1 I GREJAS C RISTÃS E MUDANÇAS SOCIAIS E IDEOLÓGICAS
1.2 A I GREJA C ATÓLICA NO B RASIL E SUAS RELAÇÕES COM DIFERENTES CATEGORIAS DE LEIGOS , AS IDEOLOGIAS E A POLÍTICA
1.2.1 A S CONDIÇÕES DE SURGIMENTO E OS AGENTES DA TENDÊNCIA PROGRESSISTA NA I GREJA
CATÓLICA
A Igreja, tal como foi definida e praticada pelos progressistas, é a forma brasileira de
aggiornamento proposto a partir da década de sessenta pela Igreja internacional. Assim, mais
do que uma mudança profunda na Igreja (democratização, reconhecimento das questões dos
oprimidos), ela obedece a uma lógica institucional de manutenção e extensão da influência da
Igreja Católica junto a diferentes setores da sociedade, dando continuidade aos investimentos
da Igreja Católica na catolicização da sociedade brasileira, existentes desde o início do século
vinte8.
Após um período que vai do início à primeira metade do século XX, no qual a Igreja
Católica por um lado se voltou para a recuperação, consolidação e exercício de sua influência
8
Sobre as iniciativas da Igreja Católica durante a primeira metade do século XX para recuperar a influência junto ao Estado brasileiro, após um afastamento desde no final do século XIX, ver Mainwaring, 1989 e Della Cava, 1976. Sobre as iniciativas de formação e atuação junto a instituições sociais e políticas nos marcos de uma concorrência ideológica como o comunismo, o ateísmo e os protestantismos, idem.
junto ao Estado (DELLA CAVA, 1976) e por outro à educação e formação das elites, com
escolas e estruturas leigas como a Ação Católica Brasileira (MAINWARING, 1989; DELLA
CAVA, 1976), a Igreja chega aos limites deste modelo de atuação, o qual implicava em uma
fraca penetração nos estratos mais baixos da população. Isto se dá em um contexto de rápidas
mudanças sociais, principalmente no centro do país (modernização, industrialização e
urbanização acelerados, migrações de grandes contingentes populacionais das regiões
periféricas para as mais centrais), que são correlativas ao crescimento do pentecostalismo
(DELLA CAVA, 1976, p. 27). A partir da década de cinqüenta, as igrejas pentecostais e
mesmo os cultos afro-brasileiros começam a competir com a Igreja Católica pelo público das
classes mais baixas, principalmente nas zonas urbanas, no caso do Brasil (BASTIAN, 1998).
Este recruta seus fiéis entre populações migrantes pobres e de baixo nível educacional
(BASTIAN, 1998). Nesta situação uma “crônica carência de padres”9, vivida pela Igreja
Católica brasileira, se intensifica.
São as proposições quanto ao problema da relação da Igreja Católica com os diferentes
estratos sociais e a difusão do catolicismo na sociedade brasileira que dividem as cúpulas da
Igreja Católica no Brasil, já na década de cinqüenta, e que configuram as tendências da Igreja.
Segundo Mainwaring (1989, p. 56-57), o “alto clero” brasileiro já estava dividido, nesta
década, entre os “tradicionalistas”, que eram defensores do combate à secularização e da
presença do catolicismo na sociedade pela influência em suas instituições, em continuidade
com a atuação da Igreja durante a primeira metade do século; os “modernizadores
conservadores”, que se preocupavam em atingir o “povo”, ou as classes mais baixas e
numerosas da população, em desenvolver organizações leigas, ao mesmo tempo em que
defendiam o respeito à hierarquia e a rejeição de “mudanças sociais radicais” e o grupo dos
9
Para uma caracterização do quadro de carência de padres no Brasil na primeira metade do século XX e as iniciativas para reverte-lo, ver Della Cava, 1976. Ver também CERIS, 2002 sobre a distribuição territorial dos padres e a necessidade da disposição do clero das ordens religiosas para suprir a falta de clero secular.
“progressistas”, que além da preocupação com a presença mais efetiva junto ao “povo”,
estavam mais comprometidos com a idéia de justiça social10.
