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Currículo e ensino da escrita

2. Curso de Pedagogia da UFRJ

2.2 O Currículo do curso

Como salientam Fonseca (2008), Castro (2010) e Cruz (2011), a partir do seu primeiro marco legal, os cursos de Pedagogia representam emble- maticamente uma disputa conceitual que marca a história da formação de professores no Brasil: a da centralidade desta formação estar na docência ou na preparação técnica. À luz da categorização dos saberes docentes proposta por Tardif (2007), trata-se da tensão entre os saberes ditos disci- 2 Créditos e horas mínimos necessários para a obtenção do diploma.

3 Regulamentado pela RESOLUÇÃO CEG 02/2003, que define Normas básicas para for-

mulação do ProjetoPedagógico e organização curricular discursos de Graduação da UFRJ. Disponível em < https://graduação.ufrj.br/images/_PR-1/CEG/Resolucoes/2000-2009/ RESCEG-2003_02.pdf> Acesso em 30 de abril de 2020.

plinares, que dão conta dos conteúdos das diversas disciplinas escolares, e os saberes de formação pedagógica, produzidos no âmbito das ciências da educação e da ideologia pedagógica.

Com base nessa distinção, pode-se afirmar que as licenciaturas no Brasil assumiram majoritariamente um esquema de formação em que um curso de bacharel – estruturado com conteúdos disciplinares – faz-se completar por um estágio/treinamento e por disciplinas de conteúdos pedagógicos, como comenta Gatti (2010): “[...] o que se verifica é que a formação de professores para a educação básica é feita, em todos os tipos de licenciatura, de modo fragmentado entre as áreas disciplinares e áreas de ensino” (GATTI, 2010, p. 1358).

A fragmentação a que se refere a autora contribuiu para que se consolidassem dois percursos: o das licenciaturas que habilitam para o magistério do segundo ciclo do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, dominado por conteúdos disciplinares, e o da Pedagogia, construído com a centralidade dos conhecimentos pedagógicos. Os desdobramentos dessa fragmentação interessam ao presente estudo pela sua direta articulação com a história do curso de Pedagogia da UFRJ.

A trajetória apresentada na subseção anterior sofreu forte influência da histórica disputa conceitual aqui mencionada, com a aparente vitória da linha que defende a centralidade da docência para a formação de peda- gogos, sendo que a segunda e mais recente reforma teve a impulsioná-la legislação emanada do governo federal (CNE, MEC), em especial as Reso- luções CNE/CP no 1, de 18 de fevereiro de 2002, e CNE/CP no 1, de 15 de maio de 2006.

A primeira “Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena” e buscou fundamentalmente conferir aos cursos de licenciatura uma identidade própria. Para tanto, propõe princípios de organização que aumentam expressivamente a carga de atividades práticas já existentes, inclui um elemento de compreensão complexa, denominado “prática como componente curricular”, e estimula a distribuição das disciplinas pedagógicas pela grade, e não concentrada nos últimos períodos.

A segunda “Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura”. Não por acaso, somente cinco anos depois de regulamentar as licenciaturas em geral, os órgãos gover- namentais trataram do curso de Pedagogia. O lapso temporal decorre da

dificuldade de se assumir este curso como um espaço essencialmente de formação de professores e do fato de que o desafio de fortalecer seu currí- culo não se resolve com as medidas propostas para as demais licencia- turas. Ao contrário do que ocorre com estas, o problema do currículo de Pedagogia tem menos a ver com o subdimensionamento dos saberes peda- gógicos ou com a presença tímida da prática, e mais com a inexistência de saberes disciplinares.

Uma comparação entre as duas licenciaturas que formam os profes- sores que vão ensinar a escrever – Letras4 (do segundo ciclo do Ensino Fundamental até o fim do Ensino Médio) e Pedagogia (da Educação Infantil ao fim do primeiro ciclo do Fundamental) – mostra um retrato das diferenças.

