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1 I GREJAS C RISTÃS E MUDANÇAS SOCIAIS E IDEOLÓGICAS

1.3 A I GREJA E VANGÉLICA DE C ONFISSÃO L UTERANA NO B RASIL E SUAS TRANSFORMAÇÕES

1.3.2 A FORMAÇÃO DA I GREJA E VANGÉLICA DE C ONFISSÃO L UTERANA NO B RASIL

Como já foi dito, a produção historiográfica e mesmo aquela orientada por outras

disciplinas das ciências sociais traz uma narrativa de desenvolvimento implícita para a Igreja,

Brasil”, “do gueto à participação”, “das comunidades teuto-evangélicas de imigrantes até a

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil”, “protestantismo brasileiro a procura de

identidade”; “um documentário de uma Igreja em busca de sua identidade”. Isto pode estar

relacionado às rápidas transformações pelas quais passou em cento e trinta e seis anos de

existência e com as tentativas de conferir sentido a estas. Segundo a produção historiográfica

da igreja, a história da Igreja é associada à das populações que migraram da Alemanha para o

Brasil desde a primeira metade do século XIX, de forma que, de alguma forma, história do

público onde a Igreja recruta seus fiéis e história eclesiástica se confundem (DREHER, 1984,

p. 19). Colocar a Igreja como produto dos fiéis, ou “das comunidades” confere a esta uma

essência e necessidade (ela existe onde existem imigrantes alemães e seus descendentes) e

mesmo permite afastá-la de outras Igrejas protestantes, consideradas protestantes “de missão”:

a IECLB seria uma Igreja do “protestantismo histórico”, e não do proselitismo missionário.

Assim, os “primórdios do luteranismo” estão associados às injunções sobre a

população à qual ele se referencia; neste sentido a emigração alemã, fruto da miséria e da

industrialização que atingiram os territórios alemães no século XIX, viria ao encontro dos

interesses das classes dominantes do império brasileiro: o branqueamento (DREHER, 1999, p.

61; 1998, p. 249-250; 1989, p. 95) da população brasileira, e a necessidade de trabalhadores

(PRIEN, 2001, p. 33-34; DREHER, 1984, p. 4; 1997, p. 149; 1989, p. 96; 1999, p. 61). Estas

populações teriam sofrido uma série de discriminações culturais e religiosas por parte do

governo e da população brasileira, o que justificaria seu isolamento cultural, seus costumes

específicos. Colocados em regiões de difícil acesso, estariam isolados geograficamente

(DREHER, 1984, p. 5). Além disto, para os protestantes, a liberdade religiosa não seria

completa durante o império (DREHER, 1989, p. 96-97; 1999, p. 64-65). Mais tarde, com a

República, embora tivesse obtido cidadania e reconhecimento religioso por parte do Estado,

Por outro lado, os interesses pan-germanistas da Alemanha (DREHER, 1984, p. 10-11)

aumentaram as desconfianças das autoridades brasileiras e dos brasileiros quanto ao “perigo

alemão” (DREHER, 1984, p. 13), o que levou a que os descendentes de imigrantes alemães,

durante o Estado Novo, sofressem com as medidas de nacionalização, principalmente com a

proibição do uso da língua alemã nas escolas e nas Igrejas (DREHER, 1984, p. 15-16 e 21). O

final da segunda guerra mundial marcaria um novo período para os descendentes de

imigrantes alemães e para os sínodos que deram origem à Igreja, com uma efetiva integração

à sociedade brasileira por parte dos “teutos” (DREHER, 1984, p. 18), e também dos sínodos

que unificados passaram a formar a IECLB, e a participar da ecumene, e finalmente, passam a

tratar dos “problemas nacionais” (DREHER, 1984, p. 24; 1989, p. 100-104;

SCHÜNEMANN, 1992). Esta narrativa, assumida, com maior ou menor ênfase em alguns

aspectos, pelos historiadores da Igreja, justifica o caráter étnico da Igreja, não só pelo

argumento do isolamento e da marginalização, mas também por ser a origem necessária de

uma igreja que só pôde ter “consciência de seu papel” a partir de uma mudança de rota.

