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Conhecimentos tradicionais e conhecimento científico

2.2 Definições e conceitos sobre os conhecimentos tradicionais

2.2.1 Conhecimentos tradicionais e conhecimento científico

Uma discussão que envolve a definição sobre o que seriam conhecimentos tradicionais é aquela que os relaciona com o conhecimento científico. Uma vez que se percebe que os conhecimentos tradicionais também possuem um caráter técnico e não apenas aqueles de natureza prática, caracterizar esse conhecimento epistemologicamente216 tem sua razão de ser e produz consequências importantes no debate que se coloca como pano de fundo à

215 OMPI. Reseña n. 1. Conocimientos tradicionales y propiedad intelectual. p. 41. 216 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

discussão dos conhecimentos tradicionais. A relação entre o conhecimento científico e o conhecimento tradicional é envolvida de uma discussão ideológica, mas também uma discussão de ordem técnica e conceitual. A discussão ideológica está relacionada a um jogo de poder, principalmente para se saber qual dos conhecimentos teria mais autoridade217. Afinal, “a história das ciências é um tecido de juízos implícitos sobre o valor dos pensamentos e das descobertas científica. O papel da epistemologia é de explicitá-los”.218

Ao envolver aspectos relacionados à repartição dos benefícios a partir dos resultados, por exemplo, não seria de se estranhar a descrença no conhecimento tradicional por profissionais da área da farmacologia e da biologia sintética. Por envolver questões sociais, econômicas e culturais muito mais profundas, principalmente tendo como pano de fundo conflitos entre países do “norte” e países do “sul” frente ao processo de globalização219

(inclusive no seu aspecto cultural220) em que vivemos, essa briga ideológica tem muito espaço para acontecer.221

Envolta nessa discussão de ordem ideológica, temos uma discussão de ordem técnica e conceitual. Afinal, um dos conceitos mais divergentes que tivemos na história moderna foi o de Ciência. O filósofo da ciência Hilton Japiassu, precursor dos estudos da

217 “O papel singular que os povos e comunidades indígenas e camponesas têm desempenhado na sua

preservação é hoje reconhecido com suspeita unanimidade. Aliás, o papel do conhecimento destes povos ‘inferiores’ não se limita à conservação da diversidade biológica da terra. Para além disso, é hoje aceite estar na base de muitos dos nossos alimentos e medicamentos. Trata-se, pois, de conhecimento importante pelo passado que nos legou e pela utilidade que tem hoje. Mas, como mostro a seguir, nada disto tem servido para mudar o paradigma das relações entre conhecimentos ou entre povos. Pelo contrário, o ‘novo’ reconhecimento do Outro transforma-se em mais uma versão do ‘velho’ processo colonial de o transformar em recurso a ser explorado.” SANTOS, Boaventura de Souza. Gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. p. 302.

218 JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico. 7. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1992. p. 12.

219

Segundo Boaventura de Souza Santos, “[...]a globalização é a expressão de uma hierarquia entre o centro e a periferia do sistema mundial num contexto em que a invisibilidade das colónias entregues “à guarda” do centro deu lugar à proliferação de actores estatais e não-estatais, constituídos no âmbito das relações desiguais entre o centro e a periferia, entre o Norte global e o Sul global, entre incluídos e excluídos.” SANTOS, Boaventura de Souza. Gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. p. 144.

220 Sobre a globalização cultural, Boaventura de Sousa Santos aspectos relevantes: “A globalização cultural

assumiu um relevo especial com a chamada ‘viragem cultural’ da década de oitenta, ou seja, com a mudança de ênfase, nas ciências sociais, dos fenômenos sócio-económicos para os fenómenos culturais. A ‘viragem cultural’ veio reacender a questão da primazia causal na explicação da vida social e, com ela, a questão do impacto da globalização cultural. A questão consiste em saber se as dimensões normativa e cultural do processo de globalização desempenham um papel primário ou secundário. (2005, p. 44)