Em consulta à grade curricular das licenciaturas em Letras, iden- tifiquei as seguintes disciplinas relacionadas aos saberes disciplinares, com indicação do número de períodos a elas dedicados5: Filologia (1); Grego (2); Latim (4); Linguística (4); Língua Portuguesa (9); Literatura Africana (2); Literatura Brasileira (7); Literatura Comparada (2); Litera- tura Hispano-americana (2); Literatura Portuguesa (5); Teoria Literária (4), o que perfaz um total de 146 créditos.

No caso dos saberes pedagógicos, constatei a presença das seguintes disciplinas ou requisitos curriculares: Didática Especial de Língua Portuguesa e Literatura (2); Didática Geral (1); Educação Brasileira (1); Filosofia da Educação no Mundo Ocidental (1); Funda- mentos Sociológicos da Educação (1); Profissão Docente (1); Psicologia da Educação (1) e 400 horas de Prática de Ensino/Estágio Supervisio- nado, somando 32 créditos.

Em contraposição, no curso de Pedagogia não há qualquer disci- plina diretamente destinada a tratar de conteúdos de Língua e Literatura fora de seu contexto de ensino. A palavra “educação” está presente nos nomes de 25 das 39 disciplinas obrigatórias. Há uma grande dispersão das áreas pelas disciplinas, mas, com algum cuidado, pode-se consi- derar que o currículo ainda se apoia basicamente nos fundamentos da Administração, agora ampliada pelo privilégio dos estudos das políticas

4 Optei por estudar a habilitação de maior procura e que habilita exclusivamente para o

ensino de Língua Portuguesa e Literaturas da Língua Vernácula: Português-Literaturas.

5 Agrupei os nomes das disciplinas, no caso de Língua Portuguesa, em uma categoria.

No caso das literaturas incluí no cômputo disciplinas introdutórias denominadas Cultura ou Fundamentos da Cultura.

educacionais; da Didática; da Filosofia; da Psicologia e da Sociologia, ou seja, exatamente nas bases que estão timidamente representadas na licenciatura de Letras.

Quanto à Prática de Ensino, nota-se um complicador para a Peda- gogia. Em atendimento às DCN, o currículo dispersa em cinco a prática dos futuros professores: Educação de Jovens e Adultos; Educação Infantil; Magistério de Disciplinas Pedagógicas; Política e Administração Educa- cional; e Séries Iniciais do Ensino Fundamental, cada uma com 120 horas de carga horária, cursadas uma por vez a partir do quinto período6. Enquanto isso, os estudantes de Letras cursam uma só Prática de Ensino, com 400 horas, realizada em três períodos a partir do oitavo.

Esta cisão – produzida pela nossa baixa capacidade de promover aproximações e convergências entre sujeitos, lugares de saber e lógicas de formação – gera inúmeros problemas, dos quais destacarei dois.

O primeiro reside na dispersão dos conhecimentos disponíveis sobre as disciplinas e o seu ensino, produzidos em lugares diferentes, por sujeitos diferentes, que raramente se aproximam. Assim, a área de letras é estudada na Faculdade de Letras; estuda-se educação na Facul- dade de Educação; faz-se estágio em algum colégio que aceita receber estagiários. Depois, o recém-formado parte, com dúvidas e incertezas, para o chamado “chão da escola”, onde o primeiro conselho que ouvirá dos professores será no sentido de esquecer o que (não) aprendeu na universidade e tratar de render-se à realidade das práticas da “dura realidade escolar”.

O segundo tem a ver com o percurso de formação dos estudantes da Educação Básica. Os dados aqui mencionados mostram que até o fim do primeiro ciclo do Ensino Fundamental, os estudantes aprendem letras com professores que sabem das letras apenas o que aprenderam em sua própria escolarização; depois disso, passam a aprender com professores que estu- daram muito de letras, mas que talvez não tenham outros conhecimentos necessários para ensinar.

6 De acordo com depoimento da Professora Rejane Maria de Almeida Amorim, ex-Coor-

denadora de Estágios da Faculdade de Educação, “Na forma como o currículo do Curso de Pedagogia da UFRJ está organizado hoje, a formação prática de estágio nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental acontece no 8º período e está determinada em 180 horas, divididas entre 60 horas em sala de aula e 120 horas no campo de estágio. Ainda é possí- vel utilizar 30 horas das 120 horas de estágio para realização de atividades científicas e culturais”.