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2.1 Cultura e individuo nas visões antropológica e jurídica

2.1.2 Visão jurídica da cultura

2.1.2.1 Direito fundamental à cultura

Vasco Pereira da Silva160 propõe uma atualização na abordagem sobre as gerações de direitos fundamentais161. Sua crítica está direcionada ao fato dos direitos fundamentais serem

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HÄBERLE, Peter. La constituición como cultura… p. 194.

156 HÄBERLE, Peter. La constituición como cultura…

157 Para Peter Häberle, feriados, hinos e bandeiras nacionais são elementos de identidade cultural do Estado

Constitucional. HÄBERLE, Peter. Constituição e Cultura: o Direito ao Feriado como Elemento e Identidade Cultural do Estado Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

158 Häberle valoriza Hermann Heller e a sua teoria do Estado com teoria da cultura. Se atualmente se trabalha o

termo cultura de diversas formas, muito antes H. Heller já tratava do tema de forma precisa. (HÄBERLE, Peter. La constituición como cultura…) Segundo Hermann Heller: “Entretanto, se quisermos evitar muitos erros da Teoria do Estado e da Ciência do Direito atuais, temos que conceber o homem e as suas formas de consciência com incluídas também, de modo permanente, no curso da história, embora tenha que aceitar-se com ponto de partida uma igualdade formal de predisposições no gênero humano.” (HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 57)

159 HÄBERLE, Peter. La constituición como cultura…

considerados pela doutrina ou direitos que necessitam de proteção negativa ou direitos que necessitam de uma prestação positiva. A crítica do professor português é que, segundo ele, todos os direitos fundamentais necessitam simultaneamente de abstenção e também de prestação do estado. Ou seja, independente da geração a que pertença, o direito fundamental sempre terá uma vertente negativa, obrigando que entidades públicas se abstenham de gerar lesões ao direito fundamental em questão, mas ao mesmo tempo, esses direitos necessitam de uma prestação dos poderes públicos para se efetivarem com maior firmeza. E mais, essa abstenção e essa prestação valem tanto para os órgãos públicos como para destinatários privados.

Afirma o professor português que se a vertente que obriga a prestação para a efetivação dos direitos fundamentais é presente na segunda e na terceira geração, há atualmente a necessidade dessa mesma postura positiva e de colaboração do Estado em relação aos direitos de primeira geração:

Daí que, do ponto de vista da sua estrutura jurídica, todos os direitos fundamentais sejam idênticos, já que, todos eles apresentam uma vertente negativa, implicando um direito de defesa contra agressões públicas, em simultâneo com uma vertente positiva, que obriga à actuação dos poderes públicos para a sua realização (que tanto podem corresponder a direitos subjectivos dos particulares como a tarefas de natureza objectiva). De resto, é curioso verificar como cada uma das gerações de direitos fundamentais, não apenas fez crescer o catálogo dos direitos com contribuiu também para o enriquecimento da respectiva estrutura jurídica – pois, a primeira geração colocou a tónica na dimensão negativa dos direitos, a segunda geração na sua dimensão positiva de carácter prestador, e a terceira geração na sua dimensão positiva de carácter participativo ou de colaboração.162

Vasco Pereira da Silva163, ao analisar a evolução histórica do direito fundamental à cultura, mostra que esse direito sofreu mudanças com o tempo, influenciado pelas transformações sofridas por diversos direitos e pelas sucessivas gerações de direitos fundamentais. Segundo o autor, o direito fundamental à cultura surgiu com a primeira geração de direitos fundamentais, como uma liberdade frente a possíveis imposições estatais, podendo ser construído inclusive a partir da liberdade de pensamento. Na segunda geração, ele é entendido como um direito prestacional, integrando os chamados direitos econômicos, sociais

161 Ingo Wolgang Sarlet apresenta críticas de diferentes autores sobre a classificação dos direitos fundamentais

conforme critério histórico que os divide em gerações (ou dimensões). De acordo com esse autor, por mais que se concorde com parte das críticas, o mais pertinente é a adoção de postura responsável pelo poder público e pelos particulares para a efetivação dos direitos fundamentais de todas as dimensões. SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geal dos direitos fundamentais na perspectiva

constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 52-58.

