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A proposta de Klaus Tiedemann: uma reprovação pautada pelo “fato de conexão” e pelo defeito

4. OS PROGRAMAS DE CORPORATE COMPLIANCE

5.3 UM GIRO CONCEITUAL NECESSÁRIO: OS MODELOS DE AUTORRESPONSABILIDADE PENAL

5.3.1 A proposta de Klaus Tiedemann: uma reprovação pautada pelo “fato de conexão” e pelo defeito

O primeiro desenvolvimento de relevo, desde uma perspectiva histórica, no sentido de construir um fundamento próprio para a responsabilização penal das pessoas jurídicas, foi elaborado por Klaus Tiedemann. Para o referido autor (2013, p. 39), o fundamento e a legitimação deste gênero de responsabilidade só podem ser alcançados a partir de dois conceitos basilares: o “fato de conexão” e o defeito de organização.

Na visão de Tiedemann, as pessoas jurídicas, assim como as físicas, podem ser destinatárias diretas das normas de conduta, isto é, dos mandatos e das proibições oriundas do direito positivo. Se o legislador dirige as normas às pessoas jurídicas, isto significa que elas também podem produzir os efeitos exigidos pela norma, ou seja, também podem elas realizar tanto ações quanto omissões149. Assim, as pessoas jurídicas teriam, no entender do referido autor, uma evidente capacidade de ação (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 60).

148 É importante ressaltar que não será feita, no presente trabalho, a exposição de absolutamente todos os modelos de autorresponsabilidade penal da pessoa jurídica. Pela própria dimensão da obra e pelos objetivos a que se propõe, uma exposição esmiuçada das concepções teóricas de todos os autores que porventura trataram do tema far-se-ia plenamente impossível. Neste contexto, não se deixa de reconhecer a existência das propostas de autores como Ernst Hafter (culpabilidade pela consciência especial da pessoa jurídica), Richard Busch (culpabilidade pelo espírito normativo da pessoa jurídica), Joachim Schroth (culpabilidade funcional do órgão), Anne Erhardt (culpabilidade pela não evitação das influências criminógenas da pessoa jurídica), entre outros. Entretanto, por todos estes modelos ainda possuírem uma marcada tendência à heterorresponsabilidade, tornam-se menos interessantes desde a perspectiva do presente ponto. Para um maior detalhamento destas e outras propostas, Carlos Gómez-Jara Díez (2005 e 2012c). Da mesma forma, não são apreciados os modelos oriundos do direito anglo-saxão, pois apesar de se mostrarem bastante pertinentes, em especial o de Brent Fisse e John Braithwaite (1993), são eles pautados por fundamentações cujas premissas são totalmente distintas daquelas observadas no âmbito do civil law, sendo, assim, manifestamente inaplicáveis.

149 Conforme leciona Luis Gracia Martín (1996, p. 60), Klaus Tiedemann defende que se “las personas jurídicas pueden concluir contratos del cártel o de colusión contrarios a los mandatos y prohibiciones de la ley contra las prácticas restrictivas de la competencia y, por las mismas razones que pueden realizar dichas acciones, pueden también omitirlas.”. Em tradução livre: “as pessoas jurídicas podem concluir contratos de cartel ou de conluio

Desde logo, é preciso esclarecer que, no entender de Tiedemann, esta capacidade de ação não se materializa de maneira autônoma, isto é, as pessoas jurídicas não são capazes de agir de forma independente das pessoas físicas que a compõem, pois o substrato material do comportamento da pessoa jurídica encontra-se necessariamente nos indivíduos que a integram, representados a partir dos seus órgãos e dos seus representantes. Tiedemann, porém, apesar da compreensão acima exposta, defende que a responsabilidade das pessoas físicas não será o fator determinante por fazer igualmente responsável a pessoa jurídica. Pelo contrário, deve-se buscar nas próprias entidades coletivas os elementos normativos necessários para responsabilizá-las (ZUGALDÍA ESPINAR, 2008, p. 143).