A emergência desta clivagem na década de cinqüenta se dá com o esgotamento do
modelo “tradicionalista” e, ao mesmo tempo, no momento em que o poder episcopal, antes
concentrado pelo arcebispo do Rio de Janeiro, se fragmenta (DELLA CAVA, 1976). Nesta
década começaram as iniciativas para a unificação do trabalho pastoral que resultaram na
criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 195211. Esta passou a ser
um dos espaços em disputa entre os grupos da hierarquia, em parte porque dela emanavam as
principais linhas de atuação da Igreja (DELLA CAVA, 1976, p. 33).
Ao longo dos primeiros anos do governo originado pelo golpe militar de 1964, a
CNBB, então presidida pelo setor conservador, passa paulatinamente a defender posições
progressistas, sem que a totalidade do bispado brasileiro tenha se tornado progressista, ou
ainda, mantendo a clivagem entre progressistas e conservadores (DELLA CAVA, 1988;
MAINWARING, 1989). Os bispados de regiões mais periféricas, localizados no Norte e no
Nordeste do Brasil, continuaram ou passaram a apoiar o trabalho do clero progressista, em
oposição ao regime militar, e a se insurgir e denunciar as arbitrariedades cometidas contra o
clero que atuava junto às populações empobrecidas, cometidas por parte de autoridades
10
De alguma forma, a clivagem que separa o clero acaba por ser aquela entre os que adotam posições mais claras a favor da justiça social e aqueles que não o fazem. No entanto esta clivagem pode sobrepor-se a outras, como no caso, a étnica-regional, apresentada por um padre jesuíta: “É interessante constatar que, enquanto os homens reunidos em torno às idéias de Dom Hélder eram, na sua maioria, provenientes do Nordeste, a equipe seguinte [formação mais conservadora da CNBB] foi recrutada preferencialmente no Centro-Sul. De fato, a linha divisória ideológica coincide, em grande parte, com uma linha geográfica. Aqueles que se encontram mais em contato com as populações vítimas da miséria são mais radicais, enquanto os que procedem de ambientes onde as tradições européias são mais perceptíveis estão mais inclinados à defesa da ordem estabelecida” (HORTÁL, 1976, p. 46. Grifado aqui).
11
A CNBB foi em grande parte resultado da articulação de um bispo, Hélder Câmara, com instâncias do Vaticano, em especial o Núncio Apostólico na época, Armando Lombardi. Segundo Della Cava (1976, p. 33), não há notícia de intervenção em outro país por parte do Vaticano neste sentido de unificação do trabalho pastoral – o que seria um sinal da preocupação deste com a “erosão do monopólio religioso” da Igreja Católica no Brasil. Na CNBB vão se reproduzir as clivagens entre os bispos, embora ela tenha nascido sob inspiração progressista. Segundo Della Cava (1976, p. 35-36) o apoio de Lombardi aos progressistas e seu papel na criação da CNBB contribuiu para a manutenção das clivagens institucionais, para a hegemonia inicial dos progressistas na CNBB e na marginalização dos conservadores nesta. Também um teólogo jesuíta considera que “o fato de a CNBB contar com uma direção inclinada para a esquerda não significava que todo o episcopado, e nem sequer da sua maioria, aprovasse a ação social desenvolvida pela Igreja” (HORTÁL, 1976, p. 45-46).
policiais e militares e grupos dominantes destas regiões12. O posicionamento destes bispos
encontrava apoio entre os bispos mais centrais da CNBB na medida que denunciavam a
violência cometida contra o clero – o que era considerado pela CNBB uma afronta à Igreja
(MAINWARING, 1989, p. 118).
No início da década de setenta, o bispo de São Paulo, Evaristo Arns, começa a
denunciar a tortura e as arbitrariedades cometidas pelo regime militar contra o clero, e a
seguir, contra a população civil, lançando uma campanha em favor dos Direitos Humanos e
emitindo pronunciamentos críticos (ver MAINWARING, 1989; DELLA CAVA, 1988, p.
240-241). Neste processo de “esquerdização” da Igreja e politização de suas posições, ela
passa a representar a “sociedade brasileira” ou a “sociedade civil” contra o Estado, na medida
que aumenta o descontentamento de setores dominantes localizados no centro do país contra
os militares (DELLA CAVA, 1988, p. 240).
