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3.3 LIVROS DIDÁTICOS DE ESPANHOL, QUADRINHOS E

3.3.1 Por que é importante falar sobre o livro didático?

3.3.1.2 O livro didático como gênero do discurso

Nossa discussão acerca da concepção do LD, iniciada pelo argumento de Marcuschi (2003), segue investigando a perspectiva que o compreende como gênero discursivo e tem como base os estudos de Bunzen Júnior (2005, 2008) e de Souza e Viana (2011, 2012, 2013), cujas pesquisas se apoiam em Bakhtin (2003) e estão focadas no LD de português, mas que valem também para os materiais didáticos de LE.

Para compor sua tese, Bunzen Júnior (2005) se apropria da relação entre os gêneros primários e secundários. Segundo Bakhtin (2003, p.282), os primários ou simples são constituídos em “circunstância de uma comunicação verbal espontânea” e os secundários ou complexos provêm de “circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita”. Estes últimos, ao se formarem, absorvem e transmutam os primeiros, que “perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios” (BAKHTIN, 2003, p. 282), passando a denominar-se gêneros intercalados.

Com base nessas distinções, Bunzen Júnior (2005) estabelece que o LD é um gênero secundário constituído por primários, elaborados pelo discurso de outrem (tiras, propagandas, cartas, cartazes etc.) e do autor do LD (textos didáticos) e organizados de maneira intercalada, formando uma estrutura composicional “multimodal / imbricada / múltipla” (BUNZEN JÚNIOR, 2005, p. 44).

Souza e Viana (2011, p. 4) compartilham dessa perspectiva do pesquisador, uma vez que reconhecem o LD como um objeto cultural e dotado de

relativa estabilidade discursiva que o coloca em uma posição espaço- discursiva de incompletude semântica e completude sígnica, passível

de incorporar (e acolher) distintos gêneros discursivos para a sua constituição de especificidade como um gênero.

Quando os gêneros fazem parte da organização do LD, este lhes dá o tom específico, pois em sua recontextualização passam a “integrar a realidade concreta” do LD (BUNZEN JÚNIOR, 2005, p.45-46), perdendo “sua relação imediata com a realidade existente” (BAKHTIN, 2003, p. 282). Entendemos aqui o termo imediata como direta, implicando que esses enunciados não se distanciam totalmente da realidade na qual foram elaborados e sim, de acordo com Bakhtin (2003, p. 124), “conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística”. Assim, Bueno (2002, p. 150) aponta que os gêneros, os quais a autora denomina sociais, perdem

no LD a sua forma, mantendo apenas o tema, ou parte deste, mas mesmo este tema pode sofrer alterações conforme o interesse do autor do LD. Dessa forma, ao contrário do que poderíamos imaginar, não é o LD que serve de suporte para o estudo de um gênero social, mas o gênero social, transformado em escolar, que serve como um dos meios de o LD mostrar o conteúdo sacralizado como relevante. Para construir a unidade enunciativo-discursiva, oferecendo ao LD o caráter discursivo típico desse tipo de material, é necessária a ação de diversos agentes (autores, editores, revisores etc.) que se inter-relacionam socialmente e trabalham juntos na produção e seleção de enunciados concretos (BUNZEN JÚNIOR, 2005) para alcançar os objetivos educativos embasados em suas escolhas teórico- metodológicas. Podemos observar isso na pesquisa de Souza e Viana (2011, p. 04), na qual as pesquisadoras afirmam que a organização didática do LD é direcionada para atender a determinadas teorias de ensino e aprendizagem de língua:

Deparamos com edições de um mesmo livro que, a fim de atender orientações de uma corrente pedagógica, inclui o ensino de vocabulário por meio de listas, em glossário e, por outro lado, em edição mais recente, expõe-se o ensino do vocabulário por meio de extração do texto ou outros mecanismos de apresentação, como os boxes, quadros sinóticos, ou hiperlinks.

Assim, o LD, como um produto sócio-histórico e cultural, tem como função social “re(a)presentar para cada geração de professores e estudantes o que é oficialmente reconhecido, autorizado como forma de conhecimento sobre a

língua(gem) e sobre as formas de ensino-aprendizagem” (BUNZEN JÚNIOR, 2005, p. 27-28).

Nossa discussão averiguou a definição de LD sob duas perspectivas quase antagônicas: suporte e gênero discursivo. A primeira é defendida por Marcuschi (2003) e faz referência ao locus físico ou virtual onde se dá a materialização de uma diversidade de textos. Ao considerar o LD desse prisma, os textos por ele abarcados sofrem apenas uma reversibilidade de função, porém ainda mantêm suas identidades, suas especificidades (uma carta pessoal continua conservando suas características mesmo no interior do LD). Estamos de acordo com o autor ao pensar que boa parte dos gêneros se fixa em suportes e a alteração destes acarreta uma mudança na funcionalidade dos textos os quais, no caso do LD, passam a exercer uma função didática. Contudo, essa definição limita o LD a um simples “objeto portador de texto” (BUNZEN JÚNIOR, 2005, p. 35) e, por isso, concordamos com Souza e Viana (2011, p. 8) quando ressaltam a necessidade de um “deslocamento epistemológico, no sentido de desvencilhar-se de uma noção já bem estabelecida e respaldada por alguns autores em entendê-lo como um suporte”. Desse modo, nosso ponto de vista corresponde ao de Bunzen Júnior (2005), pois julgamos que a intercalação decorrente da mescla entre os distintos textos (didáticos e de outrem) no LD constrói uma rede intertextual, por meio da qual circula o discurso escolar veiculado pela ação conjunta de atores que trabalham na produção e seleção de enunciados concretos com base em concepções teórico-metodológicas auxiliares aos estudos de língua e no ensino e aprendizagem, organizando a unidade enunciativo-discursiva, que possibilita compreender o LD como gênero do discurso124.

124 Estamos cientes da polêmica nas discussões de se classificar o LD como gênero e não como

hipergênero e das consequências que qualquer escolha possa ter. Contudo, em função do exposto optamos por não nos aprofundarmos nessa discussão e adotar o conceito do LD como gênero do discurso.