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3. A CRISE REGULATÓRIA E O FENÔMENO DA AUTORREGULAÇÃO REGULADA

3.3 O PAPEL DO ESTADO E DA SOCIEDADE DENTRO DO CONTEXTO DA AUTORREGULAÇÃO

A noção de autorregulação regulada é empregada em diversos matizes, não servindo para fazer referência apenas a uma única experiência, mas sim a uma grande gama destas, nem sempre homogêneas entre si. A doutrina, nos últimos anos, tem tratado de forma bastante intensa sobre o tema, em especial no âmbito internacional, com o objetivo claro de reduzir, ainda que parcialmente, um conjunto plural de experiências em direção a uma unidade conceitual. Antes de tratar deste fenômeno em detalhes, porém, um delineamento prévio se faz necessário, mais especificamente quanto ao conceito de autorregulação, isoladamente compreendido (ARROYO JIMÉNEZ, 2015, p. 27).

Existe majoritariamente na doutrina sobre o assunto uma separação das definições sobre a autorregulação em dois conceitos diferentes, um com maior força no âmbito do common law e outro com maior importância nos países cuja escola legal é pautada pelas diretrizes do civil law. Neste sentido, a acepção acerca da autorregulação em cada um desses

dois cenários variará de forma significativa, até porque os limites do que pode ou não ser delegado à esfera privada pelo poder público em cada uma destas realidades sociais serão bastante distintos.

No cenário da common law, a reflexão sobre o tema se deu de maneira mais contundente nos Estados Unidos e no Reino Unido, a partir do marco da teoria da regulação (regulation theory). No contexto anglo-saxão, a autorregulação adquire um sentido bastante abrangente, cobrindo uma quantidade significativa de diferentes estruturas que vão desde uma autoimposição voluntária de standards de conduta por parte dos indivíduos e das organizações até “a delegação da atribuição normativa pública em favor de associações de base privada, representativas dos sujeitos que desenvolvem uma determinada atividade.”74 (ARROYO JIMÉNEZ, 2015, p. 28). Enquanto fenômeno jurídico, a autorregulação, sob esta perspectiva, deve ser entendida como a delegação expressa da atribuição normativa do Estado em favor dos particulares (ARROYO JIMÉNEZ, 2015, p. 29).

Por outro lado, a segunda acepção, desenvolvida mais fortemente nos países da Europa continental, encontra sua origem na doutrina alemã e, a partir daí, se irradia para os demais países do continente onde vigora a tradição do civil law. A autorregulação, nesta perspectiva, só se encontra caracterizada quando, em primeiro lugar, quem se autorregula assume como próprios os resultados da autorregulação e, de outro modo, quando a referida atribuição regulatória corresponde à consecução de um fim que deve ser alcançado mediante a autorregulação, e não através da regulação estatal (GARDELLA, 2002, p. 481). Juridicamente, em uma visão oposta à anglo-saxã, a perspectiva continental determina que não se pode falar em autorregulação quando os sujeitos privados tiverem a si atribuídos poderes públicos, pois dessa forma estaríamos diante de uma atividade que naturalmente confluiria para o domínio próprio do Estado (GARDELLA, 2002, p. 483). A autorregulação, nesta perspectiva, corresponde àquelas manifestações da atividade social que, geradas em outros de seus campos, podem ser levadas em consideração ou assumidas como referência pelos poderes públicos e pelo direito, mas que, em primeiro plano, são levadas a cabo pela própria sociedade (ESTEVE PARDO, 2002, p. 36).

Por óbvio, não se pode afirmar que uma ou outra perspectiva estaria mais ou menos correta. Cada uma corresponde a um panorama jurídico próprio, com características moldadas a partir de visões totalmente distintas do direito e da regulação. Todavia, para os fins do presente argumento, a perspectiva de autorregulação que possui maior importância é a

74 Traduzido livremente do original: “la delegación de la potestad normativa pública en favor de asociaciones de base privada representativas de los sujetos que desarrollan una determinada actividad.”.

do modelo europeu continental. O relevante, aqui, é perceber o processo em que os efeitos da referida noção, gerados no âmbito regulatório privado, extrapolam esta esfera e passam a afetar interesses públicos, e não o contrário, como parece sugerir a perspectiva delegatória da doutrina anglo-saxã (ESTEVE PARDO, 2015, p. 51). Quando estes efeitos saem de uma dinâmica exclusivamente privada, alcançando relevância pública, não estamos mais diante de uma perspectiva puramente autorregulatória, mas, ao contrário, de uma regulação do próprio procedimento autorregulatório. (ARROYO JIMÉNEZ, 2015, p. 32).

