• Nenhum resultado encontrado

2 Reestruturação e requalificação urbanas

2.7 Conflitos urbanos

Uma cidade concentra setores urbanos cuja localização e disposição territorial constitui

seja a própria organização e ordenamento da sua funcionalidade, seja a distribuição dos seus

problemas. As preocupações e dificuldades das cidades contemporâneas são várias e bem

diversificadas e constituem fatores que, em sua complexidade, determinam os arranjos de uso

e de ocupação do solo. De forma espontânea ou planejada, compõem o processo de

estruturação dos seus espaços. As cidades modernas sofrem principalmente com a poluição;

crescimento demográfico, construtivo e espacial desordenados; sub-moradias; violência;

engarrafamentos; acumulação do capital; especulação imobiliária; infraestrutura; segregação e

urbanos que vão determinar suas funções e seus conflitos. O vocábulo conflito expressa uma

oposição de interesses segundo a Enciclopédia Larrousse (2006, p.704). Pode-se determinar

como conflito urbano toda e qualquer disputa ou confronto entre, pelo menos, dois autores ou

atores urbanos e que envolvam desde a infraestrutura, serviços ou condições de vida urbanas

até o uso e a ocupação do solo. Dos conflitos urbanos, o fator econômico é sempre considerado

como o mais relevante na determinação dos arranjos urbanos, enquanto principal agente da

centralização e periferização das cidades. Tal fator termina por determinar um conflito que

envolve a dualidade de posições social e política entre o papel do agente promotor do interesse

coletivo versus o mercado imobiliário. Essa ideia do confronto entre investimentos público e

privado é confirmada por muitos autores. Silva, por exemplo, ao discernir sobre o direito

tributário brasileiro, afirma que a atividade urbanística é de natureza pública e se exerce

constrangendo e limitando interesses privados (SILVA, 2006). Harvey por sua vez, considera

que o espaço urbano é criado, em parte refletindo a ideologia predominante de grupos

governantes e de instituições da sociedade (HARVEY, 1980). Em sua obra História da Cidade,

também Benévolo corrobora a ideia ao analisar o panorama das cidades modernas:

Esta nova estrutura pretende superar o antigo dualismo entre cidade e campo, e seu corolário mais recente, isto é, a apropriação privada do território urbano, para daí tirar uma fonte de renda. Desde o início, os arquitetos modernos criticam a combinação entre interesse público e propriedade particular que já se encontra na base da cidade burguesa, e indicam a alternativa a alcançar: a reconquista do controle público sobre todo o espaço da cidade. (BENELOVO, 2009 p.631).

O conflito detém-se não só sobre o papel do Estado, elites, técnicos e os grupos

dominantes, mas também sobre os diferentes componentes do espaço urbano a ser

compartilhado ou reconquistado, no dizer de Benévolo. A concepção e o redesenho das cidades

passam a ser um instrumento ou de confronto ou a serviço desses agentes. Vidal (2009, p.16),

na introdução do seu livro, De Nova Lisboa a Brasília: A invenção de uma capital (séculos

XIX-XX), entre outras, formula a seguinte questão: “Como foi resolvida a tensão entre os

seu livro toda a jornada para a criação da capital brasileira, esse autor coloca em pauta a relação

possível entre a motivação política e o atendimento à recomendação técnica para a fundação

de Brasília. Depois, sobre a mesma possibilidade de idealizar a cidade como um instrumento,

esse autor, no mesmo livro, escreveu em relação ao plano de Belo Horizonte, primeira cidade

brasileira planejada:

[...] A intervenção do Estado no domínio urbanístico não tem outro propósito senão o de assegurar o funcionamento e o exercício do poder governamental. Belo Horizonte é o sonho de ordem concebido na convicção de que a razão, a inteligência e a técnica são capazes de impor medida e ordem a todas as atividades humanas. (VIDAL, 2009 p.132).

