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* IV Hiperligações e Referências bibliográficas

VII. Por último, a intercepção telefónica só pode ser autorizada por despacho judicial fundamentado, o que representa a consagração do princípio da reserva do juiz, enquanto

1.2.1. Conhecimentos fortuitos

Os conhecimentos fortuitos são conhecimentos que se obtêm através de uma intercepção telefónica e que dizem respeito a uma pessoa não visada ou a factos não investigados no âmbito do processo de inquérito para o qual foi obtida autorização judicial para a realização da mencionada diligência.

Os aludidos conhecimentos não dizem respeito aos factos sobre os quais recai a investigação em causa, não integrando, por isso, o objecto do processo-crime em que surgem, porquanto o seu surgimento na conversação não é resultado de uma conexão factual dos acontecimentos mencionados nessa conversação com os conhecimentos investigados.

Assim, partindo-se do pressuposto que a intercepção telefónica foi validamente efectuada, cumprindo todos os pressupostos de admissibilidade constantes do artigo 187.º do CPP, a problemática da utilização dos supracitados conhecimentos fortuitos no âmbito de um outro 15 CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital – op. cit., p. 799.

16 CABRAL, José Santos – op. cit., p. 731.

17 Neste sentido, vide, entre outros, RODRIGUES, Benjamim Silva – Das Escutas Telefónicas, Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 228.

VALORAÇÃO DO CONHECIMENTO DE FACTOS, NÃO INVESTIGADOS NO PROCESSO, OBTIDOS NO ÂMBITO DE UMA INTERCEPÇÃO TELEFÓNICA

2. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

processo-crime, em curso ou a instaurar, situa-se no domínio da valoração da prova, dado que a produção válida da prova não implica, necessariamente, a admissibilidade da sua valoração. Os conhecimentos fortuitos (como são designados pela doutrina e pela jurisprudência) encontram-se previstos no artigo 187.º, n.º 7, do CPP, o qual dispõe do seguinte modo: Sem

prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.

Esta previsão legal expressa surgiu com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, onde o legislador concretizou os três requisitos cumulativos essenciais para que a gravação de conversações ou comunicações possa ser utilizada como meio de prova num outro processo criminal em curso ou a instaurar:

i) Tem de estar em causa um crime de catálogo, constante do elenco do n.º 1 do artigo 187.º do CPP;

ii) as gravações devem ser resultado da intercepção de meio de comunicação de uma das pessoas que, no processo onde a escuta se efectua, assume (ou seja susceptível de assumir) o papel de suspeito, arguido, intermediário ou vítima, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 187.º do CPP; e

iii) as gravações têm de ser indispensáveis para a prova do aludido crime do catálogo. Deste modo, consideramos que o legislador acabou por optar por um regime de admissibilidade condicionada.

Se o processo para o qual se visa transferir as gravações já se encontrar pendente, então as mesmas poderão constituir um meio de prova naquele. Contudo, as aludidas gravações podem também funcionar como notícia de crime, caso em que darão origem à abertura de inquérito, nos termos do disposto no artigo 248.º do CPP, por remissão do artigo 187.º, n.º 7, do mesmo diploma legal.

1.2.1.1. Pressupostos de valoração

Aprofundemos, agora, os requisitos cumulativos da utilização da gravação de conversações ou comunicações num outro processo-crime e as consequências decorrentes da inobservância da verificação cumulativa dos requisitos constantes no artigo 187.º, n.º 7, do CPP.

a) Crime do catálogo

Se os conhecimentos fortuitos respeitarem a crimes fora do catálogo previsto no artigo 187.º, n.º 1, do CPP, a gravação de conversações nunca poderá valer como notícia de crime, uma vez que a intercepção telefónica não é admissível para esse tipo de crimes.18

18 Neste sentido, entre outros, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/10/2007, Relator João Carrola, disponível em http://ww.dgsi.pt.

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Do mesmo modo, caso se reporte a factos que estão a ser investigados num processo já em curso, tal meio de prova não pode ser utilizado nesses autos, nem a prova dele decorrente poderá ser valorada, existindo uma verdadeira proibição de valoração da prova (artigo 126.º, n.º 3, do CPP).

b) Delimitação subjectiva

Um dos problemas resultantes dos conhecimentos fortuitos diz respeito à incriminação de terceiro. Ou seja, quando uma pessoa que não é o alvo da escuta previamente autorizada, nem comparticipante da pessoa investigada, é incriminado pelas conversas em causa.