A união entre Estado e sociedade, sob esta perspectiva, pode assumir arranjos diversos, variando de acordo com o comportamento de fato de ambas as partes envolvidas na dinâmica regulatória. Dentro do conjunto de possibilidades de configuração desta nova situação, existem cinco perspectivas que são destacadas de maneira mais acentuada pela doutrina com a finalidade de delimitar como se daria a relação entre Estado e sociedade no referido contexto: a (a) mandated self-regulation, ou autorregulação vinculante, em que uma organização ou grupo de sujeitos privados é designado para aplicar normas dentro de um marco geral estabelecido diretamente pela autoridade central; a (b) sanctioned self-regulation, ou autorregulação “aprovada”, em que um grupo coletivo formula ele mesmo os parâmetros autorregulatórios, que depois é submetido à aprovação governamental; a (c) coerced self- regulation, ou autorregulação coercitiva, em que as organizações privadas realizam elas mesmas sua regulação, mas em resposta à ameaças governamentais de imposição de sanções em caso de descumprimento; a (d) voluntary self-regulation, ou autorregulação voluntária, onde inexiste envolvimento do Estado, direto ou indireto, na promoção ou estímulo da autorregulação, ocorrendo por desígnio autônomo das entidades privadas (BLACK, 19996, p. 27); Por fim, a (e) enforced self-regulation, ou autorregulação regulada / forçada, representaria a situação em que o Estado obriga as entidades privadas (empresas, associações, ONGs, etc.) a escrever um conjunto de regras, adequada às contingências individuais de cada grupo, e exerce a sua autoridade em segundo plano, a partir de uma regulação da atividade autorregulatória, com o objetivo de garantir a submissão desta aos fins públicos desejados (BRAITHWAITE, 1982, p. 1.470).

O modelo mais coerente com o presente argumento, portanto, é justamente o último, da autorregulação regulada (enforced self-regulation). Tal proposta se erige como uma estratégia indireta de regulação que permite uma coerente articulação entre uma racionalidade privada e uma racionalidade pública de regulação direcionada à consecução de fins de natureza pública. Como explica Mercè Darnaculleta I Gardella (2015a, p. 65):

Mediante a autorregulação, os sujeitos e organizações privadas ordenam sua atividade, dotando-se voluntariamente das normas e controles mais adequados para a consecução de um determinado fim. Mediante a regulação pública da autorregulação, os poderes públicos supervisionam a atuação privada de aprovação, aplicação e controle do cumprimento de tais normas com o fim de garantir que a autorregulação sirva efetivamente ao cumprimento de fins públicos concretos ou de interesses gerais previamente determinados pelo legislador.75

Delineado o contexto em que se insere o paradigma da autorregulação regulada, mostra-se pertinente realizar a seguinte indagação: dentro deste novo marco regulatório, qual é o papel específico do Estado? E a sociedade, como pode ajudar na consecução dos fins pretendidos por este novo modelo?

Em relação ao primeiro questionamento, dentro de um contexto de regulação da autorregulação, o Estado ficaria incumbido basicamente de três tarefas: (a) o fomento da autorregulação; (b) a atribuição de efeitos públicos à autorregulação e (c) a regulação do contexto da autorregulação. Cada um destes compromissos é feito de uma maneira individualizada, necessitando, para uma melhor compreensão, de uma explicação própria.

A função de (a) fomento da autorregulação parte da ideia de estimular os particulares para que eles, por vontade própria, possam desenvolver atividades autorregulatórias no âmbito de suas atividades. Trata-se, portanto, de uma ação de convencimento por parte do Estado para que os diversos setores da sociedade se autorregulem, com o intuito claro de conseguir reduzir os riscos que eles próprios terminam gerando com suas atividades (GARDELLA, 2002, p. 569). No exercício deste papel, o Estado pode se utilizar tanto de estímulos de caráter positivo – auxílios econômicos ou concessão de títulos distintivos que venham a melhorar a imagem daqueles entes que venham a autorregular76 – como de caráter negativo, como o uso da legislação para ameaçar e sancionar as entidades privadas através de punições administrativas, cíveis ou criminais77 (GARDELLA, 2002, p. 651).

