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Conforme Fiorin (2006, p. 60),

depois que os Parâmetros Curriculares Nacionais estabeleceram que o ensino de Português fosse feito com base nos gêneros, apareceram muitos livros didáticos que vêem o gênero como um conjunto de propriedades formais a que o texto deve obedecer.

Dessa forma, gerou-se o entendimento de que esse documento era um parâmetro a ser seguido. Segundo o mesmo autor, essa concepção já era conhecida na Grécia antiga e utilizada para classificar o conjunto de textos com características comuns, como um agrupamento de formas fixas, imutáveis. Apesar de a noção difundida pelos documentos estar baseada na teoria de Bakhtin (2003), foi se distorcendo já que muitos entendiam os PCN como registro regulador, sem considerar o seu caráter orientador e, por isso, seguiam a definição grega. Dessa forma, julgamos importante esclarecer o significado do termo gênero não só pela relação que ele mantém com os PCN72, mas também porque o associamos ao nosso objeto de estudo,

a tira cômica.

De acordo com Bakhtin (2003, p. 262, grifos do autor) “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. Para o autor, o enunciado é a real unidade da comunicação discursiva, ou seja, é por meio dela que o discurso se concretiza, constituindo um evento único e irrepetível, pois, ainda que um mesmo enunciado seja proferido novamente, ele estará inserido em outra situação e/ou momento histórico, recebendo sentido distinto. Assim, é necessário pontuar que o termo “relativamente” demonstra que Bakhtin (2003) considerava a historicidade dos gêneros, a sua mudança, o que evidencia que esse conceito não carrega um caráter normativo como se tem observado na sua utilização em contexto educacional.

Fiorin (2006, p. 61) aponta que os indivíduos se comunicam por meio dos gêneros em uma determinada esfera de atividade, estabelecendo uma “interconexão

72 No Capítulo três, discutimos de maneira mais aprofundada como é tratado o termo gênero nesses

da linguagem com a vida social”. Do ponto de vista do autor, os gêneros são novas formas de ver a realidade, o que implica o aparecimento constante dos mais atuais e a alteração dos já existentes.

Ainda segundo Fiorin (2006, p.61), Bakhtin não considera o produto e sim o processo de produção, por isso seu estudo parte do “vínculo intrínseco existente entre a utilização da linguagem e as atividades humanas”. Da perspectiva de Bakhtin (2003, p. 262), “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)” que refletem, de acordo com o campo de atividades humanas, determinadas condições e finalidades por seu conteúdo temático, estilo de linguagem e construção composicional.

O conteúdo temático, de acordo com Fiorin (2006, p. 62), não se refere ao assunto específico de um texto e, sim, a um “domínio de sentido de que se ocupa o gênero”, o que o autor exemplifica com as cartas de amor, cujo conteúdo temático é concernente às relações amorosas, porém pode se constituir de assunto específico, como o rompimento por traição. Na opinião do mesmo autor, a construção composicional corresponde ao modo de organização do texto, à forma como ele é estruturado. O estilo de linguagem tem relação com a seleção dos recursos gramaticais, lexicais e fraseológicos “em função da imagem do interlocutor e de como se presume sua compreensão responsiva ativa do enunciado” (FIORIN, 2006, p. 62). Em seus estudos acerca do conceito de gênero discursivo, Maingueneau (2010, 2015) tomou uma direção um pouco distinta da seguida pelo autor russo. Grillo e Veloso (2007) apontam que os estudos bakhtinianos e os do analista do discurso apresentam teorias as quais, em certos aspectos, ora se aproximam ora se distanciam. Uma das distinções acerca do gênero se refere ao outro que, conforme as mesmas autoras,

o Círculo [de Bakhtin] o identifica como elemento capaz de orientar a formulação do discurso do EU no enunciado concreto, enquanto Maingueneau focaliza esse interlocutor em consonância com a legitimação de seu discurso dentro da cena enunciativa que pressupõe lugares, momentos e atores legítimos (ou não) (GRILLO; VELOSO, 2007, p. 247).

Nos estudos bakhtinianos, o outro orienta o discurso, é o “elemento-chave” da constituição dos gêneros, enquanto que, para Maingueneau, “a categoria do gênero do discurso seria definida por critérios situacionais” (GRILLO; VELOSO, 2007, p. 240).

