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4. OS PROGRAMAS DE CORPORATE COMPLIANCE

5.3 UM GIRO CONCEITUAL NECESSÁRIO: OS MODELOS DE AUTORRESPONSABILIDADE PENAL

5.3.4 Gehard Dannecker e a reprovabilidade ético-social da empresa

A proposta de Gehard Dannecker (2001), elaborada já no século XXI, é construída a partir das estruturas criadas pelas teorizações de dois dos autores acima tratados, mais especificamente Günther Heine e Ernst Lampe. Ressalte-se, porém, que apesar da clara inspiração, seu modelo é notoriamente original, assumindo posicionamentos e conclusões distintas daquelas obtidas pelos dois doutrinadores em comento.

De acordo com Dannecker, a luta repressiva e preventiva contra as atuações perigosas das pessoas jurídicas não pode consistir no castigo do injusto pessoal e das decisões personalíssimas e reprováveis provenientes dos sujeitos particulares. Pretende-se, na verdade,

através das consequências jurídicas do moderno direito penal, o estabelecimento de sanções penais que reestabeleçam e assegurem a paz jurídica, em uma fundamentação que se relaciona claramente com a ideia de prevenção geral positiva (DANNECKER, 2001, p. 44).

O direito penal da empresa, porém, apesar de se fundamentar em premissas distintas, precisa estar conectado às categorias fundamentais do direito penal individual, pois, de modo contrário, estar-se-ia degradando o direito penal das pessoas jurídicas ao ponto de convertê-lo em um mero instrumento arbitrário de controle social, o que é, por óbvio, inadmissível. Se trata, portanto, da pretensão de desenvolver uma concepção racional da regulação penal sobre as empresas, partindo da premissa de que os riscos não são provenientes, de forma exclusiva, das ações dos seus titulares, mas que o sistema social empresarial também exerce notável influência nos comportamentos delitivos (DANNECKER, 2001, p. 45).

As pessoas físicas que atuam e compõem uma pessoa jurídica, no entender do referido autor, são apenas uma parte do sistema, e não a sua inteireza. A essência da corporação não é representada pela mera adição de pessoas particulares, mas de uma formação independente e destacada daquelas. Isto porque, para Dannecker, os interesses e propriedades de uma empresa são algo mais que a soma de propriedades e interesses dos membros particulares da empresa, funcionando, na verdade, como sujeitos sociais separados de seus componentes individuais. As empresas, em suma, “perseguem interesses próprios, o que pode servir de base para a fundamentação dos seus deveres jurídicos assim como para a formação e limitação das consequências jurídicas.” (DANNECKER, 2001, p. 45)159.

Ademais, Dannecker defende que as empresas podem igualmente ser destinatárias das normas penais, pois estas não precisam estar fundamentadas necessariamente em premissas de caráter ontológico. No entender do referido autor, as normas penais coletivas devem ser dirigidas às empresas que falhem no cumprimento das seguintes obrigações: (a) a constituição de uma filosofia empresarial de acordo com o direito e (b) a construção conjunta de uma organização empresarial eficiente. Assim, enquanto a primeira obrigação se refere ao desenvolvimento de uma responsabilidade social coletiva, em função da qual cada membro da empresa deverá pautar seu comportamento a partir de paradigmas éticos, a segunda se relaciona com a criação de uma organização eficiente, apta a combater com efetividade a produção de riscos aos bens jurídicos (DANNECKER, 2001, p. 46).

159 Traduzido livremente do original: “persiguen propios intereses, lo que puede servir de base a la fundamentación de los deberes jurídicos así como a la forma y limitación de las consecuencias jurídicas.”.

Portanto, é de se perceber que a capacidade de atuação de uma pessoa jurídica é consequência de sua posição como sujeito autônomo da realidade social e da sua posição de ente destinatário de uma norma penal. Por esta razão, Dannecker (2001, p. 47) defende que “tanto o comportamento de uma pessoa natural como o de uma pessoa jurídica representam o comportamento de um sistema que pode ser entendido com sentido próprio e que possibilita e requer uma valoração penal.”160. Neste sentido, a dificuldade é justamente delimitar quando o comportamento da pessoa natural representará não somente um fato individual isoladamente considerado, mas sim um fato próprio, imputável à empresa.

