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3.1 O BRINCAR, A LUDICIDADE E A CRIANÇA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

3.1.2 O Brincar e a Ludicidade na Educação Infantil

3.1.2.3 O Jogo, o Brinquedo, a brincadeira e as Linguagens Lúdicas na Educação Infantil

Para Gouvea (2009), o brincar é o meio de a criança indagar-se acerca do mundo em que vive, mas ainda não conhece. É através da brincadeira que a criança não só passa a conhecer melhor a realidade, mas também desnaturaliza o mundo, quando o recria e explora a sua construção. A autora refere-se ao brinquedo como uma espécie de gramática que se constitui em uma maneira de transcrição do real, e nesse movimento a criança explora múltiplas possibilidades de imaginar e vivenciar outras realidades. Assim a ideia brincar não corresponde a uma mera reprodução da realidade, mas ressalta suas possibilidades de interpretação como um "[...] domínio da experiência humana irredutível a outros domínios" (p.29).

E dessa maneira a ludicidade "[...] compreende um constante movimento pendular entre a fantasia e a realidade, por meio do qual é possível aproximar sentimentos e objetos, que de outro modo seriam incompatíveis, concebendo-os de modo inteiramente original [...]" (FORTUNA, 2011, p. 42). Leontiev (1988) considera que "[...] não é a imaginação que cria a brincadeira, mas essa é acionada no ato do brincar, no diálogo com o real [...]" (p.29).

Kishimoto (2010) ressalta que as linguagens expressivas representam oportunidade para a ludicidade emergir, ao afirmar que a "[...] criança tem 'cem linguagens': o gesto, a palavra, o

desenho, a pintura, as construções tridimensionais, a imitação e a música, todas são linguagens, que oferecem oportunidades para a expressão lúdica” (p. 5). A brincadeira congrega múltiplas linguagens, inclusive as artísticas, integra as artes como linguagens, que expressam conhecimentos sociais e culturais e que possibilitam às crianças exercer todo o seu potencial de imaginação (MOURA, 2012).

Para Moura (Idem), a brincadeira pode ser compreendida como encontro de todas as artes: a música, a dança, o jogo dramático, as artes visuais. É uma manifestação singular, uma experiência criativa, que favorece a descoberta do eu e dos outros, através do recriar e do repensar sobre os acontecimentos naturais e sociais. É um processo de apropriação, ressignificação e reelaboração da cultura pela criança, e, como linguagem é uma forma de ação social, que produz uma cultura infantil e que é, ao mesmo tempo, produzida por uma cultura mais ampla, que se funde em uma coisa só.

Entretanto Moura (2012) aponta que na escola as crianças muitas vezes são instadas a fazer atividades isoladas e vivem um processo de fragmentação, com pouco espaço para a expressão, quando vivenciam atividades envolvendo a dança, a música, dentre outras. A autora ressalta que, para tal, a criança necessita de tempo e espaço na construção da realidade pelo exercício do jogo, que, conforme defende Vygotsky (1991), é a imaginação em ação. A imaginação junto com a razão constituem-se como "[...] mecanismo próprio de apreensão do mundo"[...], assevera Gouvea (2009, p.33), ressaltando a ludicidade como linguagem e meio de a criança experimentar emoções e construir suas experiências, que são sempre mediadas pela interação com adultos e, especialmente, com as crianças nos seus grupos de pares.

No tocante a música, Moura (2012) reflete que é uma linguagem sempre presente na vida das crianças, advinda de fontes distintas. Os acalantos, por exemplo, não são os únicos sons que fazem parte do ambiente sonoro do bebê. Como seres interativos e lúdicos, eles também percebem buzinas, sons de eletrodomésticos, sons da natureza, ou da fala de adultos e crianças. A autora (idem) considera que a escola pode ampliar oportunidades de exploração de diferentes fontes sonoras, de produção e de conhecimento de repertório musical. Dentre essas possibilidades, atividades envolvendo timbres, intensidades e alturas são elementos do universo da música fáceis de serem explorados pelas crianças e professores em diferentes instrumentos musicais, e que nesses movimentos as crianças criam outras possibilidades de expressividades, vivendo momentos de ludicidade.

Maffioletti (2001) reflete acerca do significado da expressividade na escola, e para ela as professoras não percebem que "[...] a imitação dos gestos contradiz o objetivo da criatividade. É uma ingenuidade pensar que estamos favorecendo a expressividade da criança,

quando nos oferecemos como modelo a ser imitado!" (p.124). Para nós, assemelha-se ao brincar dirigido, que contradiz a sua imprevisibilidade.

Moura (2012), aproximando-se de Fortuna (2011), afirma que a ludicidade seria “um pêndulo” que atribui à sensação do brincar "[...]. As crianças, como os artistas, não separam arte e vida, para elas a brincadeira representa um encontro da música, da dança, do jogo dramático, das artes visuais" (p.77).

As artes, como linguagens, são expressão de conhecimentos sociais e culturais que possibilitam às crianças exercer seu potencial imaginativo e criativo. Assim, as atividades artísticas conectam-se com sentimentos das crianças, dando forma à imaginação, quando nesses momentos brincam, formando uma unidade expressiva, pois, para elas, a arte e a vida são praticamente a mesma coisa.

Maffioletti (2001) ressalta que as professoras muitas vezes não sabem como agir diante de situações em que as crianças cantarolam, quando poderiam juntar-se a elas, e "[...] entrando no seu brinquedo, improvisando sobre o mesmo tema, procurando manter o mesmo tipo de melodia, como se buscássemos um acordo... Vale a pena tentar [...]” (p.128).