Por outro lado, ao se tomar os detalhes da história eclesial, observa-se que “no início”,

a vida comunitária dos imigrantes prescindia de uma estrutura eclesial (DREHER, 1984, p.

19; HEES, 1986, p. 24; PRIEN, 2001, p. 50-58 e 71-72). Na origem da IECLB está o

investimento dos pastores estrangeiros em implantar nas estruturas religiosas comunitárias, a

crença na legitimidade sinodal, ao mesmo tempo em que disputavam espaço com pastores

leigos oriundos das próprias comunidades e com outros concorrentes religiosos (os jesuítas

católicos e os pastores luteranos do Sínodo de Missouri).

O processo de formação da Igreja envolveu a “colonização” e o enquadramento da

vida religiosa de uma população mais ou menos definida – os imigrantes alemães e seus

descendentes por parte de agentes eclesiais oriundos da Alemanha. É na década de sessenta do

órgão da Igreja Evangélica Alemã, o Superior Conselho Eclesiástico vão se interessar em

enviar pastores e missionários sistematicamente às comunidades no Brasil (HEES, 1986, p. 8;

PRIEN, 2001, p. 76 e 79-80; HENNIG, 1986, p. 93-94), as quais não possuíam nenhuma

ligação entre si (HEES, 1986, p. 5), pois o trabalho pastoral passa a ser reconhecido pelo

Estado brasileiro (HEES, 1986, p. 22). A iniciativa de formação de um sínodo no final da

década de sessenta está relacionada à tentativa dos primeiros pastores que chegam ao Rio

Grande do Sul de combater o pastorado leigo, agora com poderes legítimos, e instalar no seu

lugar um pastorado ordenado por instâncias eclesiásticas na Alemanha, e que tivesse práticas

eclesiais comuns (HEES, 1986, p. 22; PRIEN, 2001, p. 108-109). Este sínodo não consegue

subsistir pois não obteve a filiação à Igreja Alemã, que garantiria sua legitimidade; por outro

lado, havia um conflito, entre pastores e missionários e com as comunidades, sobre a

autoridade do sínodo (HEES, 1986, p. 16). O segundo Sínodo Riograndense, fundado em

1886 por Rotermund, para conjurar estas limitações, propõe uma livre associação das

comunidades ao Sínodo, o qual seria apenas um orientador das práticas religiosas das

comunidades (conforme HEES, 1986, p. 25; Fischer, 1986, p. 44), negando a ordenação aos

pastores leigos (FISCHER, 1986, p. 47).

No entanto, o Sínodo, ao final do século dezenove, se defrontava com as seguintes

características estruturais que ameaçavam sua continuidade: a inexistência de um corpo

sacerdotal autóctone ou a impossibilidade de reprodução do corpo sacerdotal a partir da

população dos fiéis, devido à ausência de um sistema de recrutamento e formação (FISCHER,

1986, p. 49). Também à debilidade das formas de remuneração pelos fiéis, devido em parte

aos parcos recursos dos mesmos (FISCHER, 1986, p. 56), à concorrência com o pastorado

leigo e com o Sínodo de Missouri (PRIEN, 2001, p. 140), e em parte à pouca legitimidade do

Sínodo em demandar a remuneração (FISCHER, 1986, p. 65), o que levava à impossibilidade

por outro lado, à dependência das sociedades missionárias e da Igreja Alemã, que fornecia um

pastorado “importado” (FISCHER, 1986, p. 49), que ao mesmo tempo não via grandes

atrativos em trabalhar para um Sínodo que oferecia pouca remuneração e grandes dificuldades

de trabalho (HEES, 1986, p. 26 e 32; PRIEN, 2001, p. 138).