Para superar esta dificuldade, Dannecker se utiliza do conceito de Ernst Lampe sobre os injustos de sistema, defendendo que o injusto imputável a um sistema não depende necessariamente de uma atuação da pessoa jurídica. Para o referido autor (2001, p. 47):

O injusto não requer necessariamente uma atuação. O injusto pode ser igualmente ocasionado através de um deficiente sistema que promove, possibilita ou permite prejuízos a terceiros. O elemento fundamental radica, então, na causação de um resultado antijurídico. Portanto, não é necessariamente preciso embasar a capacidade de atuação na imputação de um comportamento das pessoas que atuam como agentes da empresa. A responsabilidade, por isso, deveria embasar-se também na deficiência do sistema e, com isso, no fato deste dar ocasião a um resultado antijurídico através de uma organização defeituosa ou de uma ética empresarial viciada que não tem em conta de forma suficiente os valores sociais.161

Para Dannecker, porém, existem alguns requisitos para possibilitar a realização de uma imputação criminal à empresa. Neste sentido, argumenta o referido autor que é necessário, primeiramente, constatar (a) a existência de uma estrutura organizativa deficiente ou de uma filosofia empresarial criminógena, dado que a responsabilidade penal coletiva não radica na infração em si, mas sim na omissão das premissas necessárias para um comportamento conforme a norma. Ademais, é preciso ter-se produzido (b) uma lesão a um bem jurídico que seja imputável à empresa, em uma vinculação que poderá ser realizada mediante a análise da posição de garantia exercida pela empresa, pela verificação do cumprimento dos deveres de vigilância empresarial, a partir da atuação em si da pessoa natural, etc.. Outro requisito necessário para a imputação criminal da empresa é o

160 Traduzido livremente do original: “tanto el comportamiento de una persona natural como el de una persona jurídica representan el comportamiento de un sistema que puede ser entendido como un sistema con propio sentido y que posibilita y requiere una valoración penal.”.

161 Traduzido livremente do original: “el injusto no requiere necesariamente una actuación. El injusto puede ser igualmente ocasionado a través de un deficiente sistema que promueve, posibilita o permite perjuicios a terceros. El elemento fundamental radica entonces en la causación de un resultado antijurídico. Por lo tanto, no es necesariamente preciso basar la capacidad de actuación en la imputación de un comportamiento de las personas que actúan como agentes de la empresa. La responsabilidad por eso debería basarse también en la deficiencia del sistema y con ello en el ocasionamiento de un resultado antijurídico a través de una organización defectuosa o de una ética empresarial viciada que no tiene en cuente suficientemente los valores sociales”.

estabelecimento de uma (c) conexão de antijuridicidade entre as falhas organizacionais do sistema e/ou a filosofia empresarial viciada com a lesão propriamente dita do bem jurídico. Isto porque, para Dannecker, só haverá conexão de antijuridicidade quando se puder averiguar no caso concreto a vinculação entre a lesão causada ao bem jurídico tutelado pela norma e a falha organizativa / deficiência ética da empresa. Por fim, um último requisito seria a necessidade de se constatar (d) o dolo e a imprudência relativos às falhas de organização interna do sistema e / ou a uma filosofia empresarial criminógena. Neste sentido, para o autor, o dolo requer o conhecimento ou ao menos a representação da possibilidade do defeito organizacional, enquanto a imprudência pressupõe que a lesão do bem jurídico era evitável e previsível (DANNECKER, 2001, p. 50).

No que tange ao seu desenvolvimento teórico sobre a culpabilidade, Dannecker parte fundamentalmente do entendimento da culpabilidade como reprovabilidade. Esta, entretanto, deve ser compreendida de forma diferente daquela direcionada às pessoas físicas, devendo-se diferenciar entre a culpa individual e culpa da pessoa jurídica, que é determinada de maneira decisiva por sua responsabilidade social. Neste sentido, torna-se imperioso estabelecer de forma autônoma qual seria o conteúdo do juízo reprobatório da culpabilidade direcionado às pessoas jurídicas (DANNECKER, 2001, p. 47).

