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3.3 O BRINCAR E A LUDICIDADE NO CONHECIMENTO BASE DOS SABERES DA

3.3.2 O Brincar e a Ludicidade: um saber compósito na educação infantil

Gosto dos rios. E gosto mais quando eles estão nas margens dos meninos, dos pássaros, das árvores, das pedras, das lesmas, dos ventos, do sol, dos sapos, das latas e de todas as coisas sem tarefas urgentes. Os rios são uma das fontes da minha poesia porque as garças passam posam neles com os olhos cheios de sol e de neblina. Manoel de Barros

A poesia de Barros tem nos guiado na construção dessa tese, porque nos provoca a abrirmo-nos para a realidade do brincar na educação infantil, o inusitado, seus paradoxos e, ao mesmo tempo, pensar no que tem sido a apropriação de saberes pelas professoras da educação infantil acerca do brincar e da ludicidade, enquanto saberes que se situam no âmbito de uma produção científica que discute o olhar a criança através da sensibilidade da própria criança,

que desnaturaliza a realidade e nos instabiliza em vista do que temos sido. Assim, questionamos a natureza de saberes que vêm sendo produzidos sobre a criança, o brincar, e de que maneira tem estado presente nas discussões nos processos formativos, a exemplo de Kishimoto (1999):

[...] Concordamos em que a criança brinca, mas os cursos de formação não incluem o brincar entre os objetos de estudo e, quando o fazem não ultrapassam concepções teóricas que são insuficientes para a construção de competências que possibilitam criar ambientes de aprendizagem em que o brincar seja estimulado (p. 108-109).

Kishimoto observa no final da década de 1990, o que vem perdurando até os dias de hoje, uma vez que o levantamento de pesquisas que abordam a temática dos saberes na educação infantil revela a escassez de estudos, tanto em um sentido mais geral, quanto no mais específico. Há muito que fazer nos espaços de formação dos professores, e especialmente o brincar ainda tem representado para os professores desafios que eles ainda não vêm conseguindo lidar no cotidiano de sua sala de aula.

Conforme vimos refletindo desde o levantamento do estado do conhecimento de nosso objeto de estudo, a questão dos saberes docentes na educação infantil se inscreve ainda de maneira incipiente no universo de pesquisas sobre a formação docente, em parte porque práticas pedagógicas na educação infantil traduzem hábitos que ainda estão muito próximos aos do ensino fundamental, com vistas a etapas posteriores de escolarização, e também pela complexidade que envolve o processo de reconhecimento do brincar e da dimensão lúdica, por parte do professor, de que consistem em saberes instituintes no exercício cotidiano de sua prática na sala de aula.

Retomamos Micarelo (2006) na sua reflexão de que esses saberes não encontram receptividade para circularem e se afirmarem nos contextos institucionais nos quais atuam e são gerados, entre outras causas, pela fragmentação do tempo e das relações interpessoais, que repercutem na construção de identidade profissional e afetam a constituição da profissionalidade docente na educação infantil. A autora traz para a discussão o que Kishimoto (2002, 2005), Freitas (2005), dentre outros, defendem, que é a especificidade da ação docente do professor da educação infantil.

Os estudos de Barbosa Júnior (2008) inscrevem o brincar como um saber relevante para professores e outros profissionais que atuam com a criança pequena com doença grave, reconhecendo que o brincar é também um saber relevante para o professor aproximar-se da criança em qualquer situação, o que também revela a multidimensionalidade do brincar e da

ludicidade. Também Oliveira (2006) ressaltam a importância de o professor apropriar-se de elementos lúdicos contidos nos livros para ensinar aos bebês, pela escuta, a conhecer e gostar da literatura infantil.

Aqui vemos a dimensão lúdica que se manifesta a partir de fontes diversas, pois, segundo Fortuna (2010), “[...] o patrimônio lúdico, para se realizar como brincadeira exige compartilhamento [...]" (p.114). A autora ainda (2011) ressalta que a construção do saber lúdico requer liberdade, autonomia, vivência, experiências integradas, atitude de reflexividade, envolvimento e nos remete a Micarelo (2006), quando ressalta o saber brincar, o saber narrar e o saber acolher como saberes para o professor de educação infantil. Dagnoni (2012) aponta para o predomínio de saberes experienciais, na rotina da creche que buscam uma prática lúdica, e Brandão (2011), que reconhece o brincar um saber plural a ser apropriado pelos professores na perspectiva da qualidade educação infantil.

Tozetto (2011) reflete sobre o fato de que a qualidade na educação infantil passa pela formação de profissionais mais preparados. Para ela, a legislação atual deixa claro que não é permitida a presença de sujeitos leigos e/ou despreparados para assumir salas de aula na educação infantil. Micarelo (2006) também ressalta que, apesar da legislação, há precariedades na quantidade e na qualidade da formação do professor, pela própria indefinição de papéis do profissional, que vem se constituindo no exercício da prática a partir de sua experiência com as crianças em condições precárias. A autora ressalta a necessidade da escuta dos professores.