Do início do século XX até a década de 30, o Sínodo Riograndense dedica-se a

consolidar sua ligação com a Igreja Alemã como forma de obtenção de recursos materiais e

humanos. As formas de manutenção e reprodução da Igreja se organizam nestas três décadas a

partir da dependência em relação ao exterior quanto ao fornecimento e manutenção dos

pastores, e à manutenção do Sínodo, por um lado (HEES, 1986; FISCHER, 1986; PRIEN,

2001). Por outro lado, ocorre a paulatina responsabilização das comunidades pela manutenção

do Sínodo, e a imposição a estas de suas normas de funcionamento da atividade eclesial e

religiosa, o que está relacionado ao ganho de legitimidade do Sínodo junto às mesmas (HEES,

1986; FISCHER, 1986; PRIEN, 2001).

Nestes marcos, em 1921 é fundado o Instituto Pré-Teológico, uma escola de formação

secundária para alunos brasileiros a serem enviados à Alemanha para formação teológica-

pastoral (HEES, 1986, p. 75 e 80; PRIEN, 2001, p. 189 e 203). Se este é o “primeiro passo

para a constituição de um pastorado autóctone”, no final da década de 20 já se evidenciavam

esforços para a criação de uma escola de teologia no país. Novamente houve a opção pelo

“fornecimento” externo, seja por falta de recursos, seja pela existência de oferta na Alemanha

(conforme PRIEN, 2001, p. 205). A forma de reprodução do corpo eclesial trazia sempre o

problema do devir do Sínodo, ao passo que seu atrelamento à Igreja Alemã significa ser

atingido de alguma forma por seus processos internos – como a adesão ao nazismo e a

introdução de fórmulas de trabalho dos adeptos daquele na Igreja Alemã junto à cúpula

É a campanha de nacionalização deflagrada pelo Estado Novo e a seguir a entrada do

Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados que vai impossibilitar a continuidade

dos mecanismos de manutenção e reprodução eclesial e também o combate à sua teologia. A

proibição do uso da língua alemã nas escolas e igrejas (PRIEN, 2001, p. 428-435), o

fechamento destas, a prisão de pastores (PRIEN, 2001, p. 460), e principalmente o

impedimento da vinda de pastores para o Sínodo (PRIEN, 2001, p.454) faz com que se torne

insustentável o trabalho da Igreja como havia sido feito até então. Após o final da Segunda

Guerra Mundial os Sínodos vinculados à Igreja Alemã se unem e tratam de formar uma Igreja

– a Federação Sinodal, que depois, em 1968, se tornou a Igreja Evangélica de Confissão

Luterana no Brasil – a IECLB. Estabelecem uma paulatina independização da Igreja Alemã,

chamada agora de “Igreja-Mãe”, embora continuem a receber recursos financeiros da mesma.

A desvinculação da Igreja Alemã significa uma reconversão do ponto de vista de relações

com outras instâncias religiosas: a Federação Sinodal se filia à Federação Luterana Mundial

(FLM)24 e ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI), o que indica uma tentativa de continuar

inserido em instâncias religiosas internacionais e, nestas, acompanhar a pauta de discussões

teológicas: “Aí, porém, não se deve esquecer que, para Dohms [presidente do Sínodo

Riograndense], o caminho para o ecumenismo desempenhou papel decisivo, depois da

Segunda Guerra Mundial, para a superação do passado e reinício teológico” (PRIEN, 2001, p.

514). Dohms teria participado da conferência Eclesiástica Mundial em 1948 em Amsterdã,

aderindo à sua pauta. Esta pauta (os efeitos da guerra sobre as populações, a miséria, a fome)