Para o pesquisador francês, não somente o papel e a relação entre interlocutor e enunciador são essenciais, mas também a sua inserção em uma cena de enunciação. Assim, Maingueneau (2010, p. 130) afirma que os gêneros do discurso são considerados “dispositivos de comunicação sócio-historicamente condicionados, em constante mudança” e que não é simples categorizar os gêneros, porque são “atividades verbais heterogêneas” (MAINGUENEAU, 2015, p. 109), ou seja, modificam-se frequentemente conforme as condições sociais e históricas.

Em um nível mais imediato, Maingueneau (2015) classifica os gêneros em três grandes tipos:

1) autorais: é uma categoria atribuída pelo próprio autor, cujos gêneros são distinguidos por uma etiqueta (por exemplo, o ensaio, a dissertação) e por isso “impõe-se um quadro de atividade discursiva, indica-se ao destinatário como se pretende que o texto seja interpretado” (MAINGUENEAU, 2015, p. 109)

2) rotineiros: podem ser a entrevista radiofônica, o debate televisionado, a consulta médica. Diferente dos autorais, a questão principal não é o conhecimento da fonte, quem os produziu. As normas que os regem “não resultam de uma decisão individual, mas da estabilização de restrições sociais e psicológicas de diversos tipos, ligadas a uma atividade verbal que se exerce em um tipo de situação determinada” (MAINGUENEAU, 2015, p. 110)

3) conversas: têm caráter imediato (no tempo e no espaço), familiar (não formal), gratuito e não acabado (não precisam ter uma finalidade específica, senão a própria conversa), igualitário (mesmo que não tenham o mesmo estatuto, os interlocutores, em geral, dispõem do mesmo conjunto de direitos e deveres).

Essas categorias também podem ser classificadas em: 1) regime instituído, que “atribui papéis no interior de dispositivos restritivos” (MAINGUENEAU, 2015, p. 113), isto é, dele fazem parte os autorais e rotineiros que são relativamente mais fáceis de serem nomeados como, por exemplo, o talk-show, o manifesto, a confissão; 2) regime conversacional, em que “as identidades e as situações são fluidas e instáveis” (MAINGUENEAU, 2015, p. 113) e se incluem as conversas. Ademais,

enquanto o regime conversacional é acessível a todos os locutores, que, de alguma forma, estão nele imersos desde o seu nascimento, o acesso aos gêneros instituídos é muito desigualmente distribuído: cada indivíduo, conforme sua profissão e o capital cultural ou social de que dispõe, domina ou não tais e tais gêneros (MAINGUENEAU, 2015, p. 114).

Como apontamos anteriormente, a categorização dos gêneros da perspectiva do autor francês é pautada em critérios situacionais e, por isso, em seus estudos merece destaque a cena de enunciação. Maingueneau (2015) utiliza a palavra cena, pois compreende que esta pode referir-se tanto ao espaço, no qual ocorre o ato comunicativo, como ao processo, que envolve as sequências de ações verbais ou não verbais. A cena de enunciação se divide em três tipos.

A primeira delas, a cena englobante, seria o “tipo de discurso” ou um “recorte de um setor da atividade social caracterizável por uma rede de gêneros de discurso” (MAINGUENEAU, 2015, p. 118). Refere-se ao que Marcuschi (2003) denomina domínio discursivo e pode ser de cunho político, publicitário, religioso etc.

Em um sentido mais específico que a anterior está a segunda, a cena genérica, que, segundo Maingueneau (2015, p. 120), “funciona como normas que suscitam expectativas”, as quais podem estar relacionadas com:

1) uma ou mais finalidades: que auxiliam no desenvolvimento de estratégias na produção e interpretação dos enunciados;

2) os papéis dos parceiros: cada papel desempenhado pelos interlocutores acarreta direitos e deveres que podem estar associados a comportamentos e atitudes;

3) um lugar apropriado para seu sucesso: o gênero pode exigir que sua execução seja em um ambiente físico, como escola, tribunal, ou virtual, como a web;

4) um modo de inscrição na temporalidade: a periodicidade ou singularidade dos enunciados, duração ou continuidade;

5) um suporte: é o “modo de existência material” (MAINGUENEAU, 2015, p. 122) do gênero e podem ser as ondas do rádio ou um livro em papel; 6) uma composição: a construção do gênero só pode ser dominada,

7) um uso específico de recursos linguísticos: “cada gênero de discurso, impõe, tacitamente ou não, restrições na matéria”, isto é, gêneros como os administrativos excluem o “nível da língua familiar” pois exigem outro repertório linguístico (MAINGUENEAU, 2015, p. 122).