Oliveira et al.,(2011) afirma que os saberes a serem construídos pelos professores requerem planejamento e experiências diversificadas, no sentido de que esses desenvolvam conhecimentos relevantes a sua profissão, quais sejam: o pensar crítico, a argumentação, a sensibilidade, a capacidade de tomar decisões e de trabalhar em equipe; o conhecimento necessário para que possam estabelecer uma relação lúdica e criativa especialmente em sua prática com as artes; relacionar os conceitos construídos na formação com a sua prática docente; fazer registros de sua prática, reconhecer o valor da diversidade cultural e ainda se auto-avaliar, ampliando a visão de criança e suas necessidades e peculiaridades, tanto da educação infantil, quanto de si próprio.

A esse respeito, Tozetto (2011) acrescenta que educar as crianças nas suas necessidades requer um professor que também utilize conhecimentos pedagógicos gerais, o que nos remete a Gauthier et al., (2006), na sua defesa de conhecimentos e saberes especializados, e Tardif (2002), na valorização dos saberes experienciais, construídos em um processo interativo, no qual os professores filtram, aderem, rechaçam ou constroem significados para os demais

saberes que constituem o processo de sua formação. Para Oliveira et al., (2011) esse modo de ver a questão revela a complexidade do processo de construção dos saberes e, por conseguinte, a importância das escolhas, modos de abordagem, de aproximação na formação continuada, no sentido de propiciar a integração dos diferentes saberes na prática.

Refletimos que a educação escolar é um processo que vem sendo, ao longo de sua história, produzido também pelo professor, cuja prática oscila entre o desejo de liberdade e autonomia e a serventia. Nesse sentido, acreditamos que o caminho da reflexão crítica é antes de tudo de desnudamento, da abertura a dúvida, do lançar-se ou ser provocado a instabilidades e incertezas, sem perder de vista a formação do ser humano, que implica reconhecer no corpo de saberes que constituem a formação docente também a importância de uma racionalidade que se constrói na experiência com o outro, em uma razão sensível (FORTUNA, 2011).

Para Santos e Cruz (2011), uma das maneiras de redimensionar os saberes em cursos de formação é integrar em sua base curricular a formação lúdica do professor. As autoras consideram ainda que a preocupação dos cursos de formação tem se concentrado em dois pilares: o teórico e o pedagógico. Assim, propõem a formação no lúdico como um terceiro pilar, ressaltando que a integração da formação lúdica nas licenciaturas pode permitir ao formando conhecer-se melhor, no sentido de possibilidades e limitações, para, quando necessário, superar bloqueios acerca do jogo, do brinquedo, na vida da criança e do adulto.

Santos e Cruz (2011) observam que o adulto que brinca não volta a ser criança, mas resgata a alegria do brincar e isto tem repercussão no seu trabalho docente, no sentido de buscar mais a ludicidade no trabalho pedagógico junto à criança. Ademais, defendem a presença do lúdico na sala de aula como meio de equilíbrio entre os outros dois pilares, o conteúdo e a forma de ensinar, por isso destacam a inserção da ludicidade na formação continuada. Consideram ainda que “introduzir atividades lúdicas como elemento dinamizador de uma proposta pedagógica requer, no mínimo, que este profissional tenha vivenciado a ludicidade em sua trajetória acadêmica” (p.61). Nesse sentido remete à homologia de processo formativo e de ensino defendida por Kishimoto (2002).

Considerando o que dizem os autores aqui referidos, o brincar se inscreve como saber acerca da educação infantil a partir da visão da criança, que brinca porque gosta, mas que, ao brincar, pode potencializar a compreensão de mundo de maneira a reinventar e subverter a ordem estabelecida. A criança é um ser lúdico, e é por esse viés que interage com seus pares e também com outros no ambiente escolar, o que requer professores mais preparados para adentrar o mundo da criança e lhe proporcionar experiências lúdicas que lhe permitam desenvolver-se integralmente.

Ainda Santos e Cruz (2011), ao ressaltarem a ludicidade como o terceiro eixo a ser inserido no currículo das licenciaturas, trazem para esta discussão o reconhecimento de elementos pertencentes a uma outra ordem: a das sensibilidades, da fruição, da criação, da subversão da ordem estabelecida.

O desafio que se impõe consiste em buscar meios que possibilitem valorizar o brincar e a dimensão lúdica como saberes do trabalho do professor nos contextos formativos, uma vez que aquilo que desenvolve na sala de aula, como refere Tardif (2011), assim como as suas inquietações, desafios, reflexões compartilhadas com os seus pares, atuações junto as crianças, descobertas, equívocos, requer ser conhecido e analisado por ele e por seus pares, legitimado cientificamente e constituir-se pela difusão e ressignificação de um saber da ação pedagógica, a ser considerado como conteúdo de formação (GAUTHIER et al., 2006).

Santos e Cruz (2011) consideram ainda que a discussão da ludicidade aponta caminhos para o ensino de maneira prazerosa, ajuda a desconstruir a ideia cartesiana de uma escola que defende a produção do conhecimento, no sentido de formar indivíduos cognitivamente preparados para ajustarem-se à ordem social, ditada por valores individualistas e competitivos, para instaurar ou instituir uma ideia de escola que busca uma ação pedagógica voltada à emancipação de sujeitos que desejam construir um mundo mais humano.

