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4. OS PROGRAMAS DE CORPORATE COMPLIANCE

4.2 OS MODELOS POSSÍVEIS PARA UM PROGRAMA DE CORPORATE COMPLIANCE: PANÓPTICO

A primeira medida a ser tomada quando da elaboração ou implementação de um programa de compliance é estabelecer a sua orientação geral, isto é, fixar quais são os meios e

os limites da empresa na hora em que for cumprir com o seu exercício preventivo (NIETO MARTÍN, 2015c, p. 121). Essencialmente, os programas de cumprimento normativo podem ser estabelecidos em dois modelos distintos, um baseado na supervisão, vigilância e controle da corporação e outro pautado pelo desenvolvimento de um clima de respeito à legalidade e de estímulo aos valores éticos inerentes à atividade empresarial (NIETO MARTÍN, 2013a, p. 33).

O primeiro desses modelos é bastante controverso, pois, em troca da obtenção de um pretendido cumprimento normativo, a empresa se dispõe a realizar uma série de medidas incisivas de controle sobre seus empregados, transformando o seu programa de corporate compliance em uma espécie de serviço de inteligência. Para tanto, o referido modelo aposta em medidas como o acesso indiscriminado aos correios eletrônicos dos funcionários, a análise constante dos registros de chamadas telefônicas, a visualização periódica dos acessos realizados pela internet, a vídeo-vigilância, a contratação de detetives privados, a aceitação de denúncias anônimas, etc. A vigilância empresarial poderia até mesmo se estender à utilização de técnicas conhecidas como risk profiling, cujo objetivo é traçar o “perfil de risco” dos empregados ou aspirantes a postos de direção da empresa, estabelecendo uma espécie de índice individual de risco (NIETO MARTÍN, 2015c, p. 122). Tais procedimentos respaldam a ideia de “inteligência corporativa”, havendo, atualmente, empresas que chegam até mesmo a oferecer serviços baseados no know how procedente dos serviços secretos de inteligência para garantir aos seus clientes a obtenção de um serviço que forneça o devido controle pretendido (NIETO MARTÍN, 2013a, p. 33).

A real pretensão desse modelo de vigilância seria a de induzir na mente dos indivíduos que fazem parte da corporação a ideia de estarem em permanente estado de vigilância, mesmo sem que necessariamente estejam sendo vigiados95. Tal noção seria responsável por assegurar o funcionamento automático das relações de poder inerentes ao ambiente corporativo, reforçando os ideais de disciplina e da atuação em conformidade com a

95 O efeito pretendido por um sistema concebido nesses moldes seria equivalente ao exercido pelas fictícias teletelas, descritas por George Orwell (2007, p. 06) em sua clássica obra “1984”. Tais aparelhos “recebiam e transmitiam informações simultaneamente. Qualquer barulho que se fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto se permanecesse no campo de visão da placa metálica, o indivíduo poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que frequência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento observava a casa desta ou daquela pessoa. Era concebível, mesmo, que a polícia observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que a polícia podia ligar determinada tela no momento em que desejasse. Tinha-se que viver – e vivia-se por hábito transformado em instinto – na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado”.

lei, pretendidos pela corporação (FOUCAULT, 2010, p. 191)96. Porém, ainda que um programa de compliance baseado na ideia de vigilância possa vir a ser mais efetivo, o que não é sequer comprovado, proporcionando um maior controle sobre os riscos corporativos, o preço cobrado pela adoção de tal regime se mostra demasiadamente elevado.

Se uma corporação vem a adotar o modelo de vigilância para desenvolver seu programa de compliance, ela estará convertendo sua estrutura em uma espécie de panóptico empresarial, cujos efeitos lesionam de forma grave diversos direitos fundamentais de seus empregados, como o da intimidade, o segredo de suas comunicações e o direito à proteção de dados. Isso sem falar nas inúmeras incompatibilidades no âmbito das relações laborais, em razão do menoscabo de diversos direitos dos trabalhadores em prol de uma maior efetividade, o que não se pode admitir (NIETO MARTÍN, 2013a, p. 33)97.

Por outro lado, o segundo modelo de programa de cumprimento se vê fundamentado em valores éticos, estimulados através do investimento na formação dos subordinados da empresa, com o fim de que nela impere uma cultura de respeito à legalidade. Irá se buscar, pois, a realização de medidas positivas de controle com o intuito de neutralizar fatores culturais ou dinâmicas de grupo que favoreçam o surgimento de comportamentos desviados dentro da corporação e o fomento a uma cultura de ilegalidade (SILVA SÁNCHEZ, 2013b, p. 100) – algo que poderia se apresentar como um combate à associação diferencial, apresentada por Sutherland (1983), dentro do ambiente corporativo.

Assim, o grande objetivo de um programa de compliance pautado por valores deverá ser o de conseguir que as entidades empresariais se mobilizem no intuito de estabelecer uma relação respeitosa com o entorno social em que atuam. Mediante este tipo de organização, o objetivo será o de alcançar um ambiente eticamente adequado nos diversos âmbitos da empresa. As companhias, portanto, buscarão atuar como bons cidadãos corporativos movidos pelo respeito a uma pretensa responsabilidade social com o meio circundante (GARCÍA CAVERO, 2014, p, 16).