Neste processo, os “direitos humanos” foram ligados às reivindicações de “justiça
social” pelos progressistas, e estes não encontravam oposição no restante do episcopado, que
passou a utilizar o mesmo discurso13 (DELLA CAVA, 1988, p. 244-245). Houve então uma
acomodação geral, uma espécie de aliança entre moderados e progressistas, que se percebe no
texto de um padre jesuíta sobre as eleições para a presidência da CNBB em 1971, que
deram um novo impulso à Conferência Episcopal. Curiosamente, não sob a direção de nordestinos, mas de bispos procedentes do Extremo Sul. (...) [E]les se mostraram moderados no tom, mas firmes na presença evangélica no campo político e social. A constatação de divergências profundas no seio do episcopado brasileiro levou a Presidência da CNBB ao reconhecimento explícito do pluralismo dentro da unidade (HORTÁL, 1976, p. 47).
Assim, se há uma construção de um consenso entre os bispos com relação aos direitos
humanos e à justiça social, é na relação com os progressistas situados abaixo na hierarquia
eclesial (ou o “baixo clero”) e com as Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs) levadas a
12
Para relatos dos atos de repressão e ataques a membros da Igreja Católica durante o regime militar, ver Mainwaring, 1989.
13
É possível, como assinala Mainwaring (1989, p. 193) que isto se deva à decadência dos ultra-reacionários da Igreja Católica, enquanto que os progressistas, legitimados pelos resultados do Vaticano II e pela Conferência Episcopal em Medellín, passam a trabalhar em conformidade com a instituição.
cabo segundo o modelo progressista, que se vê a continuidade da clivagem entre Igreja
progressista e Igreja conservadora. As CEBs são definidas por Mainwaring (1989, p. 127)
como um pequeno grupo de 15 a 25 pessoas que se reúnem para estudar a Bíblia e discutir
“questões contemporâneas” a partir dela. Além disto, as CEBs se caracterizam por
celebrações religiosas onde os leigos têm um papel proeminente, em que pese a liderança
essencial dos padres e freiras, seus formadores. A adoção e promoção destas estruturas por
parte da CNBB eram também parte do esforço de integração da população ao catolicismo – ou
de um esforço de promover uma efetiva vivência de comunidade religiosa. Tratava-se
inicialmente, para os bispos, da manutenção ou efetivação da influência sobre a população a
partir da maior integração dos leigos (ver MAINWARING, 1989, p. 128). Para o clero
progressista mais abaixo, era importante o “desenvolvimento de relações humanas mais
estreitas” (MAINWARING, 1989, p. 127), ou uma “volta à fraternidade e igualdade do
cristianismo primitivo” (DELLA CAVA, 1988, p. 242). As CEBs passam gradualmente a se
politizar14, mas este sentido de presença pastoral junto às populações não se perdeu para o
“alto” nem para o “baixo clero”, progressista ou não (DELLA CAVA, 1988, p. 259;
MAINWARING, 1989, p. 128). De qualquer forma, as CEBs foram elevadas à categoria de
grande inovação, embora bispos conservadores pudessem dificultar sua existência nas
dioceses que presidiam (ADRIANCE, 1991, p. 303).