Assim, considerar o brincar e a ludicidade como um saber a ser apropriado pelo professor da educação infantil implica, necessariamente, considerar que este também é portador de um saber sobre o fenômeno construído historicamente, desde a sua infância, nas vivências lúdicas com outras crianças, o que indica a existência de um saber acerca do brincar e da ludicidade que se refaz a partir da experiência de infância e também como jovem ou adulto na sua formação inicial, que pode ser refletida ou não nos encontros diários que mantém junto às crianças na sala de aula, como um saber da tradição pedagógica.

O conhecimento do brincar nas suas bases teóricas e epistemológicas poderia abrir outras possibilidades na relação criança-professor, no sentido de chegar mais perto das crianças, potencializar o seu desenvolvimento integral, uma vez que, ao brincar, a criança desenvolve o seu repertório linguístico, a capacidade cognitiva, a motricidade, a noção de tempo, lugar, estabelece relacionamentos sociais, aprende a negociar, e compreende que no jogo nem sempre se pode ganhar, e que a realidade pode ser transformada.

Defendemos que o brincar e a ludicidade na educação infantil constituem-se para o professor e pelo professor, no reservatório de saberes tratado em Gauthier et al., (2006), um conteúdo dos e nos processos formativos da educação infantil a que os professores sejam instados a trazer a sua experiência com o brincar na escola e também como veem o seu papel

na brincadeira, para que possam constituir-se em conteúdo de reflexão e de conhecimento para os seus pares.

No tocante a contribuições ao nosso estudo, existe uma relação imbricada entre o sentido da profissionalidade docente e o reconhecimento dos saberes docentes mediados na formação do professor. Para esta afirmativa, recorremos inicialmente ao que diz Tardif (2002) sobre o fato de a formação contínua não se limitar a retomar conteúdos da formação inicial, buscando o modelo aplicacionista, mas busca estreitar vínculos com a profissão docente, tratar os professores não como alunos, mas como parceiros e atores de sua formação, distanciando-se da perspectiva dedutivista, que não concorre para ajudar os professores no desenvolvimento de sua profissionalidade.

Para o autor, o pensamento “[...] mais estimulante tem procurado delimitar os saberes profissionais a partir de um olhar sobre a especificidade da acção concreta dos professores” (p.28), o que necessariamente remete à noção de profissionalidade defendida por Contreras (2002) e Bourdoncle (1991).

Outrossim, valorizamos as reflexões de Gauthier et al., (2006) em sua afirmação de que se conhece pouco sobre os fenômenos que constituem o ensino, e que para se avançar nesse âmbito, é necessário considerar a existência de dois obstáculos que historicamente vêm se interpondo à pedagogia, sendo o primeiro a própria atividade docente que é exercida sem revelar os saberes que lhe são constitutivos, ou seja, o ensino compreendido como um ofício sem saberes. O segundo obstáculo é a ideia de saberes sem ofício, que se origina nas Ciências da Educação, que produzem conhecimentos distantes do que ocorre no magistério, o que nos remete a Pedrosa (2005), quando afirma que a ciência não consegue apreender competências que as crianças constroem e não são percebidas na escola.

Para Gauthier et al.,(2006), a formalização do ensino reduziu de tal modo a sua complexidade que influenciou a desprofissionalização da atividade docente, uma vez que os distancia de uma compreensão crítica de seu papel. Para os autores, a profissionalização docente requer a superação dos pressupostos “saberes sem ofício” e “ofício sem saberes” para uma ideia de “oficio com saberes”.

As questões formuladas pelo programa de Gauthier et al., (2006) possibilitam refletir que a formação continuada pode contribuir na apropriação do brincar como um saber da profissionalidade docente, uma vez que o brincar, conforme já dissemos, está presente na formação social e cultural do professor. Em contrapartida, um saber produzido nas ciências da educação, conhecimento disciplinar e conteúdo da formação, que também se faz presente

na vida do professor de educação infantil, cotidianamente, ainda não estabelece sínteses que lhe permitam potencializar a presença do lúdico na sala de aula.

Por fim, Ramos (2012) trabalhou saberes relevantes junto a professoras de berçário, em um curso que foi desenvolvido a partir de três conteúdos: imitação como um espaço de brincar, aprender e compartilhar significados; brincando e aprendendo com o outro; a constituição da linguagem no espaço da brincadeira (re)criando um ambiente para mexer, inventar e conviver brincando e aprendendo. A autora avalia como conteúdos relevantes do processo de construção de aprendizagens, não só da professora, mas também da formadora, assim como a construção de um sentimento de identidade docente que foi se inscrevendo no decorrer dos encontros junto aos professores, a partir das trocas interpessoais e atitudes colaborativas.

Prosseguimos, na trilha do brincar e da ludicidade na educação infantil, adentrando na discussão que buscou situar os diálogos empreendidos nas etapas anteriores, no âmbito da profissionalidade docente.

3.4 O LUGAR DO BRINCAR E DA LUDICIDADE NA PROFISSIONALIDADE