Assim, para Moura (2012), quando pensamos a arte vivenciada pela maioria das crianças nas instituições educativas, geralmente nos deparamos com um processo de fragmentação. "As linguagens na escola, até mesmo na educação infantil, passam a ser vistas e trabalhadas como atividades isoladas descontextualizadas e com pouco espaço de expressão das crianças" (p.77). Relacionando à brincadeira a música, no sentimento de prazer, fruição, criação, próprios da arte e também presentes na brincadeira em uma simbologia que remete a criança a tornar-se algo ou alguém diferente do que é, a autora corrobora as investigações de Gomes (2012) acerca da razão sensível que subjaz à experiência artístico-pedagógica, mas ainda não tem sido compreendida por professores de educação infantil.

Dessa maneira, a ação mediadora junto às crianças pequenas requer da professora saberes constitutivos da brincadeira, de forma a valorizar e estimular as possibilidades de vivências lúdicas com as crianças, entre estas, a linguagem musical.

No tocante à dança, Martins (2012) ressalta que a “[...] expressão corporal está integrada ao conceito de dança como uma resposta corporal a determinadas motivações” (p.30). Exemplifica, refletindo que na cantiga de roda a criança expressa uma linguagem "[...] que lhe permite agir sobre o meio físico e atuar sobre o ambiente humano, mobilizando-o por meio de seu teor expressivo, agregando uma organização temporal – espacial – energética "(p.2). O que mobiliza a criança na sua relação com o mundo.

Neste sentido, Huizinga (1980) acrescenta elementos a nossa compreensão acerca da dimensão lúdica na dança, quando reflete que tanto a poesia, a música, a dança, os contos, as histórias, enfim, as artes, quanto o próprio jogo possuem características de divertimento, adivinhação, competição, momentos de criação, e que, portanto, apresentam uma essência lúdica inerente ao homem, revelando-se a qualquer tempo: “Mas é sempre possível que a qualquer momento, mesmo nas civilizações mais desenvolvidas, o ‘instinto’ lúdico se reafirme em sua plenitude” (HUIZINGA, 1980, p.54).

Essas reflexões de Huizinga remetem ao que seria essa organização temporal, espacial e energética a que se refere Martins (2012), remetendo-nos, por sua vez, a Lima (2009), com sua afirmação de que a dança tem em si elementos da ludicidade, como a criação, a imaginação, a improvisação, a entrega, a fruição, sendo um momento de expressividade de interação e aprendizagem acerca do próprio corpo e da cultura.

Martins (2012) considera que na relação que a criança estabelece com o mundo o componente poético constitutivo das cantigas de roda, em sua simbologia, representa um estímulo à atividade mental. Observa que, tanto quanto a "[...] cantiga de roda, a dança, a música, a poesia e a dramatização têm caráter formativo no seu desenvolvimento, além de propiciarem a vivência da cultura lúdica" (p.34). Dessa maneira, além de acalantos, brincos, cantigas de roda, parlendas e brinquedos cantados, a autora afirma que podemos juntar a música popular brasileira ou estrangeira, de boa qualidade, à erudita e à experimental.

Moura (2012) também ressalta a ludicidade na relação estreita entre brincadeira e as artes como linguagens ou expressões de conhecimentos sociais e culturais, que possibilitam às crianças exercer todo o seu potencial de imaginação, e assim se fundem em uma coisa só.

Para Salles e Farias (2012), o brincar é uma das linguagens que se constitui social e culturalmente à medida que as crianças desenvolvem a sua capacidade simbólica:

O brincar é uma das formas privilegiadas de as crianças se expressarem, se relacionarem, descobrirem, explorarem, conhecerem e darem significado ao mundo, bem como de construírem sua própria subjetividade, constituindo-se como sujeitos humanos em determinada cultura (p.70).

As autoras refletem a sua perspectiva histórico-dialética nesse processo, quando afirmam que as crianças desenvolvem essa linguagem no momento em que transformam uma coisa em outra e se transformam, na tentativa de compreender o mundo, desenvolvendo dessa maneira a capacidade de ser mais, de ir além. "[...] Desse modo, o brincar tem um papel

fundamental no desenvolvimento da capacidade e abstração pela criança, bem como na expressão de seus desejos, sentimentos e tensões" (p.70).

Salles e Farias (idem) refletem ainda que os professores que desenvolvem uma postura lúdica compreendem o brincar como "[...] uma forma privilegiada de a criança ser e estar no mundo e reconhecem a importância de essa linguagem ser propiciada às crianças desde muito cedo de modo intencional na IEI com uma postura lúdica" (p.72). As autoras referem-se à instituição de educação infantil-IEI como espaço de a criança brincar.

A postura lúdica se expressa nos momentos em que os professores se envolvem nas brincadeiras, organizam seu trabalho a partir da compreensão do brincar na concepção histórico-dialética, que compreende o fenômeno como expressão da criança, que se materializa na imitação, nas brincadeiras de faz de conta, nas brincadeiras cantadas, na dança, nas cantigas que segundo Simionato e Spessatto (2011) consistem exercícios de imaginação "[...] enfim, vivenciam plenamente o brincar, mesclando as diversas linguagens" (SALLES e FARIAS, p.71).

Dessa maneira, a brincadeira favorece a interação, a construção da identidade e da alteridade, contribuindo para o aumento da autoestima, a construção da subjetividade, o conhecimento do mundo, das pessoas, dos sentimentos, etc. Como meio de expressão, pode congregar múltiplas linguagens, inclusive as artísticas. Assim, a linguagem da dança, da música, da poesia, das artes, em sua simbologia, é um canal de interlocução e construção da cultura lúdica da criança. A reflexão sobre essas linguagens na sua relação com a cultura lúdica nos impulsiona aos estudos culturais, para buscarmos outros elementos que a constituem, sobre os quais trataremos em seguida.