162 SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura... p. 35-36. 163 SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura...

e culturais. E na terceira geração toma a forma de um direito de participação164. Essa evolução mostra por um lado uma visão de um direito incompleto, como se estivesse sempre aquém de seu tempo, usando a expressão de Vasco Pereira da Silva165, mas evidencia também um direito que não ficou parado no tempo, assimilando elementos novos166.

Esclarecida essa questão sobre concepção doutrinária relacionada ao direito e à cultura, abordaremos alguns tratados internacionais que envolvem o tema. No plano internacional, o direito à cultura encontra guarida nas principais fontes de Direito Internacional Público, quais sejam, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, o Pacto Internacional sobre dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também de 1966.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, no artigo 27, protege o direito à cultura, tanto ao se referir aos direitos de criação e fruição cultural, quanto ao proteger o direito do autor. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos considera o direito à cultura num sentido mais amplo, integrando o indivíduo a diferentes grupos sociais, como se percebe da leitura do seu artigo 27. E o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais protege o direito à cultura em diferentes vertentes, tanto como liberdade, prestação, participação ou mesmo como direito do autor, como se verifica da leitura do seu artigo 15.

No âmbito europeu, manter a heterogeneidade e a diversidade na configuração da Europa, como é estabelecido pelo Tratado da União Europeia, é um indicativo da presença do direito à cultura. Esse mesmo Tratado inspira-se no patrimônio cultural da Europa e afirma, nos artigos 2º e 3º, que o respeito ao homem é um dos valores comuns dos seus Estados- membros e que a sociedade europeia se pauta pelo “pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, nos seus artigos 9º e 10º já respeitava implicitamente o direito à cultura, ao reconhecer a liberdade de pensamento e liberdade de

164 SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura... p. 36-37. 165 SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura...

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De acordo com Vasco Pereira da Silva, a Constituição Portuguesa de 1826 foi a primeira Carta Constitucional de Portugal a consagrar de forma expressa o direito fundamental à cultura. No seu artigo 145, §24 e §32, estabelece a propriedade das descobertas para os seus inventores e o a garantir do ensino de Ciências, Belas Artes e Letras: “Art. 145. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Portugueses, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Reino, pela maneira seguinte: § 24° - Os Inventores terão a propriedade de suas descobertas, ou das suas produções. A Lei assegurará um Privilégio exclusivo temporário, ou lhes remunerará em ressarcimento da perda que hajam de sofrer pela vulgarização. § 32° - Colégios e Universidades, onde serão ensinados os Elementos das Ciências, Belas Letras e Artes.” SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura... p. 38.

expressão. E a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, tanto no preâmbulo, como nos artigos 13 e 22, protege o direito à cultura ao consagrar o direito à liberdade das artes e de investigação científica, além de proteger a diversidade cultural, religiosa e linguística. Segundo a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia:

Preâmbulo [...]

A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns, no respeito pela diversidade das culturas e tradições dos povos da Europa, bem como da identidade nacional dos Estados-Membros e da organização dos seus poderes públicos aos níveis nacional, regional e local; procura promover um desenvolvimento equilibrado e duradouro e assegura a livre circulação das pessoas, dos serviços, dos bens e dos capitais, bem como a liberdade de estabelecimento. Artigo 13. Liberdade das artes e das ciências

As artes e a investigação científica são livres. É respeitada a liberdade académica. Artigo 22. Diversidade cultural, religiosa e linguística

A União respeita a diversidade cultural, religiosa e linguística.

O direito à cultura, portanto, é presente em tratados internacionais, tanto no âmbito mundial, quanto regional, conforme verificamos nos Tratados acima relacionados à Europa.