nova figura jurídica – se deduz do próprio texto legal. Veja-se que o rol de atribuições de pais no exercício do poder familiar, disposto no art. 1.634 do CC é praticamente idêntico ao do pátrio poder, estabelecido no revogado art. 384. Bem assim, as causas de extinção, as hipóteses de suspensão e as de perda do poder familiar, disciplinadas nos arts. 1.635, 1.637 e 1.638, cujas alterações mínimas quando cotejadas, respectivamente, com os art.s 392, 394 e 395 do CC/1916, relativamente ao pátrio poder.

127 RODRIGUES, 2002, p. 358. 128 DINIZ, 2007, p. 514. 129 MONTEIRO, 2001, p. 277. 130

Apesar de uma alteração, aparente, na elaboração dos artigos vigentes ao Código Civil de 2002, como apresentou a autora acima, é evidente que os princípios e valores que subjazem o poder familiar divergem completamente do conceito de pátrio poder. Na atual perspectiva o poder familiar está calcado nos princípio gerais do Direito pátrio que fundamentam a atual Constituição Federal, destacando-se àqueles princípios de Direito de Família que inovaram as relações familiares em sua conceituação, valorização e democratização: a dignidade da pessoa humana, igualdade entre os gêneros, pluralidade das famílias, melhor interesse da criança. Nas palavras de Comel131

O que o Código Civil propõe, ou deve propor, é uma renovação conceitual que se inspira no texto constitucional, como resultado de profunda reformulação de valores sociais. E esse direcionamento da conformação do pátrio poder em poder familiar vai desfazer o paradigma tanto do patriarcado quanto, acrescente-se, o da secular e injustificável discriminação entre os filhos, o que por sua vez, vai implicar numa quase total renovação do discurso jurídico afeto ao tema.

Alguns doutrinadores também desejavam que o próprio termo poder familiar fosse trocado por uma nomenclatura que pudesse descaracterizar o velho conceito de pátrio poder, com uma perspectiva mais moderna e justa com os atuais preceitos e princípios constitucionais, dentre eles, uma das denominações mais aceitas seria o termo autoridade parental, pois conforme as considerações de Comel132 sobre a escolha do termo poder familiar,

Embora eleita pelo legislador, a designação poder familiar não parece ser a mais apropriada. Veja-se que se a intenção era adequar a terminologia do instituto à concepção de igualdade entre os pais, o termo poder é inadequado por não expressar a real espécie de relação que a lei pretende seja a estabelecida entre eles e os filhos menores. Além disso, a expressão familiar, a toda evidência, dá a nítida idéia de que o encargo (ou o poder, no caso) não é somente dos pais, senão da família, donde se poderia até pensar que também os avós, ou até mesmo os irmãos, estariam investidos na função. [...] Embora a impropriedade do vocábulo, a modificação, de qualquer forma, é salutar à medida que significa um divisor de águas, delimitando bem a renovação conceitual que pretende significar em relação ao pátrio poder, e abrindo espaço para que seja efetivamente transformando o discurso jurídico que vai permear o poder familiar a partir do Código Civil.

Para buscar uma definição apropriada de poder familiar Comel133 apresenta o que considera os elementos essenciais deste instituto e que não podem deixar de conter ao elaborar a sua conceituação. Em suas palavras:

131 COMEL, 2003, p. 55. 132 Ibid., p. 59. 133 Ibid., p. 66-68.

Em primeiro lugar, é preciso destacar, [...] que o poder familiar é, antes, uma função: o encargo de atender ao filho, assegurando-lhe o atendimento de todos os direitos que lhe são reconhecidos como pessoa, em face de sua condição peculiar. [...] Em segundo, incluem-se os direitos outorgados aos pais como instrumento para que possam cumprir com o referido dever. São as prerrogativas que se reconhecem aos titulares da função, pois são indispensáveis para seu desempenho. [...] O terceiro elemento fundamental, [...] é que tanto a titularidade quanto o exercício estão definitivamente atribuídos ao pai e à mãe, em igualdade de condições, os quais se obrigam por tudo e em tudo a cumprir com a função. O quarto ponto é que essa função é desempenhada sempre no superior interesse do filho. [...] Como quinto elemento, é de considerar que o poder familiar tem num dos polos todo e qualquer filho menor de idade e não-emancipado. [...] Por outro lado, os titulares são os pais, legalmente reconhecidos, homem e mulher, independentemente de seu estado civil, com as mesmas obrigações, encargos e prerrogativas. [...] Enfim, como último elemento integrante do conceito de poder familiar, o dever do filho, correlato ao direito dos pais, de obediência às orientações paternas, sob pena de não se realizarem as funções do poder familiar [sem grifo no original].

Na legislação, entretanto, não se encontra uma definição sobre o tema, mas, no Código Civil vigente, o poder familiar encontra respaldo, enquanto poder-dever, do artigo 1.630 ao 1.638, destacando o poder dos pais sobre os filhos enquanto menores134, durante a vigência do casamento ou da união estável e a sua continuidade mesmo após a sua dissolução135. Para Akel136:

De fato, o Estado impõe aos pais, através do poder a eles conferido, a obrigação de atender ao filho, assegurando todos os direitos que lhe são reconhecidos em face de sua condição peculiar de desenvolvimento. A autoridade dos genitores prevalece, assim, em razão de melhor atingir os fins necessários à adequada formação dos filhos. O fato de caracterizar um poder, não significa arbitrariedade, mas um misto de autoridade e dever, vale dizer, os pais têm obrigação de exercer o poder familiar tendo em vista, tão-somente, o benefício dos filhos, em razão de sua experiência e maturidade em face destes.

