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4.1 DESCRIÇÃO DOS PRIMEIROS PASSOS PARA A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO

4.1.1 Confrontos nos Encantos e Desencantos na Realidade Anunciada

Refletimos que esse processo nos oportunizou uma ideia aproximada do que vem ocorrendo nas escolas de educação infantil, em relação à influência de fatores estruturantes, no sentido de o brincar e a ludicidade se constituírem como saber da profissionalidade docente na escola de educação infantil.

Estávamos buscando objetivamente perceber de que maneira os relatos dos supervisores, nos encontros na formação geral com referência ao brincar e à ludicidade se constituíam na prática da escola. Naquele momento fomos a cada uma das 12 (doze) escolas para ver de perto, na busca de ampliar a visão e definir as instituições com as quais trabalharíamos. Efetivamente foram aqueles contatos diretos com cada uma das instituições que nos fizeram perceber que 8 (oito) dessas não reuniam, naquele momento, critérios necessários para a participação na nossa investigação.

Percebemos a importância da observação no processo de constituição do campo, mesmo com uma ideia de aproximação, como uma estratégia que permite o contato direto com a realidade pesquisada, ou, como afirma Alves-Mazzotti (1998, p.164), "[...] permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial". Apresentamos a seguir a experiência com as 8 (oito) escolas que não foram selecionadas, mas representaram uma possibilidade de visualizar situações que as escolas municipais enfrentam no seu dia-a-dia.

Ao chegarmos à 1ª (primeira) dessas instituições, surpreendemo-nos com a notícia de que a supervisora que fazia as formações havia feito à opção de ir para a sala de aula e assumiria a formação a supervisora da tarde, que não vinha acompanhando os encontros de estudo por atuar no ensino fundamental em outro horário. Não conseguimos compreender nem aquela indicação feita na instituição, assim como o fato de a Secretaria de Educação não discutir outras possibilidades.

Pudemos constatar naquela experiência que entre o real e o ideal existem elementos que mudam o curso da realidade e que aquela mudança teria repercussão naquele trabalho de formação, no sentido de estar recomeçando um processo, que em si requereria tempo, conhecimentos prévios específicos, o que também inviabilizava a participação da instituição em nossa pesquisa.

Estivemos duas vezes na 2ª (segunda) instituição, um Centro de Educação Infantil- CMEI, e observamos que a maioria das professoras eram contratadas e apenas 1 (uma) professora era efetiva, mas recém-chegada. A organização do ambiente remetia à ideia de criança romântica. As experiências relatadas ainda eram incipientes do ponto de vista da relação entre a teoria e prática do brincar e da atividade lúdica. Fundamentalmente, emergia ali uma prática afetiva, mas, ao mesmo tempo, voltada ao controle da criança. Vimos que também não corresponderia naquele momento como campo de pesquisa. Saímos de lá refletindo sobre o paradoxo de tratar-se de uma instituição nova, escolhida para ser parte de um projeto de formação e, aparentemente, tão necessitada de um olhar cuidadoso por parte da Secretaria, para administrar a questão do corpo docente, providenciar uma supervisora para apoiar as professoras, uma vez que a gestora atua também como formadora, cuidando da parte pedagógica.

A questão cultural com relação à educação das crianças no sentido do cuidado ainda parecia muito enraizada nos que decidem rumos para a educação infantil. Indagávamo-nos acerca do paradoxo de se implantar um Centro de Educação Infantil com professoras contratadas. Por que implantar CMEIs sem a estrutura necessária? Seria uma resposta à comunidade para guardar as crianças?

A 3ªterceira é uma instituição rural, que estava tentando iniciar uma experiência com salas temáticas. Observamos uma sala de aula com crianças de 5 (cinco) anos e chamou-nos atenção o fato de elas quase não interagirem com a professora, que fazia a leitura de um livro de literatura infantil "O Sapo Bocarrão", um divertido animal com uma boca enorme, guloso e que vivia perguntando aos outros animais o que eles gostavam de comer. É uma história em que a dimensão lúdica emerge pelo enredo, pelas aliterações e também pelo formato do livro, com dobraduras-surpresa em todas as páginas.

Remetemo-nos a Pavani (2010) para dizer que emergia a função lúdica naquele texto, também pelo elemento surpresa, mas não para aquelas crianças, que em sua maioria não paravam para interagir com a leitura, corriam pela sala de aula, por toda manhã, alheias às proposições da professora. Essa experiência nos fez refletir sobre o sentido da licenciosidade, à luz de Freire (2005b), e do que representa o rompimento do equilíbrio na sala de aula pela ausência do diálogo, pois não havia ali, naquele momento, motivação de ambos os atores, nem o exercício da curiosidade.

Outro aspecto foi a dificuldade para nos aproximarmos de outras professoras de turmas de educação infantil, pois não sentimos abertura para tal, o que revelava que aquela

escola não seria uma boa escolha. Vimos que o acesso a outras salas de aula e às professoras seria muito difícil.