A capacidade de culpabilidade de uma empresa deriva de sua responsabilidade sobre as prestações coletivas defeituosas ocasionadas por carências em sua organização ou em sua ética. Por tal razão, torna-se claro que no entender de Dannecker, em posicionamento similar ao de Ernst Lampe, o conteúdo da culpabilidade encontra-se claramente referido ao próprio injusto. Se o injusto se caracteriza por uma organização defeituosa e uma ética empresarial insuficiente, tal falha deverá projetar-se igualmente sobre a culpabilidade, que consiste em uma reprovação embasada pela não criação das condições necessárias para o impedimento da realização do injusto (DANNECKER, 2001, p. 47).

Para delimitar esta independência conceitual da culpabilidade empresarial, Dannecker busca justificar que a sua fundamentação não se encontra pautada pela capacidade de poder atuar de outro modo, fundamental para a culpabilidade individual. Desta maneira, o referido autor assinala que enquanto sobre as pessoas físicas é realizado um juízo reprobatório ético-individual, sobre as pessoas jurídicas a reprovação é pautada por fundamentos ético- sociais. Sobre este ponto de vista, é possível direcionar uma reprovação ao sistema pela sua incorreção, seja a partir de uma filosofia empresarial deficitária ou por conta de uma estrutura organizativa insuficiente, pois por se tratar a empresa de uma associação que almeja racionalmente alcançar determinados fins, deve ela necessariamente submeter estas

finalidades à exigências éticas e organizativas dispostas pela normativa penal. Assim, quando esta responsabilidade coletiva, e as obrigações que dela derivam, for descumprida, “o comportamento do grupo pode ser desaprovado ético-socialmente e esta reprovação pode expressar-se mediante uma pena configurada exclusivamente desde um ponto de vista ético- social.”162 (DANNECKER, 2001, p. 48).

A imposição de uma pena à empresa, pois, é embasada pela sua falta de correção ao estabelecer a sua organização e / ou a sua filosofia, de modo que o conteúdo da reprovação realizada em sede do juízo de culpabilidade reside, em última instância, na não criação, por parte do sistema social, de pressupostos aptos a evitar a realização do injusto. O referido autor, porém, diferentemente de Lampe, aceita todas as consequências deste postulado, na medida em que abre a possibilidade de exculpação empresarial precisamente quando for demonstrada que a empresa tomou o cuidado necessário para a conformação de sua estrutura organizativa e empreendeu esforços para estimular uma filosofia empresarial adequada (DANNECKER, 2001, p. 48).

Ante o exposto, é possível apontar que a formulação de Gehard Dannecker possui diversos aspectos positivos. Isto porque, além de tentar trazer os conceitos de dolo e de imprudência, categorias fundamentais no direito penal individual, para a fundamentação da responsabilidade penal coletiva, o referido autor tenta, de certa forma, se afastar das construções da culpabilidade pautadas exclusivamente desde a perspectiva do autor, como fizeram Ernst Lampe (culpabilidade pelo caráter defeituoso) e Günther Heine (culpabilidade pela condução da atividade empresarial). Ademais, Dannecker ainda possui o grande mérito de ter aceitado a consequência natural de suas formulações, isto é, a de fornecer causas de exculpação em benefício das empresas que estejam adequadamente organizadas e / ou que possuam uma filosofia empresarial condizente com a legalidade (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 196).

A grande falha deste autor, entretanto, é que supera as dificuldades impostas pelos modelos de Lampe e Heine justamente por não observar a dimensão temporal presente na formulação da culpabilidade de ambos, sem que, para isso, ofereça qualquer justificativa teórica factível. O recurso a uma suposta “falta de correção” da empresa ao estabelecer sua estrutura organizacional e / ou sua filosofia corporativa não se apresenta, de forma alguma, como um conceito teórico suficientemente firme. Em resumo, a ideia de reprovação ético-

162 Traduzido livremente do original: “el comportamiento del grupo puede desaprobarse ético-socialmente y este reproche puede expresarse mediante una pena configurada exclusivamente desde un punto de vista ético- social.”.

social elaborada por Dannecker, mostra-se como um conceito juridicamente indigente, inapto a alicerçar sobre ele as exigências de um juízo de reprovação tão sólido teoricamente, como é o caso da culpabilidade (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 198).

5.3.5 Adán Nieto Martín e a culpabilidade pelo déficit de autorregulação

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