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4. OS PROGRAMAS DE CORPORATE COMPLIANCE

4.3 OS PILARES DE UM PROGRAMA DE CORPORATE COMPLIANCE

4.3.6 Criação de um canal de denúncias

Um primeiro mecanismo de controle passível de criação no contexto de um programa de cumprimento é o chamado canal de denúncias – ou sistema de whistleblowing, como mais comumente denominado em países anglo-saxões. A implementação deste gênero de sistemas internos de denúncia foi primeiramente capitaneada por empresas norte- americanas e teve seu momento de maior difusão a partir da entrada em vigor da Sarbanes- Oxley Act, legislação federal estadunidense, no ano de 2002. O referido corpo normativo, cujo nascedouro em muito se relaciona com enormes escândalos corporativos de empresas como Enron e WorldCom, obrigou a todas as empresas – americanas ou não – cotizadas no mercado de ações americano a dotarem-se de um sistema interno de informação que permitisse a chegada de denúncias ao comitê de auditoria da companhia (VALLÈS, 2013, p. 164).

Essa disseminação inicial dos canais de denúncia no meio empresarial foi ainda mais fomentada a partir da publicação, em 2004, da United States Sentencing Guidelines, extrapolando, a partir daí, a limitação a questões puramente contábeis. Isto porque este documento, responsável por estabelecer as diretrizes para que os magistrados federais americanos definam a pena a ser aplicada para pessoas físicas e jurídicas, inclui a possibilidade de atenuação das sanções penais eventualmente aplicadas em virtude da

implementação, dentro da empresa, de um canal de denúncias interno, em que informações das mais diversas irregularidades possam chegar ao conhecimento dos seus escalões superiores (GARCÍA MORENO, 2015, p. 210).

Um canal de denúncias, em síntese, é o mecanismo interno estabelecido no contexto de uma organização que permite aos seus próprios funcionários e a terceiros com quem a empresa mantenha relações comerciais (Whistleblowers)104 a possibilidade de comunicar, de maneira confidencial – ou excepcionalmente de forma anônima105 –, a existência de irregularidades, atos indevidos e comportamentos contrários à legislação pertinente à atuação empresarial e/ou ao seu próprio código de conduta, que possam vir a gerar riscos de natureza cível, administrativa, laboral ou penal para a corporação (MORILLAS, 2015, p. 614).

Dentro da organização empresarial, tal mecanismo exercerá uma dupla função, uma de caráter (i) reativo e outra de cunho (ii) preventivo. O caráter (i) reativo se justifica porque o referido sistema permite que a empresa, ante a chegada ao seu conhecimento da perpetração de determinados comportamentos contrários às normativas tanto internas quanto externas à corporação, reaja de maneira adequada contra os atos já praticados. Por outro lado, o canal de denúncias também pode ajudar a inibir o comportamento ilícito em sede da empresa, por aumentar a probabilidade de descoberta da conduta irregular, assumindo, assim, esse viés (ii) preventivo (MORILLAS, 2015, p. 614).

Um sistema nesses moldes, além do necessário apoio da direção (Tone from the top), precisa, para sua implementação, de medidas proativas. De início, é preciso criar o meio mediante o qual os whistleblowers irão levar suas denúncias ao conhecimento de seus

104 Na definição dada por Geoffrey Miller (2014, p. 271), o termo whistleblower “refers to a person who, without being required to do so, reports on misconduct within an organization.”. Em tradução livre: “refere-se à pessoa que, sem ser requerida a fazê-lo, reporta uma falha de conduta dentro da organização.”.

105 Existe uma discussão muito rica na doutrina acerca da admissibilidade ou não de denúncias anônimas no seio de um canal de denúncias empresariais. Isso porque, desde uma perspectiva puramente de eficácia, parece ser mais interessante aceitar toda e qualquer denúncia, anônima ou não, dentro do referido canal, pois assim aumentariam as possibilidades de descoberta de uma eventual irregularidade. Entretanto, ainda que, numa primeira análise, a probabilidade de descoberta possa ser maior mediante a aceitação do anonimato, tal perspectiva não se encontra livre de efeitos perversos, tais quais o aumento na quantidade de falsas imputações. Por isso, uma sugestão comumente feita em matéria de compliance é que o canal de denúncias funcione não sob o paradigma do anonimato, mas sim a partir da ideia de confidencialidade, isto é, de identificação do denunciante perante as instâncias de controle, sob a garantia de que sua identidade não será, sob nenhuma hipótese, revelada a terceiros. Desta maneira, seria possível conceder uma maior credibilidade às denúncias, visto que dificilmente alguém iria fazer uma falsa imputação se a empresa soubesse a sua identidade. Entretanto, posturas radicais devem ser evitadas. Em que pese ser, de fato, mais recomendável o estímulo à confidencialidade, a empresa não pode simplesmente ignorar as denúncias feitas de forma anônima, pois isso poderia implicar em um sério risco futuro. O ideal, neste sentido, seria igualmente proceder à investigação destas denúncias anônimas, mas sob um controle mais rígido de admissibilidade, isto é, exigindo que as denúncias anônimas venham corroboradas por elementos significativos de provas de materialidade (VALLÈS, 2013, p. 181).