Ao lado das CEBs, a CNBB promoveu e institucionalizou uma série de atividades
junto a diferentes populações de “oprimidos”, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Tais instituições nasceram de esforços do “baixo
clero” junto às populações rurais oprimidas (indígenas, posseiros, trabalhadores rurais,
pequenos proprietários), em áreas de fronteira, em que a expansão capitalista se dava de
forma violenta e com violência contra estas populações (DELLA CAVA, 1988, p. 245-246;
14
MAINWARING, 1989, p. 200-202). Além destas, sustentou e promoveu uma rede de agentes
religiosos que trabalhava junto a mulheres prostitutas, a Pastoral da Mulher Marginalizada
(PMM). O trabalho desta pastoral, que inicialmente entendia os “problemas das prostitutas”
como ligados a problemas sócio-econômicos, passaram a ser trabalhados em termos de causas
culturais da prostituição, como a discriminação da mulher (GUIDER, 1995). É portanto em
uma estrutura que trabalha carências sócio-econômicas e civis que se abre espaço na Igreja,
para a discussão de problemas das mulheres, o que se repete, como se verá, na Pastoral da
Mulher Pobre. São estas iniciativas – CEBs e pastorais – que caracterizam a Igreja
progressista no Brasil, implementadas pelo clero secular e regular masculino e feminino,
juntamente com “agentes pastorais” leigos de classe média junto às populações empobrecidas,
a partir da fundamentação no cristianismo da idéia de justiça social, conquista de direitos,
organização do povo e explicitação de reivindicações que deveriam ser levadas junto ao
Estado. Neste sentido, Adriance (1991, p. 293 e passim) os qualifica de intelectuais orgânicos
destas populações, ou seja:
pessoas de classe média, as quais, por causa de sua simpatia pelas classes insurgentes, assistem estas classes no desenvolvimento destas ideologias (...). Seu papel é necessário porque as pessoas pobres não têm normalmente a oportunidade de usar o tempo para trabalhar na formalização de sistemas de crenças.
É neste contexto de entendimento das CEBs como solução à carência de padres15, na
medida que fomenta outras lideranças leigas e religiosas na Igreja, que a atividade de
mulheres freiras e leigas é valorizada. Segundo Adriance (1991), são as freiras, existentes em
maior número que os padres, na proporção de três para um, e os leigos de classe média que
levavam quotidianamente o trabalho das CEBs do Maranhão, enquanto os padres cuidavam
das atividades sacramentais e administrativas. Um padre entrevistado por Adriance (1991, p.
15
Ver em Mainwaring, 1989, p. 128 os depoimentos de dois padres segundo os quais as CEBs iniciaram em suas paróquias devido às dificuldades que eles enfrentavam em atender as populações devido à falta de padres, dificuldades de meios de locomoção, etc. Neste sentido, ver também Adriance, 1991, p. 299. Ver em Della Cava, 1988, p. 233 sobre as demandas do baixo clero e das freiras pela laicização em massa devido à falta de padres e à crise de vocações que atingia toda a Igreja.
300) diz que as freiras “trabalham melhor que um padre na comunidade. Animando o povo.
Ensinando o povo. Preparando o povo para viver a fé ... se a comunidade tivesse dez padres,
talvez estes pudessem fazer o trabalho que estas irmãs estão fazendo”.
Estas práticas estão ligadas à inovação teológica representada pela Teologia da
Libertação, feita por agentes religiosos em posições subalternas aos centros de poder
eclesiástico. Neste sentido, a percepção da diferença entre a formação religiosa e escolar, os
recursos obtidos na inserção em diferentes setores sociais e a posição na Igreja (na hierarquia
eclesial, ou das ordens, ou dos centros escolares) estão ligados, em alguns casos, como se verá
mais adiante, àquela adesão à heterodoxia para homens e mulheres da Igreja. Nesse sentido, é
importante notar, no caso dos progressistas, o contato com teologias européias, como as
teologias da esperança e da revolução e o catolicismo social, além da passagem por
determinadas instituições escolares da Igreja no exterior. Se isto foi uma condição necessária
para o surgimento de um grupo progressista no clero brasileiro (DELLA CAVA, 1988, p.
244), as concepções anti-integristas e terceiro-mundistas dos progressistas estão relacionadas
ao confronto com as teologias dos países centrais, em um esforço de elaboração teológica
diferenciada daqueles (CORADINI, 2004).
É sobre as CEBs e a partir destas que os teólogos da libertação e outros intelectuais
vinculados à Igreja elaboram seus principais trabalhos. Os teólogos e pedagogos vinculados à
Igreja formularam uma teologia específica do “pobre”, refletindo sobre a experiência das
CEBs e trabalhando elementos da religiosidade popular, além de desenvolverem técnicas de
aplicação da exegese bíblica aos problemas sociais de grupos subalternos (DELLA CAVA,
1988, p. 242). São eles que vão formular sobre, dar visibilidade e oferecer categorias a serem
difundidas e operadas pelo clero. É a partir da atuação nas CEBs e sobre as CEBs que
primeiramente da mulher “pobre”, e depois sobre a discriminação da mulher na Igreja
(NUNES, 1992).