• Nenhum resultado encontrado

1.1 O PERCURSO HISTÓRICO DO CONCEITO DE CULTURA

1.1.3 A Concepção estrutural de Thompson

Depois de traçar um caminho que percorre desde o que nomeou concepção clássica até as visões antropológicas de cultura, Thompson (1995) propôs uma versão alternativa. Com base na análise interpretativa de Geertz (2008), o autor objetivou preencher as lacunas no trabalho do antropólogo, chamando a atenção para os FC

22 Geertz (2008) faz uso da palavra poder no sentido de poder de causa, isto é, a cultura como motivo

de determinado acontecimento, que pode provocar algum efeito sobre um processo social particular (THOMPSON, 1995).

que define como formas simbólicas, isto é, “ações, objetos e expressões significativas de vários tipos”, produzidos, transmitidos e recebidos por meio de processos sócio- históricos específicos e inseridos em contextos socialmente estruturados; são “rotineiramente transmitidos e interpretados pelos atores no curso de suas vidas diárias” (THOMPSON, 1995, p. 181), que expressam as características significativas da vida social.

Thompson (1995) pretende afastar a sua concepção do estruturalismo comumente associado a pensadores como Lévi-Strauss (2014) o qual, influenciado pela Fonologia Estrutural, desenvolveu a análise antropológica estrutural centrada no estudo das relações sociais, que, segundo ele, são “a matéria-prima empregada para a construção de modelos que tornam manifesta a própria estrutura social” (LÉVI- STRAUSS, 2014, p. 400). Thompson (1995, p. 197-198) evidencia que a estrutura social é composta por “assimetrias e diferenças relativamente estáveis”, revelando que ela é constituída em instituições sociais nas quais são produzidas, transmitidas e recebidas as formas simbólicas mais complexas (como discursos ou programas de televisão), e em campos de interação, que abrangem tanto as posições dentro de um espaço social ocupadas por indivíduos particulares (análise sincrônica) quanto a trajetória que eles percorrem no curso de suas vidas (análise diacrônica), diferente do antropólogo belga, que prioriza a perspectiva sincrônica para sistematizar os modelos das relações sociais.

As formas simbólicas apresentam cinco características, descritas conforme seus aspectos intencionais, convencionais, estruturais, referenciais e contextuais. Os quatro primeiros se relacionam com termos como significado, sentido e significação. O último envolve as características socialmente estruturadas das formas simbólicas que, na opinião de Thompson (1995), em geral, são negligenciadas nas discussões sobre significado e interpretação, mas são essenciais à análise da cultura. Em sua discussão, o autor afirma não pretender fazer distinção entre linguístico e não linguístico e, por isso, trata as formas simbólicas tanto como ações, gestos e rituais quanto como manifestações verbais, textos, programas de televisão e obras de arte.

Começamos por considerar o aspecto intencional. Thompson (1995) aponta que quando um sujeito produz, constrói e emprega as formas simbólicas, tem como objetivo exteriorizar a outro(s) uma mensagem e demonstra dessa maneira suas intenções. O autor ainda destaca o fato de que a interpretação do significado não está condicionada somente à intenção que, em alguns casos, pode ser obscura, confusa,

incoerente ou inacessível. Além disso, também é possível que a intenção do sujeito- produtor seja divergente da interpretação do(s) outro(s), evidenciando que aquilo que uma pessoa diz, nem sempre condiz com o que ela pretende exteriorizar. O significado das formas simbólicas, do ponto de vista de Thompson (1995), depende de (e é determinado por) uma variedade de fatores, ou seja, está subordinado à consideração dos distintos aspectos das formas simbólicas.

O aspecto convencional, de acordo com Thompson (1995), se associa a um conjunto de regras, convenções ou códigos que regem a produção, construção, emprego e interpretação das formas simbólicas, ao implicar normas que podem incluir regras de gramática, convenções de estilo e expressão, códigos ligados a contextos específicos ou convenções que organizam a interação dos indivíduos (ex: convenções do cortejo amoroso). O autor aponta que nem sempre é possível estabelecer explicitamente tais regras, códigos ou convenções, porque alguns deles fazem parte do conhecimento tácito, ou seja, envolvem aquilo que o indivíduo adquiriu ao longo da vida e que se manifesta de forma espontânea, intuitiva e experimental e, portanto, configura-se em uma experiência individual e difícil de ser transmitida a outro de maneira clara23. Entretanto, conforme o sociólogo, mesmo que esse tipo de

conhecimento não esteja explícito, pode ser compartilhado por indivíduos pela experiência em meio social.