De facto, conforme refere ANTÓNIO BRITO NEVES, “não dispondo a lei que os conhecimentos fortuitos não podem ser valorados como meio de prova quando respeitarem a terceiros, a interpretação a contrario parece, aqui, legítima”.19

Porém, se nas conversações que resultaram da intercepção telefónica não tenham intervindo as pessoas referidas no n.º 4 do artigo 187.º do CPP, dispõe o artigo 188.º, n.º 6, do mesmo diploma legal, que o juiz deve determinar a destruição imediata daquela gravação de conversações ou comunicações, caso sejam estranhos ao processo.

Relativamente a esta problemática e à articulação do artigo 187.º, n.º 7, 248.º e 188.º, n.º 6, alínea a), todos do CPP, várias interpretações têm sido defendidas. Vejamos.

i) Como primeira hipótese, GERMANO MARQUES DA SILVA20 defende que o critério passa apenas pelo meio de comunicação utilizado pela pessoa escutada, pelo que bastaria que tal meio fosse o objecto do despacho de autorização judicial. Para este autor, a identidade do escutado não teria qualquer relevância, a não ser aquando da autorização da intercepção telefónica, momento em que o juiz procede à verificação do pressuposto constante do artigo 187.º, n.º 4, do CPP.

Desta forma, a identidade da pessoa escutada só seria relevante para aferir a validade da escuta telefónica, ou seja, no primeiro momento da aplicação do artigo 187.º, n.º 1, do CPP, mas já não no segundo momento previsto no artigo 187.º, n.º 7, do CPP.

ii) A segunda interpretação prende-se com a identidade do escutado estar relacionada com o crime investigado. Dito por outras palavras, a pessoa escutada deve integrar o elenco do artigo 187.º, n.º 4, do CPP, relativamente ao crime primeiramente investigado.

Segundo esta interpretação, os conhecimentos fortuitos podem ser sempre valorados, independentemente de dizerem ou não respeito a um terceiro, desde que tiverem sido obtidos pelo meio de comunicação interceptado utilizado por uma das pessoas elencadas no referido preceito legal, relativamente ao crime do catálogo originário da investigação.

19 NEVES, António Brito – “Da Utilização dos Conhecimentos Fortuitos Obtidos Através de Escutas Telefónicas”, in

Terra de Lei, Associação de Juristas de Pampilhosa da Serra, ano 1, n.º 2, p. 76.

20 SILVA, Germano Marques da – Curso de Processo Penal II, 4.ª ed. Lisboa: Verbo, 2008, pp. 250-251 e 256.

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Deste modo, de acordo com esta interpretação, se o conhecimento for obtido através de terceiros, na medida em que o meio de comunicação sob escuta foi utilizado por pessoa não constante do elenco, então o juiz deve ordenar a sua destruição imediata, ao abrigo do artigo 188.º, n.º 6, do CPP, não podendo aquela gravação de conversa ser valorada como meio de prova.

No entanto, atendendo à ressalva efectuada no supracitado artigo – sem prejuízo do disposto

no n.º 7 do artigo anterior – há autores21 que entendem que, apesar da gravação da conversa

não poder valer como meio de prova, se as restantes exigências do artigo 187.º, n.º 7, do CPP, estiverem preenchidas, os conhecimentos fortuitos poderão valer como pista de investigação, para efeitos de notícia de crime.

Neste âmbito, surge também uma posição mais restritiva, segundo a qual só poderiam ser valorados os conhecimentos fortuitos se o escutado for pessoa designada no despacho de autorização. Não perfilhamos tal posição, uma vez que, da interpretação literal da norma não resulta que o legislador tenha optado por aquele mencionado entendimento, uma vez que apenas exige que o meio de comunicação interceptado seja utilizado por pessoa referida no n.º 4 do artigo 187.º do CPP, e não que essa pessoa tenha sido nomeada no despacho de autorização judicial.22

iii) Por fim, surge o critério da identidade do escutado em relação ao crime objecto dos conhecimentos fortuitos23. Segundo este entendimento, o escutado deve ser uma das pessoas

elencadas no artigo 187.º, n.º 4, do CPP, relativamente ao crime objecto dos conhecimentos fortuitos, e não em relação ao crime primeiramente investigado, como defende a segunda interpretação apresentada supra.24

Assim, de acordo com esta interpretação, a qual corroboramos, uma vez descoberto um crime fortuitamente, importa verificar se a pessoa escutada é uma das pessoas constantes do elenco do artigo 187.º, n.º 4, do CPP, em relação ao crime objecto dos conhecimentos fortuitos, caso em que a gravação da conversa poderá ser valorada como meio de prova no âmbito de outro processo criminal, mesmo que a pessoa agora escutada não tenha sido nomeada no despacho de autorização.