Duarte escreveu que, dos muitos e crescentes conflitos e desafios para o planejamento

urbano no contexto contemporâneo, três são enfatizados: auto segregação; esvaziamento das

áreas centrais e convívio necessário entre a cidade e o mercado. Sobre esse último o autor

afirma:

Os interesses da administração pública e dos agentes privados são opostos em seus fundamentos. Nem por isso, o público e o privado têm de atuar como antagonistas. Cabe aos agentes privados controlar os meios de produção e a distribuição de produtos que influenciam na formação territorial, na geração de empregos e de benefícios sociais. Os empresários estão interessados em saber como e quais oportunidades as cidades estão criando, para então se decidirem por investir. Assim, as cidades devem deixar de ser apenas um terreno de ação inerte para se posicionarem como provedoras de oportunidades, visando objetivos claros. (DUARTE, 2007 p.163-64).

No contexto das observações desses autores, existe uma argumentação em relação ao

confronto entre o poder público e a iniciativa privada na construção das paisagens urbanas. De

um lado, estão as intervenções e medidas realizadas pelo Poder Executivo Municipal com o

objetivo de viabilizar projetos urbanos motivados por interesses coletivos e que se caracterizam

como ações públicas. Do outro lado, estão os investimentos dominantes no mercado que tentam

agir livremente em função das suas perspectivas individuais de lucro e que se caracterizam

como ações privadas. Os interesses públicos e privados são quase sempre opostos em seus

fundamentos. Enquanto os motivos do poder público devem se pautar pela busca do equilíbrio

sucesso do empreendimento como seu resultado. Nessa relação de conflito, pode faltar controle

do poder público em relação aos interesses dominantes do mercado que passa a agir sem

qualquer fiscalização. Desse modo, o Estado coloca-se como um refém para atender aos

proveitos da iniciativa privada. Ao mesmo tempo, ocorre uma lacuna em relação à implantação

de medidas, intervenções ou legislações urbanas que possam limitar ou impedir a especulação

imobiliária. Nesse fogo cruzado, no entanto, ressalve-se a existência de operações urbanas

consorciadas, coordenadas pelo Executivo Municipal, com a participação de agentes públicos

ou privados. Esse mecanismo permite uma mudança significativa na dinâmica da relação entre

o mercado e as políticas públicas, desde que bem monitoradas, com real utilização de

informações atualizadas e transparentes e uma boa prática de fiscalização. Essas ações são

fundamentais no processo de integração entre empreendedor e serviço público e promovem a

possibilidade de combinação das ações econômicas, sociais, urbanísticas e ambientais.

As operações urbanas, por iniciativa do Executivo Municipal ou consorciadas, deverão

ter por objetivo a busca de melhorias sociais, as necessárias alterações das estruturas de bens e

de serviços urbanos e as valorizações ambiental e de potencialidade das cidades como forma de

solução aos seus principais conflitos. Sempre motivadas por interesses coletivos, as operações

urbanas se processam através de intervenções para viabilizar novas vias e melhoramento no

sistema viário existente: criação, requalificação e tratamento urbanístico de áreas de convívio;

promoção de fatores urbanos necessários para uma melhor qualidade de vida; implantação de

programas habitacionais; proteção do patrimônio ambiental e cultural; controle da densidade

construtiva e populacional e, finalmente, a regularização do uso e ocupação do solo urbano.

A Constituição Federal de 1988 deu aos Municípios brasileiros autonomia e condição

de franco poder, aliada à intimidade local, presente pela estreita vizinhança do poder público

com as empresas particulares nos pequenos redutos dos seus territórios. Este fato resultou em

ligação trouxe como produto uma interligação maléfica e confusa entre a intenção de melhoria

de vida da população, pelo poder público, e as produções de renda que são provocadas desde

o mercado imobiliário até a oferta de emprego dos setores produtivos, como a construção civil.

