• Nenhum resultado encontrado

Apropriação Indébita e Autoria: Elementos para Superar

2. O dimensionamento da autoria

2.1 Direitos e Limites legais

Antes de posicionar-me em relação à sua dimensão legal, vale salientar que a autoria assumida como uma condição do indivíduo é um limite que se impôs como ponto de partida à abordagem aqui adotada, uma vez que tento encontrar formas de lidar com as questões que as configurem como um problema que extrapola o nível individual. Além disso, um dos caminhos mais promissores para se tentar superar a ausência de autoria nas práticas escolares está na busca de limites diferentes para o individual e o coletivo.

A delimitação da autoria como condição individual se estabelece com mais vigor a partir do século XVII, no contexto do ideário romântico- liberal. Para Orlandi (2005), a noção de autor “faz um todo com a assina- tura, no instante único de onde se destaca a forma publicável (ou pública), a obra. Já no início do século XVII, esta assinatura lhe dá um espaço, o da sua casa, que não é o espaço e o tempo da fabricação do livro” (p.80).

Com relação a esse novo limite, Jasci e Woodmansee (2004), em artigo que discute a questão dos direitos coletivos sobre a produção cultural, destacam que a transformação ocorrida se contrapôs a uma prática histórica constituída com o caráter coletivo:

Já mencionamos que a produção literária recorre, necessariamente, a realizações criativas anteriores. Durante a maior parte da história

humana, considerava-se que este aspecto derivativo de uma nova obra contribuía para, ou mesmo constituía, o seu valor. Escritores, como outros artesãos, consideravam que sua tarefa estava em retrabalhar materiais tradicionais, de acordo com os princípios e técnicas da retó- rica e da poesia preservados e passados a eles – a sabedoria coletiva do ofício. (p.116)

No modo de ver dos referidos autores, o tratamento da autoria como atributo individual reconfigurou práticas sociais de produção e reposi- cionou sujeitos em relação aos seus direitos:

Esta mudança de ênfase mistificou o processo de escrever, obscurecen- do a dependência desses autores de outros escritores. A noção de que um avanço tecnológico ou científico deve sua existência ao “gênio” ou às habilidades criativas únicas de um único inventor parece ser ainda mais recente, datando apenas de meados do século XIX. Esta noção, tomada de empréstimo do discurso literário, obscurece, de modo simi- lar, o elemento coletivo ou colaborativo da invenção e da descoberta. Ambas as interpretações errôneas da atividade criativa parecem ter fa- vorecido a lei moderna da propriedade intelectual e também terem sido favorecidas por ela. Como o copyright, a patente moderna enfatiza a realização individual – principalmente, premiando a identificação de um único momento genuinamente transformador no processo que, na maioria das vezes e através da maior parte da história humana, era tido como colaborativo, já que é incremental e contínuo (p.116/7)

Não por acaso, os marcos regulatórios que tratam da propriedade intelectual concentram na figura do indivíduo-autor não só a origem da obra, como a responsabilidade por seu conteúdo e os direitos sobre seus usos. Para respeitar os limites deste estudo, mencionarei apenas três textos com força regulatória no que se refere aos direitos do autor.

Destaco em primeiro lugar a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, aprovada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, cujo Artigo

XVII dispõe que:

1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.

2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e mate- riais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Cumpre realçar que o referido artigo, ao mesmo tempo, assegura o direito de participar da vida cultural e circunscreve a propriedade dessa produção ao âmbito da autoria individual, estabelecendo uma ambivalência que se reproduz fortemente nas práticas sociais de escrita e de construção de conhecimento, com desdobramentos evidentes no mundo acadêmico.

A seguir, destaco o Código Penal Brasileiro, Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que, em seu “Título III, Dos crimes contra a propriedade imaterial, Capítulo I, Dos crimes contra a propriedade inte- lectual, Violação de direito autoral”, determina que constitui crime:

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: (Redação dada pela Lei 10695, de 1º.7.2003).

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (Redação dada pela Lei 10695, de 1º.7.2003).

§ 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito

de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: (Redação dada pela Lei 10695, de 1º.7.2003).

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei 10695, de 1º.7.2003).

O mesmo texto, no Artigo 168, define apropriação indébita como “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção“, prevendo pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa. A menção a esse artigo tem relevância porque se relaciona com a última peça legal que mencionarei, a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que “Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências”.

Se, no caso do Código Penal, poderia caber alguma dúvida, porquanto se trate de uma disposição legal mais claramente direcionada para regular o uso comercial, essa dúvida se dissipa com a lei específica que trata dos direitos autorais, por meio da redação do seu Artigo 3º: “Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”. A inserção da

produção intelectual na categoria de bens móveis abre portas para que a violação dos direitos autorais, por meio do uso acadêmico não autorizado de obras de outros autores, configure uma ação que se aproxima daquilo que o Código Penal define como apropriação indébita.

Fica estabelecido, portanto, como base de discussão que o direito individual sobre a produção intelectual – garantido nos marcos regulató- rios apresentados – constitui princípio inquestionável no que se refere aos limites adotados para as práticas sociais de produção cultural, bem como para a sua circulação pública ou privada. Qualquer indivíduo que exerça esse direito em favor próprio, sem o consentimento do seu titular legal, incorre em crime previsto no Código Penal e na lei que trata dos direitos autorais.

Essa delimitação coloca a prática da produção e da sua apropriação indébita dentro da lógica da responsabilização individual, o que aponta para o domínio das escolhas pessoais diante da aplicação da ética vigente nas relações sociais. Assim, de um lado, há o indivíduo que produz e se responsabiliza por sua obra e, de outro, o que usurpa os direitos do produtor e, por isso, comete um crime.