Destarte, este entendimento, além de, na nossa opinião, encontrar enquadramento legal, é aquele que permite um maior aproveitamento prático dos conhecimentos fortuitos de crimes, conforme o legislador pretendeu ao introduzir o artigo 187.º, n.º 7, do CPP, com a Lei n.º 48/2007, de 29-08, não obstante assegurar o respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade sujacentes à restrição de direitos, liberdades e garantias.

De igual modo, tal interpretação é consentânea com o “paradigma normativo hoje consensual e pacífico”, segundo o qual “os conhecimentos obtidos através de escutas [...] só podem ser 21 Conforme mencionado em NEVES, António Brito, op. cit., pp. 77-78.

22 No mesmo sentido, vide ibidem, p. 78. 23 Ibidem, pp. 78-81.

24 Tal entendimento foi seguido, entre outros, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/02/2012, Relator Souto de Moura e pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/05/2013, Relator Alves Duarte.

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utilizados e valorados no contexto de outro processo penal se este justificasse, só por si, [...] o recurso às escutas telefónicas”.25

Em suma, defendemos, fazendo apelo a ANTÓNIO NEVES BRITO, que se a pessoa escutada for visada no despacho de autorização judicial, a gravação da conversa não pode ser valorada como meio de prova, já que o escutado não é nenhuma das pessoas elencadas no artigo 187.º, n.º 4, do CPP, relativamente ao crime objecto dos conhecimentos fortuitos. No entanto, atendendo a que é pessoa constante do elenco no que diz respeito ao crime investigado, motivo pelo qual foi indicado como alvo no despacho de autorização, a gravação da conversa poderá valer como notícia de crime, nos termos do disposto no artigo 248.º do CPP.

De facto, parece-nos que o legislador assim determinou, ao ressalvar a aplicação do artigo 248.º do CPP, na própria previsão do artigo 187.º, n.º 7, do CPP, a qual se refere à utilização da gravação de conversações num outro processo criminal enquanto meio de prova.

Por outro lado, se a pessoa escutada não estiver abrangida pelo despacho de autorização judicial, nem couber no elenco do artigo 187.º, n.º 4, do CPP, a gravação das conversações das quais resulta a incriminação de terceiros, não pode nem ser valorada como meio de prova, nem valer como notícia de crime, devendo, nesse caso, ser imediatamente destruída, ao abrigo do disposto no artigo 188.º, n.º 6, alínea a), do CPP.

c) Indispensabilidade investigatória

A expressão utilizada na lei no segundo requisito – na medida em que for indispensável – remete para o princípio da necessidade e proporcionalidade a que alude o n.º 1 do artigo 187.º do CPP, devendo existir o “estado de necessidade investigatório que o legislador representou como fundamento de legitimação excepcional das escutas telefónicas”.26

Deste modo, o juiz deve repetir as exigências efectuadas aquando do despacho de autorização inicial, considerando que este pressuposto se encontra preenchido quando conclua que sem a utilização das escutas não se chegaria à prova dos factos e/ou à identidade dos seus agentes.27

Assim, se por um lado a motivação da decisão deve revelar as razões da indispensabilidade da utilização das escutas, ou a grande dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de obter a prova por outro meio, por outro lado, não se exige que a fundamentação seja tão completa que traduza a certeza do juiz de que o suspeito cometeu efectivamente os crimes em causa.28

d) Breve síntese

Em suma, para que os conhecimentos fortuitos possam ser valorados no âmbito de outro processo-crime, a pessoa escutada deve ser uma das pessoas elencadas no artigo 187.º, n.º 4, do CPP, em relação ao crime objecto dos conhecimentos fortuitos, devendo este ser um crime 25 ANDRADE, Costa – Bruscamente no Verão Passado. A reforma do Código de Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 173.

26 ANDRADE, Costa – Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 310. 27 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/02/2012, Relator Souto de Moura.

28 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12/04/2011, Relator Edgar Valente.

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do catálogo, constante do elenco do artigo 187.º, n.º 1, do CPP29, e as gravações resultantes

das escutas telefónicas revelarem-se indispensáveis, nos mesmos termos estatuídos para a autorização da realização da intercepção telefónica, em conformidade com o artigo 187.º, n.º 1, do CPP.

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