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2.2 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: GÊNERO OU HIPERGÊNERO?

2.2.2 O gênero tira cômica e suas diferentes denominações

Ramos (2007) aponta que há uma percepção polissêmica do termo tira, visto que existem distintas formas de referir-se a esse gênero: tira humorística, tira diária, tira de quadrinhos, tira em quadrinhos, tira de jornal, tirinhas etc. Essa diversidade, segundo o mesmo autor, ocorre em torno de três eixos: a linguagem utilizada (quadrinho), o local de publicação (jornal) e a temática abordada (de humor ou cômico). Não utilizamos o complemento em ou de quadrinhos por já estar associado ao hipergênero, e nem de jornal, já que não são veiculados somente nesse suporte, mas também em páginas da web, como as redes sociais ou blogs. Além disso, apesar do teor humorístico nem sempre estar presente nas tiras de maneira geral, optamos por empregar, neste trabalho, a designação tira cômica, visto que há predomínio desse caráter no gênero nos LD selecionados.

A palavra tira se refere ao formato que se consolidou devido a interesses comerciais, uma vez que, na opinião de Ramos (2010), a forma fixa78 facilitou aos

78 Ramos (2009a) aponta que no Brasil esse formato varia conforme o jornal: na Folha de S. Paulo, as

dimensões são 15 cm por 4 cm, no Estado de S. Paulo, são 14 cm por 4 cm e n’O Globo, do Rio de Janeiro, são 12 cm por 3,5 cm.

autores a venda de suas produções para diversos jornais, principal meio de divulgação desse gênero no início do século XX. Assim, a padronização do tamanho auxiliava na configuração das páginas do jornal que poderiam ser previamente diagramadas, podendo a tira ser encaixada em um espaço pré-estabelecido, o que agilizava a “dinâmica do fechamento diário das edições” (RAMOS, 2009a, p.4). De acordo com Ramos (2007, p. 251), o estabelecimento do formato horizontal, curto e fixo das tiras “cria padrões reconhecíveis para os leitores e determina a estrutura da narrativa dos gêneros”, o que as consolidou e as tornou conhecidas em vários países. Eisner (2005, p. 18) ressalta que

leitores e espectadores identificam o conteúdo com sua embalagem. Os leitores de quadrinhos esperam que os quadrinhos cheguem até eles em embalagens familiares. Uma história contada num formato não-convencional pode ser percebida de maneira diferente. O formato tem uma influência importante na narrativa gráfica.

Entre os gêneros ligados ao formato tira, segundo Ramos (2014a), encontramos, além da tira cômica, as tiras seriadas, as tiras cômicas seriadas e as tiras livres. Para delimitar melhor nosso objeto de estudo discorremos a seguir acerca de cada uma delas.

As tiras cômicas, de acordo com o mesmo autor, são as mais recorrentes tanto em jornais impressos como em mídias virtuais. Analisando as condições sociocomunicativas nas quais esse gênero é constituído, lido e veiculado, Ramos (2014a, p. 40-41) elencou as seguintes características:

- tendem a apresentar formato fixo, de uma coluna;

- a tendência é que o formato seja horizontal, de um (mais comum) ou dois andares; em revistas em quadrinhos, pode aparecer também na vertical79; nas mídias virtuais, há casos de alargamento no tamanho;

- a tendência é de uso de poucos quadrinhos, dada a limitação do formato (o que constitui narrativas mais curtas);

- a tendência é de imagens desenhadas; há registro de casos que utilizam fotografias, mas são raros;

- em jornais, é comum aparecer na parte de cima da tira o título e o nome do autor; em coletâneas feitas em livros, essas informações são suprimidas das tiras porque aparecem em geral na capa da obra ou nos títulos das páginas virtuais;

- os personagens podem ser fixos ou não;

- há predomínio da sequência narrativa, com uso de diálogos;

79 De acordo com Ramos (2014a), isso ocorre, por exemplo, na página final das edições da Turma da

- o assunto abordado é humorístico;

- há tendência de criar um desfecho inesperado, como se fosse uma piada;

- a narrativa pode continuar a temática em outra tira.

Conforme observamos anteriormente, o formato é um dos traços que auxilia o leitor na identificação do gênero. Contudo, apesar de ainda se manter padronizado nas publicações em jornais (VERGUEIRO, 2007), Ramos (2014, p. 99) constatou uma mudança devido à alteração do “molde físico de veiculação”, o que gerou “no Brasil diferentes casos de fuga da estabilidade”. Não somente em nosso país, mas também em outros esse fenômeno ocorre, principalmente pela divulgação das tiras em meio eletrônico, visto que não há mais a necessidade de padronização para adequar-se a um formato específico como ocorre nos jornais impressos. Segundo o mesmo autor, o quadrinista mantém o rótulo para o gênero que escreve o que também é aceito pelo leitor e “constrói-se, assim, uma relação interacional, mediada por um texto que, para os dois extremos do processo comunicacional, é visto como tira” (RAMOS, 2014, p. 100).

