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COMPLIANCE E A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS NO

DIREITO PENAL BRASILEIRO.

Diante de toda a exposição ora realizada, algumas conclusões podem ser extraídas. Primeiramente, nenhum modelo doutrinário de responsabilidade penal das pessoas jurídicas, seja de hetero ou de autorresponsabilidade, alcançou, até o momento, o patamar de aceitação obtido por outros métodos especialmente construídos no âmbito do direito penal das pessoas físicas. As soluções legislativas são diversas, ora aceitando modelos de heterorresponsabilidade, ora de autorresponsabilidade e ora uma mescla entre ambos. Entretanto, em que pese não haver uma clara tendência na legislação internacional de favorecer uma ou outra proposta, o que de fato existe é uma repetição de determinados elementos que são reiteradamente utilizados para alicerçar os modelos legislativos apresentados.

Neste sentido, três pontos se destacam: (a) a conduta da pessoa física nunca é totalmente ignorada e nem sequer tratada como uma condição objetiva de punibilidade. Na verdade, o delito individual se insere praticamente como um elemento do injusto corporativo, ainda que não seja, em nenhuma hipótese, o único, ou seja, não basta a constatação do crime individual para se presumir o coletivo; (b) o conceito de defeito estrutural / organizacional é, na unanimidade dos modelos legislativos apresentados, um pilar central da responsabilização penal das pessoas jurídicas, apresentando-se como um dos cernes, se não o maior deles, sobre o qual repousa a conduta delitiva do ente coletivo; (c) o conceito de cultura empresarial, ainda que de forma mais tímida que o de defeito organizacional, começa a ganhar espaço no âmbito legislativo – seja de forma explícita, como no caso australiano, ou de maneira implícita, como se extrai das elucubrações jurisprudenciais espanholas – apresentando-se como um possível fundamento sobre o qual repousar o conceito jurídico-penal de culpabilidade empresarial.

A partir de todas estas considerações, permite-se, agora, responder a indagação principal que impulsionou o presente trabalho: de que maneira os programas de corporate compliance podem auxiliar na elaboração de um modelo autônomo de responsabilização das pessoas jurídicas em sede do direito penal? A resposta para o presente questionamento incide diretamente nos dois conceitos de maior relevância tratados até aqui: (a) na delimitação e comprovação do defeito estrutural / organizacional; e (b) na demonstração ou não da vigência de uma cultura empresarial de respeito à legalidade no interior da corporação.

Se existe um problema recorrentemente apontado pela doutrina sobre os conceitos de defeito de organização e de cultura empresarial é justamente a questão da vagueza e / ou indeterminabilidade205. Em síntese, quando será possível afirmar a existência de um defeito organizacional na empresa? Da mesma forma, como se constatar que dentro de uma empresa vigia uma cultura corporativa de estímulo à ilegalidade? Por óbvio, não é esta uma tarefa fácil, mas os programas de corporate compliance parecem aportar inúmeros elementos capazes de, se não solucionar o problema, pelo menos, racionalizar e objetivar critérios para a comprovação fática destas situações.

Em princípio, veja-se que, conforme anteriormente exposto, os programas de compliance trazem ínsitos em si dois elementos fundamentais, extremamente pertinentes para a presente argumentação: (a) a noção de devido controle; e (b) a ideia de ética corporativa. Isto porque, através da implementação dos programas de cumprimento normativo, não apenas se está buscando o controle adequado do desenvolvimento das atividades da empresa, como também se pretende inserir em sua operação uma maneira específica de condução dos seus negócios, sempre visando, ao máximo, respeitar as limitações de caráter ético impostas pela corporação.

Isto posto, é preciso perceber, inicialmente, que o conceito de defeito organizacional se comunica fortemente com a noção de devido controle e, consequentemente, de compliance. É possível até mesmo dizer que é a falta de devido controle das atividades da pessoa jurídica a grande responsável por gerar os defeitos presentes em uma dada organização. Uma empresa que não se preocupa em controlar as suas próprias atividades, conscientizando-se, por consequência, dos riscos a que se encontra submetida, mostra-se amplamente vulnerável ao surgimento – voluntário ou involuntário – de equívocos em sua organização, pela simples razão de desconhecer os limites de sua própria atividade. O grande problema é que estes defeitos organizacionais são capazes de gerar déficits de controle e supervisão que permitam a um funcionário se aproveitar da estrutura inadequada da empresa para agir de maneira lesiva aos bens jurídicos. É justamente aí que radica a reprovação destes defeitos organizacionais, pelo fato deles permitirem o desenvolvimento de riscos acima do tolerado na atividade corporativa.

205 Um posicionamento sobre a vagueza do conceito de cultura corporativa pode ser visto em Marta Muñoz de Morales (2014, p. 420), quando ela explicita as críticas direcionada pela doutrina sobre o tema. Neste sentido, a referida autora argumenta que “For instance, it has been stated that ‘corporate culture’ is an extraordinary vague concept and provide[s] little guidance to companies and their lawyers as about what is required.”. Em tradução livre: “Por instância, já foi dito que o conceito de ‘cultura corporativa’ é extraordinariamente amplo e vago, providenciando pouca orientação para as companhias e para seus advogados sobre o que é requerido.”.

