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1. INTRODUÇÃO

2.3. A RE-INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS

GIDDENS (1991), em seu livro As Conseqüências da Modernidade , apresenta uma perspectiva descontinuista do desenvolvimento social moderno. Para este autor, a compreensão da natureza da modernidade exige o rompimento com aspectos importantes das perspectivas sociológicas apresentadas por Karl Marx, Max Weber e Emile Durkheim para que se possa dar conta do extremo dinamismo e do alcance mundial das instituições modernas.

Segundo o autor, existe um conjunto de descontinuidades específicas que estão associadas ao período moderno e que causaram profundas transformações, sem precedentes históricos, nas instituições e nas vidas das

pessoas. O modo de vida na modernidade fez com que os indivíduos se desvencilhassem de todos os tipos tradicionais de ordem social. Os principais fatores responsáveis por estas descontinuidades foram o ritmo acelerado, o escopo global das mudanças e a natureza intrínseca das instituições modernas (a exemplo do estado-nação, que não existiu em períodos precedentes).

De acordo com GIDDENS (1991), devido ao caráter descontinuísta da modernidade, é preciso romper com a perspectiva sociológica do evolucionismo dos autores clássicos, e aceitar que a história não pode ser vista como uma unidade, ou refletindo certos princípios de organização e transformação. Outros aspectos da sociologia, considerados pelo autor como sendo empecilhos para uma adequada compreensão da modernidade e que devem ser superados são:

(1) O diagnóstico institucional da modernidade. As tradições teóricas mais importantes na sociologia têm tratado de uma única e mais importante dinâmica de transformação social. Marx, por exemplo, considerou o capitalismo como sendo a força transformadora que modelou o mundo moderno. Durkheim, por sua vez, julgou que a divisão do trabalho decorrente do processo de industrialização teve um papel preponderante na modernização da ordem econômica. Finalmente, o termo capitalismo foi usado também por Weber, porém seu significado aproximou-se do conceito de industrialização de Durkheim, já que para Weber a burocracia, expressa no uso racional de tecnologias e na organização racional das atividades humanas, foi uma das principais forças transformadoras da ordem social. Para GIDDENS (1991), a modernidade é "multidimensional no âmbito das instituições, e cada um dos elementos

especificados por estas várias tradições teóricas representam um papel."

(p.21).

(2) O foco principal da análise sociológica, a "sociedade". Enquanto sistema específico de relações sociais, a "sociedade" é para muitos teóricos a noção central da sociologia e está implicitamente associada à modernidade. Para GIDDENS (1991), ao caracterizar a natureza das sociedades modernas, é importante que os teóricos façam a distinção

entre sociedades, em geral, e o "estado-nação", que é um tipo de comunidade social específico da modernidade. Nenhuma sociedade anterior foi tão claramente delimitada como os "estados-nação", por outro lado, nenhuma sociedade anterior foi tão ligada a outras através de conexões que ultrapassam o sistema sócio-político do estado e a ordem cultural da nação. Na modernidade, portanto, o distanciamento tempo- espaço é muito mais amplo.

(3) Na visão positivista, a sociologia tem sido entendida como geradora de conhecimento sobre a vida social moderna, conhecimento este que pode ser utilizado para prever ou controle a própria sociedade. Outra visão, de teóricos marxistas, seria o uso de descobertas da sociologia para melhorar o entendimento dos agentes sociais, o que os levaria a revolucionar a ordem social. Para GIDDENS (1991), ambas as perspectivas são limitadas, já que não consideram de maneira adequada o caráter reflexivo do conhecimento das ciências sociais. Segundo o autor, "o conhecimento sociológico espirala dentro e fora do universo da

vida social, reconstituindo tanto este universo como a si mesmo como uma parte integral deste processo" (GIDDENS, 1991, p.24). Ou seja, a

sociologia afeta e é afetada pela modernidade.