“que não prensavam algumas Igrejas como culpadas e errantes num canto, mas que

24

A filiação à Federação Luterana Mundial foi antecedida nesta por uma discussão se a totalidade dos sínodos que formavam a Federação Sinodal – e em particular o Sínodo Riograndense - eram confessionalmente luteranos, já que formados por comunidades de outras tradições protestantes, como os calvinistas e até então ligados a Igreja Territorial Alemã, não confessionalmente luterana (PRIEN, 2001, p. 496-514). Ver Prien (2001, p. 476-488) sobre a discussão do caráter confessional do Sínodo Riograndense desde seus primórdios: segundo este autor, a definição da confessionalidade teria sido preterida até o final da Segunda Guerra Mundial na medida que o sínodo pretendia ser uma espécie de “guarda-chuva” para os protestantes de diferentes confissões contra a Igreja Católica, e um representante do luteranismo alemão perante a Igreja Evangélica Alemã e o Reich alemão contra o Sínodo de Missouri. Ver especialmente Prien, 2001, p. 482-483.

confessavam a culpa comum e animavam a atacar os urgentes problemas da atualidade, que

atribuíam à Igreja o papel de um defensor das pessoas e, nesse sentido, antecipavam alguns

elementos da teologia da libertação, eram próprias para apoiar os sínodos brasileiros na

procura de sua identidade” (PRIEN, 2001, p. 515).

No plano interno, tratam, em primeiro lugar, de criar uma Faculdade de Teologia, que

desde o início foi assumida por todos os Sínodos, embora tenha sido criada por H. Dohms no

Sínodo Riograndense. Além disto, assumem uma nova definição de Igreja, que é fundante de

todas as posições posteriores a respeito da Igreja: esta é “Igreja de Jesus Cristo no Brasil em

todas as conseqüências que daí resultarem para a pregação do Evangelho neste país e a

corresponsabilidade para a formação da vida política, cultural e econômica de seu povo”. Este

enunciado, sem dúvida polissêmico25, é fruto do compromisso entre as diferentes tendências

pastorais existentes no Sínodo após a Segunda Guerra Mundial (FÜLLING, 1974) - que se dá

a partir da reconversão de Dohms à definição estritamente religiosa de Igreja exigida pelos

pietistas, e com sua permanência na presidência da mesma (FÜLLING, 1974; PRIEN, 2001,

p. 465-476).

Esta abertura para o Brasil funda diferentes posições entre aqueles preocupados com

os rumos da Igreja, e que têm acesso a suas instâncias de produção e difusão ideológicas. É

necessário diferenciar então, no grupo eclesial (que não apresenta de modo imediato, ao

contrário da Igreja Católica, suas hierarquias e divisões), uma espécie de “elite”, ou mesmo de

“alto clero”, que consegue formular suas concepções de ação da Igreja, suas preocupações

pelos rumos da mesma, e difundi-las a partir de publicações e documentos, do restante do

pastorado e demais profissionais da Igreja, de alguma forma concentrados no trabalho para o

qual a Igreja os incumbiu: o serviço religioso aos fiéis. Esta “elite”, que porta diferentes

25

Este enunciado, contido no documento do Primeiro Concílio Eclesiástico da Federação Sinodal, de 1950 e citado em Dreher, 1999, tem um sentido amplo, comportando, inclusive a definição étnica da Igreja: Igreja para um “povo” - definido como um grupo étnico - que está em um estado nacional (no Brasil). Mas também comporta a definição como Igreja brasileira, preocupada com o povo brasileiro em sua totalidade.

definições do que seria a “abertura para o Brasil e seus problemas”, se define pela posse de

alta titulação escolar, pela passagem nas instituições de ensino da Igreja, quer dizer, pelo

professorado na Faculdade de Teologia e também pela direção desta, pela ocupação de cargos

de direção na Igreja (pastor sinodal, o equivalente ao bispado católico, vice-presidência e

presidência da IECLB), coordenação de organismos centrais da mesma e, por fim, a direção

de paróquias centrais da IECLB (São Leopoldo, Porto Alegre, e também Rio de Janeiro e São

Paulo). Esta elite vai definir a “identidade” e os “problemas” da IECLB a partir da pauta de

trabalho e também de pesquisa escolar que produz e divulga, e que não tem a ver

necessariamente com as preocupações dos fiéis e do pastorado mais ligado a estes.