A 4ª quarta instituição havia suscitado nossa atenção na formação geral quando a supervisora apresentou um vídeo mostrando um ambiente de sala de aula organizado por cantinhos. No vídeo, havia o cantinho da brincadeira de casinha, com uma espécie de biombo construído com uma cortina onde as crianças brincavam, além do cantinho da história e do cantinho da natureza. Porém, encontramos um ambiente bem diferente daquele que tínhamos visto na filmagem: os cantinhos eram ainda muito incipientes, a sala de aula muito pequena, o cantinho do brincar estava sem o biombo em função de a cortina ter se despregado da parede e os outros cantinhos eram demarcados com cartazes.

A professora parecia desnorteada, tentando preparar o caderno das crianças, enquanto as crianças brincavam de ônibus, que fizeram com as cadeiras da sala, convidavam outras crianças e falavam do percurso. Avaliamos que aquela também não seria uma boa instituição para observarmos, pois o brincar e a ludicidade eram consentidos, mas ainda pouco observados e estimulados pelas professoras. Na sua inteireza, não era percebido como um aspecto fundamental na vida da criança da educação infantil e, por fim, para aquelas professoras o processo de formação estava praticamente iniciando, pela rotatividade das professoras.

A brincadeira das crianças mostrou-se como uma expressão de uma ação criativa, remetendo-nos a Alcântara (2006), quando se refere às estratégias de resistência, ao considerar que o que emergia ali não significava o descumprimento de normas, mas nos revelava a resistência das crianças ao processo de subjetivação pela homogeneização imposta. Ali a criança trazia o inusitado, dizia-nos para nos abrir para o novo, mostrava-nos as estratégias de combate ao instituído, especialmente adentrar em singularidades de suas brincadeiras, como possibilidade de resistência à inculcação dos "[...] códigos da cultura escolar, que os acompanharão vida a fora" (MOTA, SANTOS e CORSINO, 2009, p.127).

As notas de campo nesta pesquisa possibilitam descortinamentos preciosos para adentrarmos passo-a-passo nesse universo instigante do brincar e da ludicidade na vida das crianças e também das professoras em espaços formais de educação infantil.

A 5ª(quinta) instituição é uma creche, que foi escolhida em função de depoimentos da professora que fazia a formação, relatando situações lúdicas, especialmente com a literatura infantil, inclusive com os bebês nos encontros da formação geral. Porém, a experiência naquela instituição nos mostrou que o posicionamento das professoras era de desalento pelo abandono da escola, que estava funcionando em prédio alugado, em um espaço com salas

apertadas e mobiliário desgastado. A professora que vinha assumindo a formação estava desistindo por falta de estímulo, e a gestora tinha designado uma estagiária para participar da formação geral e também desenvolver o trabalho de formação na escola.

Refletimos sobre a situação de tantas escolas de nosso país, especialmente as escolas de educação infantil, ainda com a conotação de lugar de cuidados ou mesmo de depósito para guardar a criança. A contradição se mostrava desde a inadequação do espaço, às decisões da gestora, ao desestímulo das professoras em uma creche que enfrentava problemas até com relação à pessoa para assumir a formação, em um projeto com perspectivas de emancipação.

Voltamo-nos a Kramer (2002), quando critica as secretarias de educação pela maneira como agem na implementação de projetos na escola, não favorecendo a constituição de equipes de trabalho e transferindo para o professor responsabilidades que ele não pode assumir.

Ressaltamos também o perfil da gestora designada pela secretaria de educação para atuar na creche e o seu desconhecimento de um processo de formação que vem sendo desenvolvido na escola e que requereria maior envolvimento, criticidade e conhecimento. Por fim, remetemo-nos a Bauman (2005), quando reflete acerca do processo de globalização e suas implicações na relação entre o eu e o outro, no sentido da construção da identidade como um processo em que se compartilham biografias como quebra-cabeças incompletos.

Naquela situação não percebíamos familiaridade, identificação ou relação de pertencimento, especialmente a partir dos depoimentos dos sujeitos envolvidos no decorrer das conversas informais.

A 6ª (sexta) instituição é também uma creche. Percebemos que não corresponderia naquele momento aos critérios para fazer parte de nossa pesquisa, em razão do pouco tempo de atuação das professoras, assim como as atividades do brincar e a ludicidade caracterizaram mais uma perspectiva de recreação, uma vez que não percebemos reflexão acerca daquelas práticas na formação continuada de que participamos, mas vimos que o trabalho na creche poderá crescer, dada a nossa percepção do engajamento das professoras.

Consideramos, entretanto, que em meio às dificuldades daquela instituição a permanência de um trabalho de formação sistemático poderá ser um caminho para a transformação da prática docente, entre outros motivos, pela leitura e reflexão crítica de sua realidade, mas que para a nossa pesquisa ainda não seria um espaço ideal de análise.