Segundo o autor, para se compreender a natureza da modernidade, é preciso pensar de forma crítica sobre as perspectivas sociológicas tradicionais e levar em conta os pontos mencionados acima. As descontinuidades da modernidade, em relação às sociedades tradicionais, resultam do extremo dinamismo e do alcance global de suas instituições, que, por sua vez, derivam da 'separação do tempo e do espaço', do 'desencaixe' dos sistemas sociais e da 'ordenação e reordenação reflexiva' das relações sociais. Este último diz respeito à reflexidade da vida social moderna, ou seja, as práticas sociais são constantemente examinadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim seu caráter.

No período pré-moderno, o espaço e o tempo coincidiam amplamente e estavam sempre vinculados. A vida social era dominada, quase exclusivamente, por atividades localizadas que dependiam da presença física

dos indivíduos. No entanto, a modernidade é acompanhada pelo advento da mensuração do tempo pelo relógio mecânico e pela adoção de um calendário padronizado, tornando o tempo universal e permitindo uma separação, cada vez maior, entre tempo e espaço. Os indivíduos passam a se relacionar com outros ausentes e "os locais se tornam cada vez mais 'fantasmagóricos': isto é,

os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles…o que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena." (GIDDENS, 1991, p.27).

A separação do tempo e do espaço é pré-condição para o surgimento das organizações racionalizadas da vida moderna. Estas instituições, assim como os estados modernos na esfera pública, são capazes de conectar o local e o global de uma forma dinâmica tal que seria impensável em sociedades tradicionais. Adicionalmente, a separação entre tempo e espaço permite o 'desencaixe' dos sistemas sociais, ou, conforme a definição de GIDDENS (1991): "o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação

e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo- espaço."(p.29). Tal processo é considerado pelo autor de fundamental

importância para as mudanças sociais e para a natureza da modernidade. O autor distingue dois mecanismos de desencaixe que merecem consideração no processo de desenvolvimento das instituições modernas: as fichas simbólicas e os sistemas peritos. As primeiras (fichas simbólicas) são definidas como meios de intercâmbio que podem ser circulados sem ter em vista as características dos indivíduos ou grupos de indivíduos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular, cujo exemplo mais claro é o dinheiro. Este último é um meio perfeito de distanciamento de tempo e espaço, pois possibilita a realização de transações entre indivíduos amplamente separados e distanciados de suas posses. A condição de desencaixe proporcionada pelas economias monetárias modernas é muito mais ampla do que em qualquer outra civilização pré-moderna em que existia dinheiro.

Quanto aos sistemas peritos, também considerados mecanismos de desencaixe pelo autor, são sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam várias áreas do ambiente social no qual vivemos.

Como exemplo, pode-se mencionar os conhecimentos sistematizados de médicos, que são continuamente consultados por leigos. Estes últimos, apesar de possuírem pouco conhecimento sobre a medicina, depositam nesta classe profissional um alto grau de confiança nos tratamentos da saúde. A confiança não é colocada exclusivamente na pessoa do médico mas na autenticidade do conhecimento perito que ele possui e que foi previamente certificado pela associação profissional à qual ele pertence, pela universidade que freqüentou, pelo conselho regional de medicina, etc. Os sistemas peritos fornecem a seus usuários garantias de expectativas e, assim como as fichas simbólicas, permitem o distanciamento tempo-espaço através do alongamento de sistemas sociais. Tal alongamento, segundo GIDDENS (1991) , "é obtido por meio da

natureza impessoal dos testes aplicados para avaliar o conhecimento técnico e pela crítica pública". (p.36).

Ambos os sistemas de desencaixe dependem da confiança, que, por sua vez, é um elemento fundamental das instituições modernas. A confiança existe, segundo GIDDENS (1991), quando 'acreditamos' em alguém ou em algum princípio. Ela é uma 'fé' na qual a segurança adquirida em resultados prováveis expressa mais um compromisso com algo do que apenas uma compreensão cognitiva. Nas transações monetárias, por exemplo, os indivíduos usam fichas simbólicas na expectativa de que outros, pessoas que nunca conheceram, honrem seus compromissos. A existência de sistemas peritos também só é viável a partir do momento em que os leigos renovam continuamente sua confiança nos mesmos, e isto ocorre quando tais sistemas funcionam de acordo com as expectativas de seus usuários.