75 Traduzido livremente do original: “Mediante la autorregulación, los sujetos y organizaciones privadas ordenan su actividad, dotándose voluntariamente de las normas y controles más adecuados para la consecución de un determinado fin. Mediante la regulación pública de la autorregulación, los poderes públicos supervisan la actuación privada de aprobación, aplicación y control del cumplimiento de tales normas con el fin de garantizar que la autorregulación sirva efectivamente al cumplimiento de los concretos fines públicos o de interés general previamente determinados por el legislador.”.

76 Um exemplo claro nesse sentido é a distinção concedida pela Controladoria Geral da União (CGU) às empresas brasileiras que adotem firmes procedimentos autorregulatórios, com vistas a evitar a prática de condutas ilícitas no âmbito de sua atuação. Tal título, anualmente concedido, foi denominado pela CGU de “Empresa Pró-Ética”, sendo amplamente divulgado através dos meios de comunicação. O intuito é claro: destacar positivamente determinadas empresas que se destacaram no compromisso de atuar eticamente no escopo de suas atividades, com o objetivo de estimular as demais a copiar o modelo das corporações em destaque.

77 No Brasil, por exemplo, entrou em vigor no ano de 2013 a Lei no. 12.846, popularmente conhecida como Lei Anticorrupção. A referida legislação autoriza a sanção administrativa e civil de pessoas jurídicas que venham a

Já o segundo papel do Estado perante a sociedade no contexto da autorregulação regulada consiste na (b) atribuição de efeitos públicos à autorregulação, cuja gradação poderá demonstrar o nível de confiança que deposita a autoridade estatal nos entes que se autorregulam. Neste sentido, a administração pode conceder: (i) efeitos habilitantes – mediante a habilitação dos particulares de exercer determinada atividade industrial ou profissional; (ii) efeitos probatórios – através do reconhecimento por parte da administração pública da validade da autorregulação em eventuais feitos de natureza administrativa, cível ou criminal, funcionando como verdadeiras provas no âmbito de eventuais processos; (iii) efeitos vinculantes – concedidos quando se obriga aos particulares, mediante uma lei ou regramento, que utilizem, ou até mesmo que aprovem, determinados instrumentos de autorregulação; e, por último, (iv) efeitos de coisa julgada – através da concessão de efeitos equivalentes aos de uma sentença judicial, como, por exemplo, mediante a obtenção de um laudo arbitral (GARDELLA, 2002, p. 573).

Em função do grau de relevância dos referidos efeitos públicos que podem vir a ser concedidos pelo Estado às entidades privadas que se autorregulem, faz-se necessário também um terceiro papel por parte da autoridade estatal, representado na (c) regulação do contexto da autorregulação. Através desta última função, o Estado fixa os fins, os objetivos, os procedimentos de atuação e as normativas jurídicas que devem balizar as eventuais atividades autorregulatórias. Ademais, cabe à autoridade estatal criar mecanismos de controle adequados, com o objetivo de unir as iniciativas tomadas no âmbito privado com a supervisão pública da referida atividade. Não se pode, por óbvio, deixar todo o trabalho para as entidades privadas, abdicando-se, pois, da regulação estatal em um segundo momento (GARDELLA, 2002, p. 587).

Estabelecidas estas funções, fica bastante evidente que a autoridade estatal possui uma relevância significativa no âmbito da autorregulação regulada, especialmente como entidade supervisora de todo o processo, a qual deverá estimular o cumprimento de seus comandos, conceder efeitos públicos às atividades autorregulatórias e, por fim, regular as ações desenvolvidas pela esfera privada.

ser flagradas praticando atos de corrupção no âmbito de sua atuação. A correlação clara com a autorregulação regulada em si não é propriamente a possibilidade sancionatória da empresa, mas sim o comando previsto no Art. 7o, inciso VIII, que determina a redução da sanção atribuída às pessoas jurídicas caso seja constatada “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;”. A administração brasileira, portanto, através da referida legislação, exerce uma função de fomento da autorregulação, pois estabelece pressupostos normativos que permitem um alívio sancionatório em uma eventual condenação caso a empresa tenha se autorregulado adequadamente.