superiores. Neste sentido, é possível a criação de canais de comunicação sob as mais diversas formas, como por exemplo uma conta de e-mail, uma caixa postal, uma linha telefônica (hotline), um sistema online na página da empresa na rede mundial de computadores, etc. O importante, neste momento, é criar uma porta de entrada para as denúncias, ficando a escolha do melhor meio à critério da empresa (VALLÈS, 2013, p. 187).

A simples criação do canal de denúncias, entretanto, não garante a sua utilização por parte de seu público alvo, isto é, funcionários, colaboradores e clientes da empresa. Por conta disso, é necessário que haja tanto uma divulgação massiva por parte dos diretores da empresa, levando ao conhecimento dos potenciais whistleblowers a existência de um canal apropriado para a realização de denúncias, quanto que o sistema criado seja acessível, podendo ser facilmente utilizado por qualquer indivíduo (MORILLAS, 2015, p. 616).

Por fim, a empresa necessitará tanto (i) estimular o uso de seu canal de denúncias, no caso de descoberta de alguma irregularidade, quanto (ii) proteger os eventuais denunciantes, garantindo que nenhuma repercussão negativa recaia sobre esses indivíduos. O estímulo, que pode ser feito por diversas formas, inclusive financeira106, tem a finalidade de conseguir fazer com que os whistleblowers se utilizem dos canais empresariais, e não estatais, para denunciar as irregularidades a que venham tomar conhecimento. O objetivo é que seja a própria empresa e não agentes exógenos a esta – na figura de policiais, procuradores, magistrados, etc. – os primeiros a serem informados sobre tais práticas, permitindo-se, assim, uma maior gestão de riscos. Por outro lado, na medida em que uma empresa abre um sistema de denúncias internas, é sua obrigação garantir a proteção dos eventuais denunciantes, seja por fatores éticos ou por interesses individuais, pois é bem difícil imaginar que um funcionário da empresa irá denunciar o seu superior direto, por exemplo, se tiver receio de uma represália, seja esta do ofensor ou da direção corporativa (VALLÈS, 2006, p. 03).

106A concessão de estímulos de caráter financeiro aos whistleblowers, com a finalidade de estimulá-los a denunciar, é uma questão muito controversa. Por um lado, se os denunciantes vislumbrassem um potencial ganho financeiro, o sistema poderia ganhar em eficácia, pois mais indivíduos poderiam recorrer a este canal com vistas ao benefício pecuniário. De outro, porém, existe o prejuízo a nível de ambiente empresarial, visto que com o estímulo financeiro à delação dos colegas é possível criar-se um ambiente negativo de vigilância entre os funcionários da corporação, em que a todo momento estar-se-ia buscando irregularidades com a finalidade de obtenção de uma vantagem pecuniária. A concessão de benefícios por parte da empresa aos whistleblowers, portanto, não parece ser um caminho adequado para estimular o uso do canal de denúncias. Outra questão, porém, é a possibilidade do Estado oferecer vantagens pecuniárias aos denunciantes, situação existente desde de 1863 nos Estados Unidos, a partir de publicação do False Claims Act, e recentemente reforçado, em 2010, pelo Dodd-Frank Act. Tal legislação chega ao ponto de conceder ao whistleblower uma vantagem financeira em valor que variará entre 10% e 30% sobre a multa porventura aplicada com base na informação reportada. Em que pese ser contestável, existem menos restrições a essa modalidade de estímulo feita pelo Estado do que aquela feita pela empresa, pois, no fim das contas, o interesse do Estado é justamente o de descobrir condutas ilícitas, pouco importando o meio utilizado para estimular a denúncia da informação (VALLÈS, 2014, p. 462).

Com a chegada de uma denúncia com um mínimo de embasamento, porém, deverá o setor de cumprimento normativo da empresa garantir a realização de diligências para averiguar a veracidade ou não das acusações. Comprovada a denúncia, o(s) ofensor(es) deverá(ão) ser necessariamente sancionado(s). Se a conclusão for negativa, isto é, se não tiver sido comprovada a existência de um ato ilícito, deverá o referido setor arquivar a denúncia. O whistleblower, entretanto, não deverá, via geral, ser punido em caso de não confirmação de sua denúncia, sendo eventuais sanções a estes indivíduos apenas realizadas em caso de comprovação de que sua denúncia foi realizada de má-fé, com o intuito claro de prejudicar outro(s) funcionário(s) da empresa107.

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