Isto não seria, no entender do aludido autor, algo inédito em sede do direito penal, posto que este ramo do ordenamento já conhece situações em que a autoria se fundamenta através da imputação de um fato realizado por um terceiro, sendo precisamente este o caso das situações de coautoria ou de autoria mediata. Nestas hipóteses, se imputa ao coautor e / ou ao autor mediato a perpetração de ações ou de omissões não realizadas diretamente por eles, mas sim através de outro coautor ou de um instrumento. Disto resulta que a pessoa jurídica, como coautor e / ou autor mediato, responde por um fato próprio, ainda que outro sujeito, na figura de seus órgãos e / ou representantes, tenham sido os responsáveis pela realização da conduta típica propriamente dita (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 61).

Neste sentido, para que uma pessoa jurídica possa ser responsabilizada criminalmente, como coautora ou autora mediata, é necessário que a ação realizada por uma pessoa física possa ser considerada, jurídica e socialmente, como própria da entidade coletiva, pois somente desta forma se pode legitimar a imposição de uma pena a esta entidade. Isto apenas teria lugar, no entender de Tiedemann, nas hipóteses em que for possível estabelecer um “fato de conexão” entre a conduta da pessoa física que realiza a vertente objetiva do tipo penal e o comportamento da empresa (ZUGALDÍA ESPINAR, 2008, p. 350).

Ressalte-se, porém, que a proposta de Tiedemann não procura simplesmente transferir o ato da pessoa física a outra que nada realizou. O que o autor pretende estabelecer, na verdade, são as condições normativas necessárias para que se entenda o ato da pessoa física como sendo próprio da pessoa jurídica (ZUGALDÍA ESPINAR, 2008, p. 144). Isto posto, o referido autor defende que os atos lesivos individuais, comissivos ou omissivos, somente poderão ser considerados como “fatos de conexão” quando (a) vulnerarem obrigações e deveres da pessoa jurídica no exercício de suas atividades sociais, (b) tiverem

contrários aos mandatos e proibições da lei contra as práticas restritivas da concorrência e, pelas mesmas razões que podem realizar ditas ações, podem também as omitir.”.

sido perpetrados direta ou indiretamente (infração do dever de cuidado) por pessoas com capacidade de decisão dentro da pessoa jurídica e (c) tiver a pessoa física atuado por conta e em proveito da entidade coletiva. Apenas quando estas condições forem observadas, é possível dizer que a ação individual representa legitimamente uma ação lesiva própria da pessoa jurídica (ZUGALDÍA ESPINAR, 2008, p. 351).

Nestas condições, portanto, Tiedemann aceita a capacidade de ação da pessoa jurídica, entendida de forma diversa daquela da pessoa física, mas a ela ainda vinculada. Vencida a problemática da ação, porém, ainda remanesce o obstáculo principal para a imputação de um delito para o ente coletivo: sua capacidade de culpabilidade.

É importante ressalvar, neste contexto, que a construção do referido autor, apesar de ser ele um destacado penalista, não parte de uma perspectiva relacionada com o direito penal, mas sim com o direito administrativo sancionador. Isto porque, Tiedemann se aproveitou da introdução de uma lei administrativa, promulgada com a finalidade de combater a criminalidade econômica, para efetuar e desenvolver uma série de considerações em torno do parágrafo 30 da aludida normatização, o qual trata, precisamente, da punição administrativa das associações decorrente da prática delitiva. E porque é isto relevante? Pelo fato de que as exigências necessárias para a realização de um juízo de culpabilidade no âmbito de uma infração administrativa são consideravelmente menores que aquelas feitas pelo direito penal, o que autorizaria, naturalmente, uma flexibilização deste conceito (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2012c, p. 163).