Na 7ª (sétima) instituição presenciamos um momento na formação geral no qual uma professora socializou seu trabalho com as crianças e mostrou como estava descobrindo a importância do brincar em sua sala de aula. Em outro momento ouvimos um relato de

experiências da supervisora da escola na formação geral, falando do desejo e também das dificuldades de trabalhar com o material que as escolas participantes da formação haviam recebido. Dizia que as crianças, quando viam os livros, chapéus de bruxa, de fadas, corriam e queriam pegar para destruir tudo. Ela nos convidou para participar da formação continuada na instituição.

Naquele encontro de formação a supervisora relatou que ainda não conseguia atuar como formadora, uma vez que ainda não se sentia segura na função. Assim, quem assumiu o trabalho foi a técnica da secretaria de educação.

Vimos que naquele momento a escola não se adequaria às necessidades da pesquisa, mas emergia a necessidade de apoio à supervisora, por parte da coordenação do projeto de formação, não só de uma maneira pontual, mas com ações sistemáticas e reflexivas. Observamos que a escola talvez precisasse parar para refletir sobre as suas questões, seus desafios e o porquê de as crianças não saberem ainda lidar com o material.

Podíamos constatar por aquela experiência que, além da concepção da proposta, do acesso a materiais de fundamentação, constitui-se também como fator estruturante no avanço do processo formativo o conhecimento desse processo como um momento de construção, tanto no domínio do conteúdo, como na relação com as professoras. O tempo de leitura, o planejamento, a atitude de abertura, a dúvida, o apoio interno e externo, são parte dessa construção, mas não podem sem ser invasivos ou cerceadores nas iniciativas da escola. A 8ª (oitava) instituição vinha trabalhado com projetos didáticos e naquele momento estava desenvolvendo um trabalho com fábulas para ser socializado em um encontro com as demais instituições da rede. A ludicidade parecia ser o pretexto da escolha, mas o foco do projeto era a aprendizagem das crianças, entre outros, principalmente da leitura, e o que emergia nas falas não apontava para fundamentos da ludicidade nas fábulas.

Assim, o aparente distanciamento da ludicidade em sua prática cotidiana contribuiu para que desistíssemos de voltar, uma vez que buscávamos um trabalho nas escolas em que o brincar e a ludicidade fossem objetivados como eixos da ação pedagógica da escola.

Aqui nos remetemos a Fortuna (2012), quando afirma que "Uma escola ludicamente inspirada é aquela em que as características do brincar estão presentes, influindo no modo de ser do professor e no papel do aluno [...]" (p. 29). A autora ressalta que a própria visão do planejamento sofre uma "[...] revolução lúdica: uma ação pedagógica conscientemente criada, de caráter intencional [...]", que é necessária para que não incorra na promoção do individualismo, mas abra espaço para emergir o imprevisível, como um ato criativo e significativo.

Esse momento de nossa pesquisa nos trouxe reflexões de como nos últimos anos as instituições educativas vêm sendo reféns da implantação de projetos diversos voltados ao desenvolvimento de competências dos professores e também dos professores da educação infantil, como se a existência desses projetos lhes assegurasse uma prática emancipatória.

Nesse sentido, Oliveira (2004) ressalta a distorção de valores como autonomia, participação, democratização, ao afirmar: "[...] O fato é que o trabalho pedagógico foi reestruturado, dando lugar a uma nova organização escolar, e tais transformações, sem as adequações necessárias, parecem implicar processos de precarização do trabalho docente” (p.1140). Entre outras razões, isso acontece pela transferência de responsabilidades para as escolas e para os professores por parte dos governos municipais.

Assim, a experiência nessas instituições nos mostrou que, mais especificamente, a escola de educação infantil continua enfrentando problemas graves das mais diversas ordens, envolvendo o seu capital humano, a estrutura física, as relações verticalizadas entre professores e crianças, professores e gestores, que, segundo vimos, impedem ou limitam o desenvolvimento de uma prática docente emancipatória, que passa necessariamente pela constituição da profissionalidade docente.

Refletimos que a formação in loco, conforme afirma Oliveira-Formosinho (2005), consiste em uma prática contínua provocadora, desestabilizadora, que pode oportunizar ao professor a apropriação de saberes relevantes ao seu fazer docente e daqueles saberes mais relacionados ao brincar da criança pequena. Acreditamos que o conhecimento e a reflexão crítica podem possibilitar ao professor, na sua ação docente, e à instituição como um todo, o exercício de confrontos, sem o sentimento de culpa imposto pelo sistema.

Ressaltamos que o conhecimento e a vivência do e no brincar e da e na ludicidade podem suscitar, como disse Fortuna (2012) uma revolução na escola, que, ao aprender a brincar, também aprende a viver, reinventar uma realidade e, conforme Freire (2005), também a exercitar a insubmissão na luta pela qualidade na educação.