Para Thompson (1995), da mesma forma que há a possibilidade da intenção do sujeito-produtor e da interpretação do(s) outro(s) sofrerem divergência, as regras de codificação (envolvidas na produção, construção e emprego das formas simbólicas) e decodificação (relacionadas à interpretação delas) também podem ser discrepantes. Assim, o autor ressalta que

[...] uma ação pode ser interpretada como um ato de resistência ou uma ameaça para a ordem social, como um sinal de exaustão ou um sintoma de doença mental, mesmo que essa ação não tenha sido codificada de acordo com qualquer regra ou convenção particular (THOMPSON, 1995, p. 187).

Com relação ao aspecto estrutural, de acordo com o sociólogo, as formas simbólicas se compõem de elementos que se inter-relacionam em uma estrutura articulada e a organização desses elementos e a relação entre eles é regida por um

23 Sobre o conhecimento tácito consultar POLANYI, M. The Tacit Dimension. London: Routledge and

sistema simbólico24 (ou como Thompson denomina, sistema corporificado em uma

forma simbólica) que se configura como um modelo, conforme a análise de Lévi- Strauss (2014), um conjunto geral de elementos existentes independentemente de formas simbólicas particulares, mas que se concretizam nelas.

Segundo Thompson (1995, p. 189), a análise de estrutura, isto é, dos traços estruturais, se restringe a interpretar os elementos em casos concretos de expressão (manifestações verbais, expressões ou textos), o que a torna limitada, pois as “formas simbólicas não são apenas concatenações de elementos e suas inter-relações”, mas são também “representações de algo, apresentam ou representam alguma coisa”, o que implica valorizar o aspecto referencial. Esse tipo de análise, ao focar os traços estruturais e os elementos sistêmicos, também negligencia o contexto sócio-histórico.

Quanto ao aspecto referencial, Thompson (1995) afirma que as formas simbólicas são construções que representam, referem-se e dizem algo sobre alguma coisa, ou seja, podem substituir ou representar um objeto, indivíduo ou situação. O autor utiliza como exemplo a charge25, que satiriza acontecimentos da atualidade e

cujo entendimento implica o conhecimento da referência na qual se baseia. Dessa maneira, selecionamos um exemplo de 2011 com esse gênero do chargista brasileiro Angeli.

24 Thompson (1995, p. 188) destacou que o sistema simbólico também foi de interesse de outros

estudiosos, como o linguista Ferdinand de Saussure, que “buscou isolar a linguagem como um sistema simbólico, como um ‘sistema de signos’ de forma a estudar seus elementos básicos e seus princípios de funcionamento”.

Figura 5 - E Deus criou o dinheiro26

A charge (Figura 5) faz referência à obra de Michelangelo pintada no século XVII, A criação de Adão (Figura 6). Dessa forma, a representação adquire uma especificidade referencial.

Figura 6 - A criação de Adão, de Michelangelo27

A singularidade referencial é concernente a uma imagem ou expressão particular que, em uma dada ocasião de uso, se refere a objeto(s), indivíduo(s) ou situação(ões) específico(s). Thompson (1995, p. 190) o demonstra com o exemplo dos pronomes eu e você, denominados pelo autor como “termos referenciais

26 Disponível em: <http://n.i.uol.com.br/humor/1101_f_010.jpg>. Acesso em: 20 set. 2016.

27 Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/God2-Sistine_Chapel.png>.

livremente flutuantes”, pois remetem a indivíduos específicos que os pronunciam em contextos particulares.

Quanto ao aspecto contextual, Thompson (1995, p. 192) destaca em todo seu trabalho que no estudo sobre a cultura é importante considerar os processos e contextos sócio-históricos específicos dentro e por meio dos quais as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas. Em contextos particulares como, por exemplo, numa interação entre duas pessoas, uma frase simples dita por um dos interlocutores carrega traços das relações características desse contexto, tais como “sotaque, entonação, modo de expressar-se, escolha das palavras, estilo de expressão etc.” (THOMPSON, 1995, p. 192) e que são importantes na interpretação do significado.

O autor ainda destaca que, em situações como uma interação face a face, por exemplo, o contexto é o mesmo para os interlocutores, porém, há circunstâncias em que o contexto de produção pode ser distante espacial e/ou temporalmente do contexto de recepção, como na transmissão de um programa de televisão ou de um conteúdo (vídeo, texto, foto) da internet.

Além disso, do ponto de vista de Thompson (1995), o modo como uma forma simbólica é interpretada pode depender tanto das capacidades utilizadas pelos indivíduos que as recebem como também das que estão dotados aqueles que as produzem. As formas simbólicas também sofrem com constantes processos nos quais são objeto de valorização, avaliação e conflito, isto é, passam por fases em que são constantemente avaliadas e lhes são atribuídos valores e, por isso, podem ser aclamadas ou contestadas pelos indivíduos que as produzem ou recebem.