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3. O CONTEXTO SOCIAL DA CONFIANÇA

3.3. CONFIANÇA E FAMILIARIDADE NA MODERNIDADE

Niklas LUHMANN (1988), em seu artigo Familiarity, Confidence, Trust:

Problems and Alternatives preocupou-se em definir os conceitos de

familiaridade e confiança, discutir a necessidade de reconstruí-los no contexto da sociedade moderna e, principalmente, abordar a seguinte questão:qual é função da confiança na sociedade capitalista contemporânea?

LUHMANN (1988), assim como GAMBETTA (1988), sugere que a confiança incondicional, existente nas sociedades tradicionais, é gerada no âmbito da família e de sociedades de pequena escala e não pode ser automaticamente transferida para as sociedades complexas, que são baseadas na divisão do trabalho. Ou seja, na modernidade, a confiança precisa ser reconstruída através de instituições sociais tais como associações profissionais, organizações de classes, etc. A confiança existe a partir de um contexto familiar que, por sua vez, está sujeito a mudanças, o que pode dificultar o desenvolvimento da confiança em relações humanas. Logo, não se pode negligenciar o conceito de familiaridade e seus limites quando se discute confiança.

A familiaridade existe a partir da distinção que o ser humano faz, desde seu nascimento, entre o que é conhecido e o que é desconhecido. Os indivíduos

vivem em um mundo familiar no qual conhecem seus pares, seus perigos e os limites que demarcam aquilo que não é familiar. O desconhecido é introduzido no mundo familiar através de mitos, e mais recentemente, através de símbolos que nos permitem levar em conta os aspectos não familiares, tais como surpresas, segredos da natureza, segredos dos deuses, sem termos que sair dos limites do mundo conhecido. Nas sociedades tradicionais, a religião exercia o papel dos símbolos e demarcava os limites do familiar e não-familiar, deixando sob a responsabilidade da cosmologia ou do poder divino o inesperado e desconhecido.

Com o surgimento da modernidade, apareceu um novo termo, o risco, que indica que conseqüências inesperadas resultam de nossas próprias decisões, e não podem ser, como nas sociedades tradicionais, atribuíd as ao poder divino, à natureza ou à cosmologia. A consciência de que as decisões humanas não podem evitar o risco e de que a confiança não é inerente à vida, e sim uma escolha racional, tornou-se familiar a todos. Além disso, a confiança, que nos permite engajar em atividades de risco é sensível à representação simbólica que temos do mundo familiar. Por exemplo, possuímos uma representação simbólica de como os médicos devem conduzir o tratamento de seus pacientes o que nos permite estabelecer uma relação de confiança. No entanto, se em determinado momento observamos uma atitude distinta do que nos é familiar, a confiança pode ser imediatamente destruída.

LUHMANN (1988) faz ainda uma distinção entre os conceitos de confidence (confiabilidade em sistemas) e trust (confiança em pessoas). Ambos referem-se à expectativa de um resultado futuro que pode não se concretizar. Os indivíduos desenvolvem a confiabilidade em sistemas quando estão diante de eventos contingentes que têm pouca probabilidade de frustrar suas expectativas, por exemplo, espera-se que os aviões não cairão, que a casa onde se mora não desabará, que haverá energia para funcionar os aparelhos domésticos, etc. Nestas situações, as pessoas negligenciam a possibilidade de o resultado futuro não se concretizar por não possuírem alternativa. A confiança, por sua vez, requer um engajamento individual e pressupõem uma situação de risco. Isto é, o indivíduo pode evitar o risco mas deve estar disposto a abrir mão das vantagens associadas à ação que deliberadamente

escolhe não realizar. Por exemplo, pode-se escolher comprar ou não um carro usado que tem o risco de ser um carro em estado ruim.

A distinção entre confiabilidade em sistemas e confiança depende da percepção individual e atribuição de responsabilidade, conforme o descrito por LUHMANN (1988):

" Se você não considera alternativas (todas as manhãs sai de casa sem uma arma), você está em uma situação de confiabilidade em sistemas. Se escolhe uma ação, em preferência a outras, a despeito da possibilidade de ser desapontado pela ação de outros, está em uma situação de confiança em pessoas. No caso de confiabilidade em sistemas, você reagirá a um desapontamento atribuindo a responsabilidade a terceiros. No caso de confiança terá que considerar uma responsabilidade pessoal e, eventualmente, se arrependerá de ter confiado em sua prórpia escolha." (LUHMANN, 1988, p.97).

A existência de confiança só é necessária em situações nas quais o prejuízo esperado é superior às vantagens perseguidas. Além disso, a distinção entre confiabilidade em sistemas e confiança em pessoas parece depender de nossa habilidade para distinguir entre perigo e risco. O perigo é externo e não depende de nós. Já o risco é interno e existe a partir de ações e comportamentos individuais.