Não se pense, todavia, que aqui não se exerceria nenhum tipo de controle sobre as ações dos entes da corporação. Haveria, sim, o exercício do controle, mas a partir de procedimentos muitas vezes já inseridos na própria atividade empresarial, como medidas

96 Michel Foucault (2010) obviamente não trata da delinquência empresarial em sua obra Vigiar e Punir, mas o seu estudo e análise acerca do Panóptico de Bentham representam, com precisão, a ideia por traz de um programa de compliance voltado para o exercício contínuo de vigilância sobre os empregados da corporação. 97 Pesquisas empíricas realizadas no campo da criminologia têm apontado a imprestabilidade dos modelos de

vigilância e controle para garantir o cumprimento adequado das normativas da empresa por parte de seus funcionários. Na verdade, conforme explica Tom Tyler (2009, p. 204), “such strategies actually encourage people to hide their behavior.”. Em tradução livre: “estas estratégias encorajam as pessoas a esconder os seus comportamentos.”.

contábeis, seleção de provedores e pessoal, controle de fluxo, etc. Em sua essência, pois, esta corrente defende que o controle exercido nos programas de compliance deveria se basear nas ideias de reação e prevenção, e não na de vigilância (NIETO MARTÍN, 2013a, p. 33).

Tal diferença torna-se mais evidente quando se analisa a relação entre controle e liberdade existente em ambas as propostas. Enquanto no sistema de vigilância os instrumentos utilizados devem portar-se como meios de fishing – no sentido de “pescar” aleatoriamente informações sobre irregularidades dentro da empresa –, os sistemas de promoção de valores internos almejam a utilização dos meios investigativos de forma reativa e preventiva, funcionado a partir do momento em que se detecta a possibilidade de ocorrência de um ato ilícito, buscando preveni-lo (NIETO MARTÍN, 2013a, p. 34). Para que isto ocorra, contudo, um programa de corporate compliance com base na promoção de valores exigirá uma nova composição dos instrumentos utilizados no âmbito da empresa para combater a ilegalidade.

Esse tipo de proposta, portanto, firmada em valores éticos, pressupõe uma reviravolta no comportamento atual de maior parte das empresas. Ao invés dessas se direcionarem a evitar o risco através de medidas de estímulo à vigilância – em que as ameaças são apenas remediadas e não profilaticamente prevenidas –, as corporações passariam a estabelecer diretrizes em conformidade com códigos éticos de conduta, com o objetivo de cumprir com o sistema normativo vigente, evitando-se, assim, o próprio surgimento de situações de risco. Como consequência, torna-se claro que o cumprimento normativo, nesse tipo de modelo, começa muito antes da ocorrência de uma conduta juridicamente relevante, se direcionando em prol de uma atuação pautada por ideais de prevenção e não de repreensão, em que a criação de um ambiente de respeito à legalidade possui importância maior do que a persecução e punição dos infratores (NIETO MARTÍN, 2013a, p. 28)98.

Um programa de compliance pautado por valores éticos, contudo, só poderá funcionar na medida em que se tomem medidas proativas em prol de sua eficácia, pois de que

98 A maior efetividade de um modelo de programa de compliance pautado por valores éticos encontra respaldo em estudos empíricos realizados no campo da criminologia. Neste sentido, explica Tom Tyler (2009, p. 205) que “Earlier studies in the area of everyday law-related behavior highlight the important role of ethical values in encouraging citizen compliance with the law. It has been shown that people are more likely to comply with laws when they feel that legal authorities are legitimate and ought to be obeyed. The findings noted support this argument and extend it to a different arena – employees and their relationship to the corporations in which they work. Recent corporate scandals have highlighted the importance of an effort to better understand how to motivate employee compliance with corporate codes of conduct.”. Em tradução livre: “Estudos anteriores na área do comportamento quotidiano relacionado com a lei destacam a importante função dos valores éticos no encorajamento do cumprimento das leis pelos cidadãos. Foi demonstrado que as pessoas estão mais inclinadas a cumprir com as leis quando elas sentem que as autoridades legais são legítimas e devem ser obedecidas. Os resultados encontrados concedem suporte ao presente argumento e o estendem para arenas diferentes – empregados e seus relacionamento com as corporações em que trabalham. Escândalos corporativos recentes destacaram a importância do esforço de melhor entender como motivar a conformidade dos empregados com os códigos corporativos de conduta.”.

adianta a organização de um complexo aparato preventivo e reativo se, ao fim, o programa de cumprimento se apresenta como um instrumento meramente formal de controle, sem verdadeira função na prevenção do risco inerente às atividades das empresas? Portanto, para que uma organização em compliance possa assumir os valores a que se pretende, faz-se necessário estabelecer quais são os elementos essenciais para a formação desses programas.

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