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Condição de produção/prática de constituição dos sujeitos

Apropriação Indébita e Autoria: Elementos para Superar

2. O dimensionamento da autoria

2.2 Condição de produção/prática de constituição dos sujeitos

Enquanto a legislação está calcada no pressuposto de que a obra tem origem na figura individual de um sujeito plenamente responsável por suas ações, os estudos de linguagem adotam entendimento diverso. Na trilha de Foucault e dos estudos sobre o descentramento do sujeito, compreen- dido como alguém que não existe por si nem exclusivamente a partir de si, vertentes atuais, das quais se destaca a Análise do Discurso, concebem o autor mais como posição ou função exercida dinamicamente por indiví- duos do que como condição inerente de alguns deles.

Para Foucault (1992), a questão da autoria não se resolve pela investi- gação do gênio individual, mas a partir fundamentalmente de uma posição provisória que se ocupa:

Não mais pôr a questão: como é que a liberdade de um sujeito se pode inserir na espessura das coisas e dar-lhe sentido, como é que ela pode animar, a partir do interior, as regras de uma linguagem e tornar desse modo claros os desígnios que lhe são próprios? Colocar antes as ques- tões seguintes: como, segundo que condições e sob que formas, algo como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar

pode o sujeito ocupar em cada tipo de discurso, que funções pode exercer e obedecendo a que regras? Em suma, trata-se de retirar do sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de o analisar como uma função variável e complexa do discurso (p.69-70). Na mesma direção segue Orlandi (2005), quando afirma:

Insisto em que retomo a função-autor na inspiração foucaultiana mas deslocada. Como sabemos, é um princípio da Análise de Discurso que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. A forma su- jeito histórica que corresponde à nossa forma social é a de um sujeito dividido: sujeito a e sujeito de, ele é ao mesmo tempo livre e responsá- vel, determinando o que diz mas determinado pela exterioridade (algo fala antes, em outro lugar, e independentemente). A esta forma-sujeito corresponde uma função-autor. (p. 91)

A desconstituição da onipotência do sujeito/indivíduo/autor não signi- fica que o novo sujeito, do mundo e no mundo, tenha menos autoria, nem que a posição ou a função autor percam importância no cenário da cons- tituição dos sujeitos no mundo na e pela linguagem. Entender a autoria como uma condição e uma atitude perante a produção, e não mais como um privilégio social ou geneticamente disponível para poucos, amplia o conceito de autoria, tornando-a uma posição mais acessível ao conjunto de sujeitos e, com esse deslocamento de sentido, permite reavaliar o peso da originalidade na produção final de seus autores.

A partir da compreensão de que, para que o indivíduo se constitua pela linguagem – como parte indispensável do seu processo de humani- zação (Kramer, 2000) -, a escrita tem de ser um espaço de significação aberto aos que nele se aventurem, a produção final passa a importar menos do que a relação do seu autor com as condições em que se deu a construção do produto.

Venha ou não a produzir textos reconhecidos pelos diversos sistemas de avaliação que há na sociedade, cada indivíduo deveria ter, para além do direito de proteger sua obra, a condição de se posicionar como um autor diante dos textos que escreve. O usufruto dessa condição desempenha papel fundamental no processo de educação e de constituição dos sujeitos na sociedade, motivo pelo qual figura com destaque na literatura pedagó- gica e nos recentes marcos regulatórios da Educação Básica.

Quanto a esse último aspecto, julgo procedente mencionar o disposto nos documentos que propõem os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio. Em uma busca simples pela palavra autoria, constata-se que em nenhum dos dois textos ocorre o seu emprego. Insistindo na busca de palavras com o mesmo radical de autoria, no caso do Ensino Fundamental, encontram-se: autorizadas (1), autoridade (2),

autores (4) e autor (16). Nenhuma delas se refere aos estudantes. Ainda assim,

e mesmo considerando que o documento do Ensino Fundamental concentra ênfase mais em um uso socialmente adequado da Língua Portuguesa do que propriamente na presença da voz de autoria, há passagens em que esta parece estar valorizada (grifo acrescido):

É necessário, portanto, ensinar os alunos a lidar tanto com a escrita da linguagem — os aspectos notacionais relacionados ao sistema al- fabético e às restrições ortográficas — como com a linguagem escrita — os aspectos discursivos relacionados à linguagem que se usa para escrever. Para tanto é preciso que, tão logo o aluno chegue à escola,

seja solicitado a produzir seus próprios textos, mesmo que não sai-

ba grafá-los, a escrever como lhe for possível, mesmo que não o faça convencionalmente (p.48/49)

No documento que trata do Ensino Médio, foram encontradas as seguintes ocorrências: autoridade (1), autoritário (1), autorizadas (1),

autorizar (1), autoridades (2), autorizam (3), autor (1), autores (4). Com

uma queda significativa da presença da palavra autor, ainda assim o docu- mento do Ensino Médio expressa recomendações mais próximas de uma visão favorecedora da autoria como condição de produção de textos, como no trecho em que propõe que o estudante deva: “Utilizar-se da linguagem como meio de informação, expressão e comunicação, em situações intersubjetivas, que exijam graus de distanciamento e reflexão sobre os contextos e estatutos dos interlocutores; e colocar-se como protagonista

no processo de produção/recepção (grifo meu)” (p.140).

Para esclarecer a relação entre esse dimensionamento da autoria e o que lhe confere a legislação, reitero que não se trata de apagar a condição individual, mas de recolocá-la como uma condição que está necessa- riamente afetada pela história e pela ideologia. Sob essa perspectiva, a condição da autoria, embora acessível a todos os indivíduos, não lhes rouba a individualidade nem os iguala em uma produção em série. Repo-

siciona-os, isto sim, diante do texto a ser confeccionado, como sujeitos históricos, participantes de um esforço coletivo de civilização. Esse repo- sicionamento permite o exercício de uma autoria que se faz com inserção histórico-ideológica e em interlocução com os contextos que afetam a produção cultural e a escrita.