Para o autor, a confiabilidade em sistemas e a confiança em pessoas estão entrelaçadas na modernidade. Inicialmente parece haver um deslocamento de situações de confiabilidade em sistemas para situações de confiança em pessoas. O liberalismo político e econômico, característico do capitalismo contemporâneo, insiste na liberdade de escolha e enfatiza a responsabilidade individual quando se decide entre confiar ou desconfiar de políticos, partidos, bens de consumo, empresas, empregados, crédito financeiro, etc. No entanto, com a evolução da modernidade, sistemas e instituições tornam-se mais complexos e, para que os indivíduos se disponham a participar e confiar uns nos outros, é preciso que tenham um alto grau de confiabilidade. Logo, pode-se concluir que uma queda na confiabilidade que se tem nos sistemas ou instituição poderá diminuir a disposição que os indivíduos têm para engajar em

atividades e confiar em seus parceiros, o que resultaria na redução do escopo das atividades do próprio sistema em questão.

LUHMANN (1988), a partir de suas considerações, deduz que as condições de familiaridade foram drasticamente transformadas, reduzindo sua importância na sociedade moderna a pequenos ambientes. O conhecido e o desconhecido não estão mais restritos a um pequeno grupo social ou a uma localidade geográfica e as informações e o conhecimento estão disponíveis em todas as partes do globo. A sociedade é reconstruída de acordo com os interesses individuais e, neste contexto, a confiabilidade em sistemas e a confiança em pessoas tornaram-se decisivas para o funcionamento da mesma.

Uma segunda grande mudança social, que fez aumentar a importância da confiabilidade de sistemas e da confiança em pessoas em detrimento da familiaridade, foi a transição de uma estrutura social estratificada para uma estrutura social funcional. Na primeira, os indivíduos possuíam posições sociais fixas enquanto, na segunda, as estruturas são contingentes e os indivíduos precisam ter acesso a todos os subsistemas funcionais da sociedade do qual participam e dependem igualmente. De acordo com o autor:

"Estas novas condições, de acesso e pressão temporal, de oportunidades e dependência, de abertura e falta de integração, alteram a relação entre confiabilidade de sistemas e confiança em pessoas. A confiança continua sendo vital para as relações interpessoais, mas participação em sistemas funcionais, como a economia e a política, não é mais uma questão de relações pessoais. Requer que haja confiabilidade de sistemas, mas não confiança…A vida moderna depende de estruturas contingentes e de condições mutáveis. Um indivíduos não pode evitar a participação pois 'assim é a vida', mas não há uma base racional para aceitar o que é inevitável. Não existe a necessidade, ou mesmo a ocasião, de decidir sobre se há ou não confiabilidade nos sistemas. Um indivíduo só poderá se sentir infeliz e reclamar." (LUHMANN, 1988, p.103).

Nas condições de modernidade, a relação entre confiabilidade de sistemas e confiança em pessoas é ainda mais importante do que nas sociedades tradicionais. Dada a complexidade da sociedade atual, a ausência de confiabilidade nos sistemas resultará em falta de confiança em pessoas. Isso,

por sua vez, dificultará a adoção de comportamentos que requeiram aceitação de risco e reduzirá, ainda mais, a confiabilidade dos sistemas, ou seja, cria-se um ciclo vicioso. Para LUHMANN (1988), a confiança em pessoas é um input vital para o bom funcionamento da sociedade moderna. Sua falta poderá levar ao desaparecimento de determinadas atividades restringindo, assim, as alternativas disponíveis de ações racionais. No que concerne a pesquisa, a confiabilidade em sistemas pode ser compreendida no nível macro enquanto a confiança em pessoa estaria refletida no nível micro. Como exemplo, quando as leis protegem os direitos civis, a liberdade e a propriedade, há um aumento de confiabilidade do sistema legal o que facilita o engajamento em relacionamentos pessoais baseados na confiança. Logo, é possível desenvolver a confiança em pessoas no nível micro e proteger os sistemas da perda de confiabilidade no nível macro.

Em suas conclusões finais, LUHMANN (1988) alerta-nos para o fato de que a confiança é, sem sombra de dúvida, um conceito importante para que se compreenda a modernidade, mas não é o único que a explica. A confiança não substitui o conceito de solidariedade de DURKHEIM (2002). Para entendermos a modernidade, é preciso considerar duas mudanças estruturais interdependentes: (a) a crescente diversificação e particularização das familiaridades e não-familiaridades; (b) a crescente substituição de perigo por risco, isto é, pela possibilidade de prejuízos futuros que teremos de considerar como resultado de nossas próprias ações ou omissões.