Sendo espontâneas e descompromissadas, essas forças de mercado tornam-se essenciais e,

sobremaneira, necessárias para a subsistência do poder local que terminam provocando uma

espécie de dependência velada, alimentando os conflitos. Sendo intencional e consciente, essa

força usufrui desde uma exagerada e conveniente influência direta sobre o poder público até a

imposição explícita da sua vontade. Em conclusão, sejam descompromissadas ou sejam

articuladoras, tais intercorrências provocam dependência do Estado com relação ao mercado e

podem ser determinantes sobre o papel funcional do poder público.

Outra relação de conflito seria a barganha eleitoreira. A empresa privada se aproxima

do poder municipal em busca de compensações e, a partir da troca do apoio político, passa a

agir livremente em função do lucro desejado, mesmo que seja em detrimento do

desenvolvimento equilibrado da cidade ou prejudicial à população.

A partir de todas essas considerações, pode-se concluir que as relações entre o mercado

e o Executivo Municipal, se não forem dotadas de instrumentos normativos de intenções claras,

sem combinações duvidosas, colocam em risco o compromisso com o bom planejamento

urbano e com o bem-estar coletivo. À luz dessa diretriz, conclui-se que intervenções urbanas,

enquanto instrumento de controle do Estado sobre os interesses privados, raiz dos conflitos

urbanos, podem significar o exercício pleno e franco de controle do poder público sobre

mercado e propriedade privada, que são, por excelência, os principais promotores da

especulação urbana. A confirmação única do desejo de alcançar objetivos públicos adequados,

em princípio, torna o Executivo Municipal invulnerável, isento e capaz de produzir intervenções

Nesse âmbito, para se auferir o grau de sucesso ou alcance efetivo de uma intervenção

urbana é preciso saber claramente em qual contexto se originou e, em consequência, qual o

resultado esperado. Desde a data da sua concepção até o período atual de vigência, qualquer

falha ou simples dúvida em relação à sua criação, razão de existência ou funcionalidade pode

colocar em risco ou inviabilizar a efetividade e sustentabilidade da intervenção urbana.

A reestruturação, requalificação ou replanejamento do espaço urbano coletivo, vistos

como métodos sistemáticos de gerir as mudanças, segundo afirmativa de Güell (1997), devem

sempre acontecer de forma ampla, geral e integrada ao próprio desenvolvimento da visão de

cidade. A constatação remete ao conceito da Teoria Geral dos Sistemas, em que processos de

intervenção normativa localizada jamais vão agir isoladamente e que sempre vão interagir com

o ambiente do entorno, havendo, com certeza, um fluxo constante de expansão, interação,

informações, influências ou efeitos. A concepção ou implantação de uma intervenção urbana

necessita ser pensada como uma operação que faz parte de um sistema maior em que o conflito

aconteceu porque um setor urbano funcionando isoladamente não conseguiu a conciliação

necessária. Como os sistemas sempre tendem ao equilíbrio, seguramente, a intervenção perderá

a conotação localizada. Já que os setores urbanos são interdependentes e interagem entre si, tais

situações são fundamentais para o funcionamento da cidade como um todo. Esse raciocínio

conduz à consideração de que as funções dos setores urbanos se sobrepõem umas às outras ou

acontecem ligadas de maneira estrita, tal como, segundo Capel (2005), em uma “metástase positiva”.

As intervenções propostas nos sistemas urbanos, mesmo em caráter localizado,

procuram promover uma reestruturação do desenho urbano para conciliar um conflito qualquer,

seja por excessivo adensamento construtivo ou populacional, seja por preservação de áreas com

importância histórica, artística ou ambiental. Enfim, constituem uma ação sobre as áreas que

planejadas visando ao aproveitamento das potencialidades locais e depois como solução

integrada e abrangente. Segundo Castells (2002), todos os sistemas estruturais possuem em seu

âmago subsistemas de práticas homogêneas ligadas à estrutura maior, pois atuam segundo as