A sociedade, por outro lado, possui um papel primordial na consecução dos fins estabelecidos pelo modelo da autorregulação regulada. Diferentemente de outras épocas, as entidades privadas não poderão mais agir de maneira passiva, cabendo a elas uma função nuclear no âmbito da consecução dos fins estabelecidos pelo Estado. Neste sentido, destacam- se os seguintes instrumentos autorregulatórios: (a) instrumentos normativos; (b) instrumentos de controle; (c) instrumentos declarativos e (d) instrumentos resolutivos.

Por (a) instrumentos normativos se entende a elaboração de normas procedimentais por parte das entidades privadas no sentido de estabelecer como deverá se realizar um dado âmbito de atividade. Os referidos instrumentos encontram-se normalmente concretizados mediante a elaboração, por parte do ente autorregulado, de normas técnicas, códigos e manuais de boas práticas, protocolos e procedimentos (GARDELLA, 2002, p. 494).

Já os (b) instrumentos de controle representam, na verdade, uma consequência dos primeiros. Na medida em que uma determinada entidade privada decide inserir dentro do seu contexto qualquer dos instrumentos normativos acima delineados, faz-se necessário impor a obediência aos referidos postulados, controlando o comportamento tanto da organização quanto dos indivíduos inseridos em seu ambiente. Por óbvio, a organização não poderá se limitar a simplesmente criar normativas próprias, mas deverá igualmente impor o seu cumprimento a todos os seus membros

Os (c) instrumentos declarativos, de outro modo, se relacionam com a certificação do acatamento, por parte das entidades privadas, dos instrumentos normativos. O aspecto relevante desta prática é justamente o de fornecer uma informação aos profissionais, às empresas e ao público geral acerca do nível de cumprimento das normativas vigentes no âmbito de uma dada organização. É o caso, por exemplo, das certificações ISO (International Organization for Standardization), que podem ser buscadas pelas empresas para demonstrar o respeito às normas vigentes em suas atividades (GARDELLA, 2002, p. 501).

Por fim, os (d) instrumentos resolutivos dizem respeito aos mecanismos de resolução de conflitos, em caso de descumprimento das normas de controle fixadas no âmbito organizacional. Neste sentido, destacam-se tanto as sanções disciplinares, impostas pela própria entidade privada aos seus membros, como as resoluções de arbitragem, consistente na submissão de dois ou mais sujeitos às determinações de câmaras arbitrais, excluindo, assim, a via judicial (GARDELLA, 2002, p. 508).

Diante da presente exposição, torna-se claro que o modelo da autorregulação regulada seria, hoje, possivelmente, um dos que melhor responderiam a este interesse geral do Estado de posicionar-se perante uma espécie de “intervencionismo à distância”, o qual

permitiria à autoridade estatal se valer da própria sociedade para cumprir com diversas de suas funções. Mediante a autorregulação regulada, diminuir-se-ia o tamanho do fardo estatal, ao mesmo tempo em que se tornaria a regulação muito mais eficaz (COCA VILA, 2013, p. 52).

Esta conclusão, entretanto, leva a um ponto central na presente exposição: dentro do âmbito da autorregulação regulada, provavelmente as entidades privadas que serão mais fortemente afetadas com as obrigações autorregulatórias serão precisamente as empresas. Estes entes são, na atualidade, os maiores responsáveis pela criação e incremento dos riscos para a sociedade, até mesmo pela própria natureza das atividades que desenvolvem. Não por outra razão, são justamente as corporações, hoje, as maiores destinatárias dos novos comandos jurídicos oriundos do movimento de expansão do direito narrado anteriormente, cujo descumprimento pode trazer efeitos nefastos sob a forma de sanções de natureza cível, administrativa e, mais especialmente, criminal (BACIGALUPO, 2011, p. 21).

Isto posto, é preciso tratar em maiores detalhes como o direito penal empresarial – aquele que parece ser um dos âmbitos mais ricos para o desenvolvimento do direito penal na atualidade – se relaciona com a dinâmica apresentada no presente capítulo, ou, dito de outro modo, de que forma as compreensões apresentadas até aqui sobre a autorregulação regulada podem auxiliar o Estado no aumento da eficácia relativa ao combate e à resposta punitiva destinada à criminalidade empresarial.

3.4. AUTORREGULAÇÃO REGULADA E DIREITO PENAL EMPRESARIAL:

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