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1 I GREJAS C RISTÃS E MUDANÇAS SOCIAIS E IDEOLÓGICAS

1.1 A GGIORNAMENTO E SECULARIZAÇÃO

1.1.1 I GREJAS , PLURALISMO RELIGIOSO E CONFRONTOS IDEOLÓGICOS

Ao se considerar que as igrejas, dada sua necessidade de legitimação externa para

subsistência (BOURDIEU, 1992b, p. 38), estavam inseridas em diferentes espaços de

concorrência por adesões, a exigência de outros bens de salvação no quadro político-

ideológico do pós-guerra diz respeito ao confronto da Igreja Católica e do protestantismo

“esclarecido” com o ateísmo e o comunismo, e, no espaço religioso, com a oferta de outros

bens de salvação. Trata-se de ideologias sociais e religiosas que atingem de forma

diferenciada as diferentes categorias sociais do mundo desenvolvido e periférico.

As grandes ideologias concorrentes para o clero católico eram o comunismo e o socialismo.

Segundo Donegani (1993), é do final do século XIX o combate a estas ideologias por parte da

Igreja. Neste, se disputam tanto fiéis quanto se engajam concepções de ordem social. Também

os protestantismos históricos experimentam a mesma situação de concorrência. Segundo

Casanova, as ideologias de esquerda uniram catolicismo e protestantismos representados no

CMI, os quais veriam a desunião das igrejas cristãs inapropriadas para o enfrentamento do

“materialismo” (CASANOVA, 1968, p. 65-66).

No entanto, é preciso levar em conta que esta concorrência ocasionou processos

diferenciados conforme diferentes setores do clero. O clero dos meios urbanos seja dos países

desenvolvidos, seja do terceiro mundo, vivia uma “crise de sentido” por conta da adesão das

populações a movimentos e ideologias que a Igreja Católica rejeitava (conforme

DONEGANI, 1993). A crise de sentido é então uma das dimensões da concorrência com

outras ideologias, em especial as de esquerda. Casanova (1968, p. 235-6) considera assim que

sindicatos e movimentos católicos) e, mais largamente, vivendo em contato com esta classe,

procuram romper ideologicamente com as classes dominantes, e oferecer recursos teológicos

aos militantes destas organizações. Se isto implica em uma conversão dos padres a temas e

questões destes militantes, não está excluída a preocupação com a perda de fiéis.

O clero que atua junto a classes médias e altas, principalmente nos países

desenvolvidos, se vê confrontado com novos bens de salvação oferecidos a estas classes por

outros produtores: a psicanálise, as medicinas, religiões orientais, yoga, etc., e outras formas

de cuidado de si. Há uma “diluição das fronteiras do campo religioso” em um “novo campo

de lutas pela manipulação simbólica da condução da vida privada e a orientação da visão de

mundo, e todos colocam em funcionamento na sua prática definições concorrentes,

antagônicas, de saúde, da cura, do cuidado de corpos e de almas” (BOURDIEU, 1987, p.

119).

Nos países em desenvolvimento, a formulação ou difusão de ideologias para as classes

mais baixas da população deve ser entendida em sua especificidade com relação ao

proletariado dos países desenvolvidos. O contato do clero com as “massas empobrecidas” é a

base de reconversões de seus membros, em uma situação de violenta mudança e

desestruturação social; além do contato e aproximação com ideologias de “esquerda”, e a

concorrência com protestantismos pentecostais e, no caso do Brasil, as religiões “afro” (ver

CASANOVA, 1968, p. 121).

Há, então, por parte do clero de uma forma geral, e de formas diferentes segundo as

frações do clero envolvidas, a busca de diversificação dos produtos oferecidos, e a busca de

manutenção da influência junto a públicos diversificados. O concílio Vaticano II é o marco da

formulação destes novos produtos, e da conversão da maior parte do alto clero aos problemas

dos “dominados”. Neste sentido, o aggiornamento6 implica que o alto clero procura oferecer

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Donegani (1993, p. 391-392) enfatiza que o Vaticano II foi um concílio que agiu nos planos pastoral e eclesiológico e não no dogmático.

outras visões e soluções para os problemas sociais, através de encíclicas papais e orientações à

prática pastoral.

É a partir de um processo de discussão e disputa interna no Vaticano II que mudaram

as formas através das quais a Igreja Católica tratava o ateísmo e o comunismo (DONEGANI,

1993, p. 374-8; CASANOVA, 1968, p. 260). Tradicionalmente, o comunismo e o ateísmo,

não reconhecendo a origem divina do poder estatal e das desigualdades sociais e defendendo

sua subversão, deveriam ser combatidos. Assim, é uma concepção de sociedade que orienta o

engajamento contra o comunismo por parte da Igreja Católica (DONEGANI, 1993, p.375).

O texto final do documento referente às relações com o comunismo e com os ateus –

Gaudium et Spes – no entanto, abandona a idéia de combate em favor do “diálogo”. Tanto

Donegani quanto Casanova consideram que tal diálogo tem funções instrumentais, de

aumentar o campo de influência da Igreja, já que não muda a concepção do alto clero com

relação ao socialismo e ao comunismo7. O que se deseja é, por um lado, atrair “os sociais

democratas mais reformistas, os quais, esvaziando pouco a pouco o socialismo de todo o

conteúdo revolucionário, se aproximam de suas [da Igreja] próprias posições” (CASANOVA,

1968, p. 262).

Segundo Donegani (1993, p. 378), em Gaudium et Spes há uma mudança de discurso,

com a distinção entre ateísmo e comunismo, e este último não é atacado em nome da defesa

da ordem social desigual, mas em nome da própria fé católica. É o combate à fé religiosa que

os regimes comunistas fazem que é condenado (DONEGANI, 1993, p. 376). Ao mesmo

tempo, Gaudium et Spes incorpora certos temas próprios à esquerda: vida plena e digna para

os homens, defesa dos direitos dos trabalhadores, direito dos pobres à vida, reforma agrária,

afirmação de que os bens econômicos são destinados ao uso geral dos homens (CASANOVA,

1968, p. 258-9). Além disto, apresenta uma outra concepção de ateísmo que permite a

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Casanova observa, no entanto, que alguns bispos de países do terceiro mundo – entre eles, Hélder Câmara - estavam inclinados a aceitar o socialismo e recusavam que a Igreja o combatesse (CASANOVA, 1968, p. 121).

aproximação e o diálogo entre ateus e cristãos. Ao distinguir o ateísmo, como forma de

humanismo contemporâneo, do comunismo, e ao considera-lo não mais como uma falta, mas

como uma falha a ser corrigida, abre a possibilidade de contato entre ateus e cristãos, e da

participação dos cristãos, membros do clero ou não, em espaços onde só ateus atuavam, como

a esquerda política (conforme DONEGANI, 1993, p. 379).