A partir desta premissa, torna-se possível legitimar um conceito de culpabilidade não mais embasado, como de costume, em uma reprovação de conteúdo ético, mas sim em um juízo pautado por considerações orientadas por categorias jurídicas e sociais, criando-se, pois, um conceito amplo de culpabilidade para as pessoas jurídicas, radicado por um sentido social (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 62). Isto posto, para o referido autor, o juízo de reprovação social que fundamenta a responsabilidade penal da pessoa jurídica é a culpabilidade pelo defeito de organização, visto que, no marco da pessoa jurídica, o delito / infração administrativa surge como um erro organizacional da mesma. O cerne de sua construção dogmática acerca da culpabilidade empresarial, portanto, seria pautada medularmente pela figura da omissão corporativa, uma vez que a responsabilidade da pessoa jurídica pelos delitos realizados pelos indivíduos que a integram apenas restará estabelecida quando, através de seus órgãos ou de seus representantes, esta tiver se omitido em tomar as medidas necessárias para assegurar o funcionamento empresarial ordenado e não delitivo,

sendo justamente este momento omissivo o fundamento justificador do juízo de reprovação dirigido ao ente coletivo (BACIGALUPO SAGESSE, 1997, p. 193) 150.

Tiedemann, porém, consciente de que sua formulação quanto à culpabilidade pelo defeito de organização poderia ser acusada de incorrer no mesmo equívoco teórico dos modelos de heterorresponsabilidade penal, ou seja, o de justificar a responsabilização das pessoas jurídicas através de fatos alheios e não próprios, explica que o fundamento do juízo de reprovação em face dos entes coletivos reside em uma construção deveras conhecida na dogmática penal, isto é, na teoria da actio libere in causa (ação livre na causa)151. Disto decorre que a carência de uma culpabilidade diretamente relacionada com o cometimento do fato lesivo – visto que o delito em si foi perpetrado pelos órgãos e / ou representantes da empresa – é absolutamente irrelevante, posto que a culpabilidade nestes casos, tal como ocorre com um indivíduo em estado de embriaguez, deve ser verificada em um momento antecedente ao fato lesivo, propriamente empresarial, representado na falha da pessoa jurídica em ter se organizado adequadamente de forma a evitar a perpetração do ato delitivo individual (defeito de organização) (GRACIA MARTÍN, 2016, p. 18).

Desta feita, de acordo com esta formulação de Klaus Tiedemann, torna-se possível fundamentar uma culpabilidade própria das pessoas jurídicas, fundamentada, conforme aponta Carlos Gómez-Jara Díez (2012c, p. 164), na “omissão das medidas de segurança – ocasionadas pela deficiente organização da pessoa jurídica – de maneira prévia à comissão do delito ou da contravenção, por parte do órgão ou do representante da empresa”.152

Desta maneira, Tiedemann consegue se afastar, ao menos de forma aparente, dos modelos que estabelecem uma heterorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas, propondo, pois, um modelo próprio de responsabilização para as empresas. Sua fundamentação, ademais, possui uma notável virtude, pois consegue manter a culpabilidade como um juízo

150 A única exceção a este regra é quando se constatar que a pessoa física agiu mediante um “excesso de representação”. Conforme leciona Davi Tangerino (2011a, p. 890), “com este termo se designa todo ato ou conjunto de atos que, embora tomado dentro do âmbito da pessoa jurídica, constitua abuso funcional por parte da pessoa natural que dela faz parte. Neste caso, logicamente, a pessoa jurídica não deveria arcar com a responsabilidade pelo delito cometido, pois a ela não pode ser imputado um dever de evitar comportamentos que excedam as funções internamente distribuídas para persecução de sua atividade.”.

151 Conforme explica Cláudio Brandão (2010, p. 253), a teoria da actio libere in causa “foi criada pelos práticos italianos, durante a baixa Idade Média, e se referia, em princípio, àqueles casos onde o agente se embriagava para cometer uma ação delituosa, ou seja, a embriaguez preordenada. Como sabido, a regra é que a imputabilidade seja aferida no momento da prática da ação ou da omissão, todavia, a actio libere in causa propõe que o momento dessa verificação seja antecipado até o momento anterior ao estado de embriaguez. Segundo essa teoria, se o sujeito imputável decide se embriagar ou culposamente se embriaga, deverá responder pelos atos praticados em estado de ebriedade.”.