Um exemplo dessa mudança no formato é o do blog Dosis Diarias, de Alberto Montt. O quadrinista mantém o mesmo padrão para todas as suas HQ, que podem ser cartuns ou tiras cômicas. Esses dois gêneros podem se entrelaçar em alguns casos, o que configura um complicador para a sua classificação, como podemos verificar no exemplo da Figura 16, pois dependendo de quais caracteristicas forem levadas em consideração ou quais delas são mais ou menos valorizadas, será considerado cartum ou tira.

Figura 16 - Dosis diarias80

A Figura 16, apesar de seu formato retangular (proporcional ao tamanho de duas tiras juntas, porém na vertical), pode ser caracterizada como tira cômica por apresentar personagens fixos, Laura e o dinossauro – de Alberto Montt –, e pelo final inesperado de cunho humorístico (marcado pela fala do dinossauro que quebra a expectativa da brincadeira da menina). Destacamos também que as tiras cômicas

80 Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-fXQojKgNUNw/VfC4ACLWNMI/AAAAAAAAJkQ/sEFbX1-

desses personagens podem apresentar-se divididas em até quatro quadrinhos, sempre na vertical.

Quanto ao caráter cômico, Innocente (2005), ao analisar uma relação de tiras cômicas com base em Possenti (1998), elencou os recursos linguísticos e gráficos que contribuem para a ocorrência do humor: ambiguidade, inferência, conhecimento prévio, fonética, variação linguística e recursos gráficos. Caso algum desses elementos não seja compartilhado com o leitor, a tira cômica pode não provocar o riso porque, como afirma Possenti (2013), o discurso humorístico apela a uma memória ou saber de dados que remetem a outros textos ou contextos, dos quais podem fazer parte os FC. O desconhecimento deles pode não resultar no riso, o que não implica que o humor seja cultural, ou seja, a cultura não pode ser vista como uma característica definidora do texto humorístico. O que ocorre é que, quando no texto falta a memória e exigem-se explicações, perde-se o efeito humorístico.

As tiras seriadas, de acordo com Ramos (2014a), são marcadas por umas histórias contadas em partes, que funcionam como capítulos, assim como ocorre nas novelas. A vinheta final serve de gancho ou momento de tensão para a continuação na tira seguinte (VERGUEIRO, 2007, p. 45). Como a ação pautava a narrativa, independente do tema, eram conhecidas como tiras de aventura (RAMOS, 2014a), conforme exemplificamos na Figura 17:

Figura 17 - Agente Secreto X-981

Ramos (2014a) aponta que há um gênero híbrido dos dois anteriores: as tiras cômicas seriadas, que apresentam o desfecho inesperado e podem continuar o tema em outra tira, as quais podem formar pequenas histórias independentes e que fazem parte de uma narrativa maior. Um exemplo disso são algumas das tiras de Mafalda (como podemos observar nas duas tiras da Figura 18), cuja sequencialidade só pode

81 Disponível em: <http://quadro-a-quadro.blog.br/wp-content/uploads/2011/02/Agente-secreto-X-9-

ser observada quando organizada em livros ou se, na época em que foram publicadas, o leitor comprasse diariamente os jornais impressos.

Figura 18 - Mafalda 1 Fonte: Quino (1972, p. 14)

Do ponto de vista de Ramos (2014a, p. 53), em meados dos anos 2000, Laerte foi a quadrinista brasileira que deu os primeiros passos para se instaurar a instabilidade na tira cômica até aquele momento bastante estável, tendência seguida por nomes como Angeli, Marcelo Campos entre outros. As produções desses autores evidenciaram um afastamento do aspecto cômico e dos personagens e situações fixos e a consolidação de temáticas mais introspectivas que culminaram no que Ramos (2014a) classificou como tiras livres, as quais se caracterizaram pela experimentação, gráfica e temática. Apesar disso, esse gênero tanto pode manter o formato da tira cômica como pode constituir-se em formatos equivalentes ao dobro da forma tradicional.

Figura 19 - Tira livre de Laerte82

A Figura 19 é um dos exemplos oferecidos por Ramos (2010) para explicitar essa fase de experimentação que culminou nas tiras livres as quais, conforme o mesmo autor, “são produções que parecem já terem encontrado estabilidade em seus enunciados”, visto que, mesmo marcadas por irregularidade temática e gráfica, seus elementos já podem ser identificados por outros quadrinistas, “o que só reforça a premissa de que se trate de um gênero próprio e autônomo” (RAMOS, 2014a, p. 69).