O compliance, pois, terá como um dos seus objetivos principais justamente evitar este déficit organizativo, impondo dentro da estrutura da empresa a criação de uma série de mecanismos de controle cuja grande finalidade será a de detectar as áreas de vulnerabilidade da corporação e reorganizá-la de maneira apta a prevenir a concretização de riscos.

Os programas de cumprimento normativo, ademais, encontram-se inerentemente conectados com uma série de normatizações, sejam elas oriundas do soft law – recomendações da OCDE, por exemplo – ou de standards desenvolvidos à nível nacional – agências reguladoras – e internacional – normativas ISO – de maneira a dissipar a suposta vagueza do conceito de defeito organizacional. Através dos programas de compliance, pois, se torna possível, na prática, estabelecer, através das referências acima mencionadas, se uma empresa estava ou não devidamente organizada.

Por fim, os diversos elementos essenciais aos programas de compliance, anteriormente tratados em grande extensão, possibilitam uma averiguação na prática de como o programa de cumprimento se desenvolvia em uma determinada empresa. Esclarecendo um pouco mais, é possível, por exemplo, analisar como foi o processo de avaliação de risco (Risk Assessment) desenvolvido pela corporação, se existia e como funcionava o canal de denúncias, se os âmbitos de competência estavam bem determinados, se a contratação de terceiros envolvia procedimentos de devida diligência (Due Dilligence), se era feita uma revisão periódica e sistêmica do programa, enfim, se existia ou não uma preocupação sistêmica com a organização da empresa.

Em resumo, através destes programas de cumprimento normativo, é possível claramente estabelecer parâmetros adequados de organização empresarial, uma espécie de devida organização média, pautada pelo conhecimento técnico nacional e internacional sobre o assunto. O conceito de defeito organizacional, portanto, é claramente robustecido quando levado em consideração os desenvolvimentos oriundos da noção de compliance.

Da mesma forma, ao conceito de cultura corporativa é de extrema importância as noções trazidas pela ética empresarial e pelo compliance. Conforme apontado com maior aprofundamento anteriormente, o modelo mais indicado para se desenvolver um programa de compliance é justamente o da ética corporativa. Isto porque, conforme já expressado, este modelo de programa de cumprimento busca estimular o desenvolvimento de valores éticos no seio da empresa, através do investimento na formação do seu corpo funcional, com o fim de que nela impere uma cultura de respeito à legalidade. Irá se buscar, pois, a realização de medidas positivas de controle com o intuito de neutralizar fatores culturais ou dinâmicas de

grupo que favoreçam o surgimento de comportamentos desviados dentro da corporação e o fomento a uma cultura de ilegalidade.

Estes programas buscam, como missão primordial, desenvolver o padrão ético da corporação em geral, de forma que todos, do CEO ao faxineiro, estejam cientes que dentro da empresa encontra-se vigente uma política de máximo respeito à legalidade. Todas as ações dos diretores e dos funcionários devem se reportar a esta máxima, sob pena de punição. Fomenta-se, assim, através do compliance, justamente o desenvolvimento de uma cultura corporativa de respeito à legalidade, de modo que a conexão entre cultura e corporativa e compliance mostra-se evidente.

Os programas de compliance, ademais de subsidiar o desenvolvimento da cultura corporativa, podem estabelecer critérios de análise para que seja possível verificar, no caso concreto, se esta cultura existia ou não, isto é, se a legalidade era respeitada, ou não. Neste sentido, será possível averiguar o nível de comprometimento da diretoria com o programa (Tone From The Top), o teor do código de ética / conduta da empresa e as políticas corporativas dele derivadas, a existência ou não de treinamentos e atividades periódicas de conscientização sobre os protocolos exigidos pelo departamento de compliance, o estímulo à utilização do canal de denúncias da empresa, as exigências da corporação quanto aos terceiros contratados (Due Dilligence), a reação da empresa frente ao descobrimento de uma irregularidade – em uma perspectiva muito conectada com a ideia de culpabilidade reativa da corporação (Corporate Reactive Fault) –, através da instauração de investigações internas e da punição disciplinar dos envolvidos, etc.

Em resumo, os instrumentos desenvolvidos pelos programas de compliance permitem vislumbrar até que ponto a empresa estava verdadeiramente comprometida com a vigência, em seu seio, de uma cultura empresarial de respeito à legalidade. Até que ponto, finalmente, a corporação relativizou os seus interesses financeiros para priorizar, também, responsabilidades de cunho ético e social.

O que se evidencia, portanto, da presente explanação, é que os modelos de autorresponsabilidade penal empresarial, independentemente de qual teorização dogmática venha a ser aplicada em específico, encontram-se intrinsicamente conectados à noção de compliance. Na verdade, será justamente a existência de um programa de compliance efetivo o grande diferencial entre a aplicação ou não de uma sanção penal para as pessoas jurídicas, quando verificada a perpetração de um delito em seu seio. E isto porque, conforme se evidenciou, os dois conceitos fundamentais que alicerçam toda a estrutura da autorresponsabilidade penal – defeito organizacional e cultura corporativa – são claramente

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