152 Traduzido livremente do original: “omisión de las medidas de seguridad – como causa de la deficiente organización de la persona jurídica – de manera previa a la comisión del delito o la contravención por parte del órgano o representante de la empresa”.

individualizador da responsabilidade coletiva, tal qual ocorre com as pessoas físicas (GÓMEZ TOMILLO, 2015, p. 137).

Entretanto, apesar do grande reconhecimento por parte da doutrina da formulação elaborada por Tiedemann, isso não significa que a sua proposta tenha sido plenamente aceita. Neste sentido, as críticas ao referido modelo de responsabilização costumam se concentrar em três pontos principais: (a) o recurso à teoria da actio libere in causa, (b) a exigência da presença de um “fato de conexão” e (c) a inadmissão de causas de exculpação.

Com relação à primeira crítica, focada no (a) recurso à teoria da actio libere in causa, entende-se que a formulação de Tiedemann não impede a constatação de que, em última análise, a pessoa jurídica permanece incapaz de agir. Isto porque, com independência à vertente da teoria da actio libere in causa que se pretenda utilizar, sempre se acaba no mesmo ponto de partida, representado pela necessidade de se constatar a existência de uma decisão livre do próprio autor, materializada em uma ação ou omissão. Dado que esta decisão / ação não foi adotada / realizada pela empresa como tal, mas sim pelo seu órgão / representante, tornar-se-ia impossível direcionar um juízo de reprovação ao ente coletivo pautado pela ideia da actio libere in causa, sob pena de, caso contrário, ter que se realizar uma regressão até o infinito (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2012c, p. 165).

Outro demérito costumeiramente apontado na teoria de Tiedemann é (b) a exigência da presença de um “fato de conexão” para responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas, posto que, ao realizar esta demanda, a presente proposta segue sem solucionar a questão político-criminal da irresponsabilidade organizada. Isto porque, nos casos em que não for possível individualizar a conduta típica em um órgão ou representante da empresa, tampouco será possível identificar a ocorrência de um “fato de conexão”, impossibilitando-se, pois, a responsabilização penal do coletivo (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 158).

Por fim, e possivelmente mais importante para rechaçar o presente modelo, está o fato de que, apesar do que se poderia concluir em decorrência lógica dos postulados apresentados por Tiedemann, o referido autor – provavelmente receoso de que as empresas pudessem ter suas responsabilidades excluídas mediante um cumprimento superficial das normas básicas de organização empresarial – defende que a pessoa jurídica não pode se livrar de uma sanção penal nem com a prova de que se organizou adequadamente, nem tampouco com a demonstração de inexistência de nexo de causalidade entre o “fato de conexão” e o defeito organizativo, isto é, com a comprovação de que apesar de haver um crime imputável à empresa (“fato de conexão”) este não foi ocasionado por defeito organizacional algum. É este,

portanto, o cerne da crítica quanto à (c) a inadmissão de causas de exculpação. Ora, se o grande mérito desta teoria é justamente o de criar uma diferenciação entre uma culpabilidade individual e uma culpabilidade própria das empresas, não pode o autor, em seguida, tentar evitar todas as consequências derivadas deste fato. Como bem afirma Carlos Gómez-Jara Díez (2012c, p. 166), “ou se imputa uma culpabilidade empresarial – autorresponsabilidade – ou se imputa a de outra pessoa – heterorresponsabilidade –; mas o que não se pode fazer é mesclar os fundamentos de um modelo com as consequências de outro.”153.

Por todas estas razões, deve-se entender a construção dogmática de Klaus Tiedemann como um modelo impuro de autorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas, pois apesar de superar os modelos de heterorresponsabilidade com suas formulações, o faz com extrema dificuldade, estabelecendo, na verdade, apenas o grau mínimo de legitimidade necessário para a admissão de um sistema sancionatório direcionado aos entes coletivos (FEIJOO SÁNCHEZ, 2012b, p. 76).

5.3.2 O modelo de Ernst Lampe: o sistema de injusto, o injusto de sistema e a

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