221

Sobre a autoridade do conhecimento e a punição dos pensadores, Hilton Japiassu assim escreve “...Galileu teve que pagar um preço elevado por sua ousadia em desafiar a prepotência do saber oficial, escudado na força da Tradição e na ‘violência’ das Autoridades. Assim como Sócrates foi condenado por corromper a juventude de seu tempo, que Galileu teria que ser condenado, pois ninguém mais do que ele semeou ou ‘terrorismo intelectual’ e a ‘corrupção da Inteligência’. Prometeu já havia sido condenado por ter ousado roubar o fogo divino. Não estava Galileu tentando roubar o fogo da sabedoria divina sobre o mundo? Os guardiães patenteados dessa sabedoria não poderiam tolerar essa subversão” (JAPIASSU, 1982, p. 26-27)

interdisciplinaridade no Brasil222 e que ao lado de Georges Gusdorf223, precursor da interdisciplinaridade no mundo e um dos maiores estudiosos da temática, auxilia-nos nessa preocupação conceitual do conhecimento.

Os conhecimentos tradicionais muitas vezes são chamados de saberes tradicionais. O termo “saber”, atualmente, apresenta um sentido mais amplo que o de “ciência”. Para Hilton Japiassu,

a) É considerado saber, hoje em dia, todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino;

b) Por ciência, no sentido atual do termo, deve ser considerado o conjunto das aquisições intelectuais, de um lado, das matemáticas, do outro, das disciplinas do lado natural e empírico, fazendo ou não uso das matemáticas, mas tendendo mais ou menos à matematização.224

Deve-se ter em mente também o chamado pré-saber, presente antes do saber e antes mesmo da uma disciplina científica. “Todo saber humano relaciona-se a um pré-saber”. Esses pré-saberes ou pré-noções estão presentes na cultura, são representações esquemáticas, frutos das práticas e vistas como primeiras opiniões.225

Claude Lévi-Strauss, em “Pensamento Selvagem”226, estudou, através de fontes de etnógrafos, as características do pensamento de indivíduos pertencentes a sociedades de tecnologia simples227. Ele chama esse tipo de pensamento de ciência do concreto e, no livro, descreve a predisposição que as comunidades tradicionais possuem na busca de conhecimento no habitat em que vivem. Vai mais longe. Além de demonstrar uma série de argumentos tendenciosos e equivocadossobre o pensamento de grupos de tecnologia mais simples, Lévi- Strauss traz uma comparação com o pensamento científico.

Uma das falácias que, através de exemplos etnográficos, Lévi-Strauss demonstra estar equivocada é aquela que afirma que os indígenas só conceituam conhecimentos que lhes são úteis. Ao analisar diversas situações etnográficas dos “selvagens”, prescreve: “De tais exemplos, que se poderiam tirar de todas as regiões do mundo, concluir-se-ia, de bom grado, que as espécies animais e vegetais não são conhecidas na medida em que sejam úteis; elas são classificadas úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas.”228

222 JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

223 GUSDORF, Georges. Reflexões sobre a interdisciplinaridade. Revista Convivium, 01-85. p. 19-50, 1985. 224

JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico... p. 15-16.

225

JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico...

226 LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1976.

227 RODRIGUES JÚNIOR, Edson Beas. Tutela jurídica dos recursos da biodiversidade, dos conhecimentos

tradicionais e do folclore: uma abordagem do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 39.

Outra afirmação que comumente era atribuída aos indígenas de forma indevida seria a utilização por eles de termos menos abstratos, o que serviria para mostrar uma ideia de baixa capacidade intelectual. Lévi-Strauss também mostra através de exemplos etnográficos não ser verdadeira essa ilação:

Os produtos naturais, utilizados pelos povos siberianos para fins medicinais, ilustram, por sua definição precisa e pelo valor específico que lhes é dado, o cuidado, a inventiva, a atenção à minucia, a preocupação das distinções que deve ter empregado os observadores e teóricos, nas sociedades desse tipo;229

O aspecto mais importante para esse trabalho é a comparação que Lévi-Strauss faz entre o conhecimento tradicional, a chamada ciência do concreto, e o pensamento científico. Para o antropólogo, o pensamento dos povos de tecnologia simples é objetivo, lógico e racional, como se percebe na afirmação abaixo:

Para transformar uma erva silvestre em planta cultivada, um animal selvagem em doméstico, para fazer aparecer, num ou noutro, propriedades alimentícias ou tecnológicas que, na origem, estavam completamente ausentes, ou mal podiam ser suspeitadas; para fazer de uma argila instável, pronta a esboroar-se, a pulverizar-se ou a rachar-se, uma louça sólida e estanque (mas somente com a condição de haver determinado, entre uma multidão de matérias orgânicas e inorgânicas, a mais própria para servir de detergente, assim como o combustível conveniente, a temperatura e o tempo de cozimento, o grau de oxidação eficaz); para elaborar as técnicas, muitas vezes longas e complexas, que permitissem cultivar sem terra, ou então sem água, transformar grãos ou raízes tóxicas em alimentos, ou então, ainda, utilizar essa toxidade para a caça, a guerra, o ritual, foi preciso, não duvidamos, uma atitude de espírito verdadeiramente científica, uma curiosidade assídua e sempre desperta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, porque uma pequena fração apenas das observações e das experiências (às quais é preciso supor que tenham sido inspiradas, então, e sobretudo, pelo gosto de saber) poderiam dar resultados práticos e imediatamente utilizáveis.230

A ciência do concreto e o conhecimento científico, segundo Lévi-Strauss, são muito semelhantes no que diz respeito às operações mentais e ambas trouxeram inovações importantes. Suas diferenças estão em outros níveis. Enquanto o conhecimento mítico, tradicional, se caracteriza por postular um determinismo global e integral, o conhecimento científico não atua dessa forma. O conhecimento científico seria conceitual, enquanto a ciência do concreto utilizaria percepções: “Esta ciência do concreto devia ser, essencialmente, limitada a outros resultados que os prometidos às ciências exatas e naturais, mas não foi menos científica e seus resultados não foram menos reais.”231

Manuela Carneiro da Cunha tem uma visão diferente da mostrada por Lévi-Strauss. A antropóloga mostra que conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos são

229

LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem... p. 28.

230 LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem... p. 35. 231 LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem... p. 37.

diferentes e possuem fortes diferenças que vão além dos resultados que esses conhecimentos oferecem. As diferenças seriam, portanto, bem mais profundas. Mas as diferenças não impedem de se criar pontes232 entre esses conhecimentos.233

Ao comparar que os conhecimentos tradicionais estão para o conhecimento científico assim como as religiões locais estão para as religiões universais, Manuela Carneiro da Cunha mostra que a universalidade do conhecimento científico não se aplica aos conhecimentos tradicionais. Se o conhecimento científico, segundo ela, firma-se como conhecimento absoluto até que outro paradigma o supere, como demonstrado por Thomas Kuhn, no caso dos conhecimentos tradicionais isso não se aplica. Essa universalidade seria mais “tolerante” no caso dos conhecimentos tradicionais, pois se aceitam explicações divergentes com validade apenas local. A frase apresentada por Manuela Carneiro da Cunha refletiria bem essa ideia: “Pode ser que, na sua terra, as pedras não tenham vida. Aqui elas crescem e estão portanto vivas”.234

Manuela Carneiro da Cunha ainda questiona o fato de termos uma pluralidade de regimes para os conhecimentos tradicionais e apenas um único regime para a ciência. Alega que por chamarmos de conhecimento científico, no singular, e conhecimentos tradicionais, no plural, já demonstraria essa diversidade de regimes de conhecimentos tradicionais. Filósofos da ciência, como Hilton Japiassu, porém, tem uma visão oposta a essa colocada por Manuela Carneiro da Cunha. Para ele, a ciência (em geral) não existe, existem apenas “práticas científicas diferentes e desigualmente desenvolvidas”. Aliás, segundo o epistemólogo, um discurso que desconsidere a pluralidade e as disparidades das práticas científicas diversas deve ser visto como um discurso de cunho idealista.