O conceito de confiança, na perspectiva de GIDDENS (1991) e outros autores como AXELROD (1984), FUKUYAMA (1996) e GAMBETTA (1988), que serão oportunamente abordados nesta pesquisa, surge com a modernidade e é um fator determinante para o desenvolvimento das instituições modernas. GIDDENS (1991) assim define e sumariza o conceito:

(1) "A confiança está relacionada à ausência no tempo e no espaço e

surge da falta de informação." (GIDDENS, 1991, p.40). Dando

não teriam necessidade de confiar em um médico se tivessem acesso a todas as informações e procedimentos dessa profissão. Mais ainda, não seria necessário confiar em pessoas cujas atividades fossem próximas fisicamente, o que facilitaria sua vigilância através da visualização, ou cujos pensamentos fossem totalmente transparentes. O deslocamento do tempo e do espaço e o desencaixe dos sistemas de relações sociais existem, somente, na medida em que há confiança entre pessoas ou de pessoas em sistemas de operação.

(2) "A confiança está basicamente vinculada à contingência, e não ao

risco."(GIDDENS, p.40). A confiança deriva da credibilidade diante de

resultados incertos relacionados a ações de pessoas ou a sistemas operacionais. Ao submeter-se a uma cirurgia médica para superação de uma doença crônica, como uma doença do coração, um indivíduo acredita que os resultados do tratamento serão positivos, ainda que possam existir muitas incertezas acerca dos mesmos.

(3) Pode-se definir a confiança como:"crença na credibilidade de uma

pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)."

(GIDDENS, 1991, p.41).

(4) Na modernidade, a confiança existe no contexto de: (a) uma consciência geral de que a atividade humana é criada socialmente, e não pela natureza das coisas ou por lei divina; e (b) o escopo transformativo da ação humana, decorrente do caráter dinâmico das instituições sociais modernas. Desta forma, o conceito de risco, que surge com a compreensão humana de que resultados inesperados podem ser uma conseqüência de nossas próprias atividades ou decisões, substitui o da fortuna (destino) que é determinado por cosmologias religiosas.

(5) "Perigo e risco são conceitos próximos mas não são a mesma

coisa."(GIDDENS, 1991,p.42). Uma pessoa que se arrisca corre perigo,

exercer determinadas ações arriscadas, indivíduos podem, ou não, estar conscientes das ameaças às quais estão sujeitos.

(6) "Risco e confiança se entrelaçam entre si."(GIDDENS, p.42). A confiança normalmente reduz ou minimiza os riscos aos quais os indivíduos estão expostos. Há circunstâncias nas quais os padrões de risco estão institucionalizados no interior de estruturas abrangentes de confiança; como exemplo pode-se citar o mercado de ações, viajar de aviões e esportes radicais. O risco aceitável, também designado como conhecimento indutivo fraco pelo autor, é central para a manutenção da confiança.

(7) "O risco não é apenas uma questão de ação individual."(GIDDENS, 1991, p.43). Existem situações de risco coletivo, como é o exemplo de catástrofes ecológicas e guerras nucleares. O equilíbrio entre confiança e risco aceitável, no âmbito coletivo, assegura a segurança, que é uma situação na qual um conjunto específico de perigos está neutralizado ou minimizado.

Em suma, a confiança possui um papel importante no desenvolvimento de instituições modernas que, em virtude da separação do tempo e do espaço e os dos mecanismos de desencaixe, tornam-se extremamente dinâmicas e globais. A continuidade da modernidade depende da renovação da confiança que indivíduos depositam em pessoas, grupos de pessoas ou sistemas operacionais, que nunca conheceram aos quais muitas vezes, sequer têm acesso físico.