Entretanto, somente “as normas constitutivas da cena genérica” (MAINGUENEAU, 2015, p. 122) não são suficientes para evidenciar a singularidade de um texto, o que pode ser observado no âmbito da terceira cena, a cenografia. Conforme o autor,

a noção de cenografia se apoia na ideia de que o enunciador, por meio da enunciação, organiza a situação a partir da qual pretende enunciar. Todo discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende, de fato, suscitar a adesão dos destinatários instaurando a cenografia que o legitima (MAINGUENEAU, 2015, p. 123).

Maingueneau (2015, p. 123, grifo do autor) oferece como exemplo o romance que “pode ser enunciado por meio de uma cenografia do diário íntimo, do relato de viagem, de uma conversa ao pé do fogo, de uma correspondência amorosa”. Portanto, segundo Ramos (2014a, p. 34), a cenografia seria a “maneira como é transmitido o quadro cênico (cena englobante + cena genérica)”.

A etiqueta que um autor utiliza para categorizar o gênero discursivo do qual se utiliza caracteriza “apenas parte da realidade comunicativa do texto que a cena genérica e a cena englobante impõem” (MAINGUENEAU, 2015, p. 128). Portanto,

embora etiquetas como “newsmagazine” e “jornal televisivo” sintetizem o conjunto dos parâmetros característicos de determinado gênero de discurso e as circunstâncias do ato de comunicação que ele efetua, o termo “confissão” empregado por Rousseau (Les Réveries

do prometeur solitaire) não permite determinar de qual tipo de discurso

o texto resulta, por qual canal ele passa, qual é o seu modo de produção e de consumo, sua organização textual etc. (MAINGUENEAU, 2015, p. 128).

Dessa forma, evidencia-se a complexidade quanto à categorização do conceito gênero discursivo, visto que ao concebê-la como “dispositivo de comunicação sócio- historicamente condicionado” (MAINGUENEAU, 2010, p. 130), o autor destaca que etiquetas como a carta ou o relatório, frequentemente considerados gêneros, “parecem de fato independentes de um momento ou de um lugar preciso e recobrem

práticas heterogêneas” (MAINGUENEAU, 2015, p. 129), portanto, reúnem traços que se mantêm e não sofrem restrições sócio-históricas. Os diálogos, por exemplo, “se apresentam como uma alternância de turnos de fala entre pelo menos dois interlocutores” (MAINGUENEAU, 2015, p. 129), porém, ao longo do tempo e conforme o local, manifestam outras características que fazem com que despontem formas diversas de gêneros. Dessa maneira, o diálogo, bem como a carta e o relatório, segundo Maingueneau (2010, 2015), recebem uma classificação que abrange determinada quantidade de textos acima dos gêneros e são denominados hipergêneros. Na opinião do mesmo autor,

alguns hipergêneros, como o diálogo, o jornal ou a carta são, antes de tudo, modos de apresentação formal, de organização dos enunciados: eles restringem frouxamente a enunciação. Outros, como o relatório ou a entrevista, são mais restritivos: um relatório de polícia e um relatório de um especialista apresentam algumas semelhanças enunciativas (MAINGUENEAU, 2015, p. 130).

Assim, compreendemos que a noção de gênero não está ligada a normas para o estabelecimento de formas fixas de textos e sim que a finalidade, o estilo e o conteúdo temático do enunciado se vinculam à atividade humana, bem como ao contexto sócio-histórico no qual esse enunciado é produzido e veiculado. Além disso, determinadas etiquetas com as quais se classificam certos gêneros podem apresentar características que se mantêm ao longo do tempo e/ou independem do local de produção como ocorre com o diálogo e a carta, os quais, devido a essas condições, podem ser considerados em uma categoria acima do gênero, o hipergênero. Em posse desses conceitos, Ramos (2007) o relaciona com as HQ e demais gêneros a elas ligados, conforme discorremos no item seguinte.