Tal circunstância foi também prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente137, em seu artigo 21138 (apesar de estar com a antiga nomenclatura), comparado com o artigo 226 caput139 e 226 § 5º140 da Constituição Federal do Brasil141 deixando bem

134

Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores. 135

Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou

impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo. Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos [sem grifo no original]. 136

AKEL, 2008, p. 11. 137

BRASIL, 1990. 138

Art. 21. O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.

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claro que a titularidade do poder familiar caberá aos pais em igualdade de condições e que “o poder familiar poderia ser definido como uma submissão do pai às necessidades do filho e da sociedade”,142 apresentando, com isso, a sua natureza existencial, pois “predomina o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o poder familiar é um encargo, um múnus, supervisionado pelo Estado, a fim de que, no seu efetivo exercício, sejam evitados possíveis abusos”.143

Em relação à natureza jurídica do poder familiar, há de se compreender que, ele se concretiza na medida em que ocorre a constituição de qualquer modelo de entidade familiar e, nesta conformação, será através do nascimento ou a adoção de uma criança e/ou um adolescente que se consolidará o dever – poder familiar. A necessidade natural de dependência e social de proteção à criança e ao adolescente até a tenra idade é uma das funções inerentes à maternidade e paternidade, pois, “independente do arranjo familiar, a família é indispensável para assegurar a proteção, o desenvolvimento e a sobrevivência dos filhos”.144

Assim, portanto,

O Poder Familiar resulta de uma necessidade natural. O ente humano precisa, principalmente durante sua infância, de cuidados essenciais à sua criação e educação. Diferentemente de outras espécies animais, não pode prescindir de amparo, defesa e proteção por um período maior de sua existência. As pessoas naturalmente indicadas para o exercício dessas funções são os pais, conforme é destacado no art. 229 da Constituição Federal.145

A Constituição146, no art. 227147 caput, apregoa que além da sociedade e do Estado, cabe à família, a condição e o dever de assegurar à criança e ao adolescente todos os cuidados necessários e essenciais para o seu perfeito desenvolvimento em sociedade. Categoria que eleva os direitos e os transforma em deveres sociais da família, que são

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Art. 226. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 141 BRASIL, 1988. 142 AKEL, 2008, p. 18. 143 Ibid., p. 13. 144 QUINTAS, 2009, p. 5. 145 SILVA, 2008, p. 34. 146 BRASIL, 1988. 147

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

exercidos através de prerrogativas que estão definidas em lei, precisamente no artigo 229148, primeira parte, da CF/1988 e no art. 1.634 149do Código Civil de 2002150. Para Comel151:

Nessa linha de raciocínio, repise-se, não se pode dizer que a natureza jurídica do poder familiar seja de direito subjetivo, posto que ainda que seja um poder concedido aos pais pelo Estado, não implica seja exercido livremente, segundo a vontade e no interesse do titular. É verdadeiramente um poder instrumental, outorgado aos pais tão-somente para ser exercido no interesse do filho, submetido e dirigido exclusivamente à sua formação integral, com nítido caráter de função social. [...] É uma função de ordem pública, da qual não se podem furtar os pais, no interesse do filho, também no da própria sociedade e do Estado, já que cediço é ser a família a base daquela e alicerce deste. Tal função tem que por finalidade não somente a proteção do filho, como pessoa em desenvolvimento, mas também, [...] como manifestação da função social do poder familiar e não somente como função familiar.

Para Grisard Filho não há, neste aspecto, um posicionamento único, frente à jurídica natureza do poder familiar, ocorrendo enfoques diferenciados sob o ponto de vista do Estado e terceiros e nas relações entre pais e filhos. De acordo com suas análises152:

Em relação ao Estado e a terceiros, o poder familiar é atribuído aos pais como um encargo (representação, administração dos bens, guarda), um officium, supervisionado pelo Estado, a fim de que, no seu exercício, sejam evitados abusos. [...] Mas, nas relações pai-filho, sob outro enfoque, o poder familiar é um conjunto incindível de poderes-deveres, que deve ser altruisticamente exercido pelos pais no interesse dos filhos, à vista de seu integral desenvolvimento, até que se bastem a si mesmos.

Denota-se, portanto, que a natureza jurídica do poder familiar, enquanto poder – dever tem acima de tudo, o foco na criança e no adolescente, pois “colocando-se o filho como centro da matéria passou-se a entender que o poder familiar deveria ser exercido sempre em razão do melhor interesse da criança”153 o que se caracteriza como um direito, mas, principalmente, um dever sob o domínio da família, com o apoio e supervisão incondicional, da sociedade e do Estado. Isto significa que a “legislação moderna consagra as crianças e os

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Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

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Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê- los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. 150 BRASIL, 2002. 151 COMEL, 2003, p. 63-64. 152 GRISARD FILHO, 2005, p. 40-41. 153 QUINTAS, 2009, p. 13.

adolescentes como sujeitos de direitos e deveres, não mais se falando de poder/subordinação sobre eles, e sim, em obrigações/autoridade em sua relação.”154