O autor vai além:

Ora, falar de a ciência em geral, como de uma entidade que poderia ser tomada por objeto, não é fazer uso de um conceito científico (unidade de significação de um discurso científico) nem tampouco de uma categoria epistemológica (unidade de significação num discurso epistemológico), mas de uma noção ideológica (unidade de significação num discurso ideológico) ou de uma noção filosófica idealista.235

Manuela Carneiro da Cunha faz ainda críticas mais genéricas ao conhecimento tradicional:

232

Segundo May Waddington, essa noção de pontes entre esses conhecimentos já havia sido tratada por Darrel Posey.

233 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas... p. 303. 234

CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas... p. 301.

235 JAPIASSU, Hilton. Nascimento e morte das ciências humanas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,

Em cada sociedade, inclusive na nossa, contemporânea, o que vem a ser de início de conversa, “conhecimento” ou “saber”? Em que campo se enquadram? Quais são suas subespécies, seus ramos, suas especialidades? E como se produz? A quem é atribuído? Como é validado? Como circula? Como se transmite? Que direitos ou deveres gera? Todas essas dimensões separam já de saída o conhecimento tradicional e o conhecimento científico. Nada ou quase nada ocorre no primeiro da mesma forma em que ocorre no segundo.236

Apesar de afirmar na citação acima que “nada ou quase nada ocorre no primeiro da mesma forma em que ocorre no segundo”, Manuela Carneiro da Cunha não demonstra ou cita exemplos mostrando essas diferenciações. Sobre as perguntas sobre o que é “conhecimento” ou “saber” em cada sociedade, a antropóloga parece desconhecer a ampla bibliografia sobre epistemologia que se propõe a responder esses questionamentos com uma precisão conceitual. Mais uma vez, não se consegue chegar às conclusões da antropóloga segundo sua linha de explicação, pois não trouxe argumentos robustos, menos ainda demonstrações de ordem etnográfica, negligenciando até questões mais simples que são tratadas com profundidade por especialistas na filosofia da ciência. Apesar de não encontrarmos respaldo nessas diferenças profundas entre conhecimento tradicional e conhecimento científico propostas por Manuela Carneiro da Cunha, é interessante a necessidade que ela mostra em construirmos pontes entre o conhecimento científico e o conhecimento tradicional. E essa justificativa é feita por ela apresentando dados e depoimentos. Uma dessas pontes seria o que as ciências tradicionais podem aportar à ciência.

Apesar das críticas feitas por farmacólogos aos conhecimentos tradicionais, negando qualquer vantagem ou aceleração às pesquisas de produtos naturais ligados a conhecimentos tradicionais, chegando mesmo a afirmarem em nada contribuem para o progresso da Ciência, Manuela Carneiro da Cunha afirma categoricamente a importâncias desses conhecimentos.

Se compararmos agora a frequência de acertos de atividade biológica em produtos naturais conhecidos e usados pelos saberes tradicionais com a de produtos naturais em geral, chega-se ao resultado seguinte: é várias centenas de vezes mais provável chegarmos a resultados positivos com os primeiros do que com estes últimos.237

Citando a postura de Elaine Elisabetsky, a antropóloga mostra que um caminho relevante é o reconhecimento das práticas de ciências tradicionais como fonte de inovação da ciência ocidental. A ideia de Manuela Carneiro da Cunha é de proporcionar uma convivência entre esses dois tipos de saberes, cada um com o seu valor, sem necessariamente significar fundi-los. E propõe isso através do preenchimento de uma tríplice condição:

236 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas... p. 303. 237 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas... p. 304.

[...] reconhecer e valorizar as contribuições dos saberes tradicionais para o conhecimento científico; fazer participar as populações que as originaram nos seus benefícios; mas sobretudo, e essa é a mais complexa, preservar a vitalidade da produção do conhecimento tradicional.238

Se já mostramos algumas definições e características dos conhecimentos tradicionais, além de suas diferenças com o conhecimento científico, é relevante que analisemos alguns instrumentos internacionais relevantes para entendermos como os conhecimentos tradicionais são tratados internacionalmente. É o que veremos a seguir.

2.2.2 Conceito e características dos conhecimentos tradicionais nos instrumentos