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Modelos e estruturas jurídicas de proteção

Com o reconhecimento pela comunidade internacional da soberania dos países em regular o acesso aos recursos presentes em seus territórios, há movimentos nacionais para a preservação socioambiental e das culturas de comunidades tradicionais. Sobre a proteção dos conhecimentos tradicionais, não há uma voz uníssona na comunidade internacional. São diversas as propostas383 para essa proteção que podem ser englobadas em dois grandes modelos de proteção dos conhecimentos tradicionais e repartição dos benefícios: o modelo centrado num regime de propriedade intelectual que seria sui generis384 e outro modelo pautado no estabelecimento de regimes bilaterais de acesso e repartição de benefício, como propõe a Convenção sobre Diversidade Biológica.385

Sobre o primeiro modelo, apesar da cultura e da propriedade intelectual receberem certa proteção por Tratados Internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturas e

381 TOBÓN FRANCO, Natalia. Un enfoque diferente para La protección de los conocimientos tradicionales de

los pueblos indígenas. Estudos Socio-Jurídicos, Bogotá (Colômbia), 9 (1):96-129, enero-junio de 2007.

382 Denis Borges Barbosa entende que por mais justos os discursos sobre a proteção dos conhecimentos

tradicionais e dos recursos da biodiversidade, não seriam capazes de compensar a desigualdade econômica ou a desigual distribuição de recursos no âmbito internacional. BARBOSA, Denis. Propriedade intelectual de conhecimentos e criações tradicionais. In: BARBOSA, Denis. Uma introdução à propriedade intelectual. 2. Ed. Ver. Atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. P. 779-795.

383 DE LA CRUZ; Rodrigo; MUYUY JACANAMEJOY, Gabriel; VITERI GUALINGA, Alfredo; FLORES,

Germán; HUMPIRE, Jaime González; MIRABAL DÌAZ, José Gregório; GUIMARAEZ, Robert. Elementos para la protección sui generis de los conocimientos tradicionales colectivos e integrales desde la perspectiva indígena. Caracas, Venezuela: Norma Color, 2005.

384 RUIZ MULLER, Manuel. La protección jurídica de los conocimientos tradicionales: algunos avances

políticos y normativos en América Latina. Lima-Perú: UICN, 2006. p. 197-198.

385 SANTILLI, Juliana. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo: Peirópolis, 2009. p. 320-

pelo acordo TRIPs, Trade Related Aspects on Intellectual Property Rights386-387, no que diz respeito à proteção dos conhecimentos tradicionais, não se estabelece de forma específica um regramento que busque garantir os direitos de comunidades tradicionais à propriedade coletiva relacionada a patrimônio cultural388. Busca-se então, por este modelo, uma proteção do conhecimento tradicional em que as comunidades receberiam royalties pelas melhorias desenvolvidas e seriam protegidas da possível apropriação por terceiros389. Teríamos, portanto, direitos de propriedade intelectual pelo desenvolvimento, por exemplo, de novas variedades, como afirma Juliana Santilli390. Porém, há dificuldades na implementação desse regime sui generis de propriedade intelectual, pois os direitos exclusivistas característicos do sistema de proteção pelo direito de propriedade intelectual poderiam gerar monopólio, o que provocaria um desestímulo à circulação de saberes e ao intercâmbio dos recursos, algo que é fundamental no caso de questões agrícolas e de conhecimentos tradicionais. Como afirma Santilli:

O direito de impedir terceiros de usar os recursos e saberes agrícolas – que é, basicamente, o que representa o direito de propriedade intelectual – teria, na verdade impacto negativo sobre os sistemas agrícolas locais e sobre os processos biológicos, sociais e culturais que geram a agrobiodiversidade.391

Com o segundo modelo, pautado no estabelecimento de regimes bilaterais e repartição dos benefícios, o acesso aos recursos fitogenéticos conservados se sujeitaria ao consentimento prévio e à repartição dos benefícios derivados da utilização, como propõe a Convenção sobre Diversidade Biológica392. A CDB propõe a prevalência do princípio da soberania dos Estados no caso de acesso aos recursos biológicos de seus territórios e não mais a ideia anterior que tais recursos seriam “patrimônio da humanidade”. Além de proteção à biodiversidade, a negociação da Convenção sobre a Diversidade Biológica tentou diminuir a tensão entre os países do “Norte” e do “Sul” acerca do acesso a recursos biológicos393

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386 MAGALHAES, Vladimir Garcia. Propriedade intelectual: biotecnologia e biodiversidade. São Paulo:

Editora Fiuza, 2011.

387 MONCAU, Luiz Fernando Marrey. Liberdade de expressão e direito autoral: mapeando um conflito

ressignificado pela tecnologia. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação. (Mestrado em Direito). Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em:

<http://www2.dbd.puc-

rio.br/pergamum/biblioteca/php/mostrateses.php?open=1&arqtese=0912251_2011_Indice.html>. Acesso em: 15 mar 2016.

388

BASSO, Maristela. Propriedade intelectual na era pós-OMC. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

389

SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005.

390 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos...

391 SANTILLI, Juliana. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores... p. 321. 392

SANTILLI, Juliana. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores... p. 321-322.

393 SCHMIDT, Larissa. A repartição de benefícios decorrentes do acesso à diversidade biológica e ao

Assinada durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (RIO-92), a CDB significou um avanço para os países megadiversos diante do interesse dos países ricos em acessar livremente os recursos biológicos.

A proteção dos conhecimentos tradicionais envolve questões relacionadas ao Direito e a Economia, além da discussão entre os países do “Norte” e do “Sul”394

sobre a apropriação desses conhecimentos. A regulação justa desses conhecimentos é fundamental para se evitar a total exploração por empresas do Norte em detrimento de direitos dos povos tradicionais dos países do Sul, além de evitar conflitos com as comunidades indígenas no próprio espaço da América Latina395, por exemplo396-397. Os grandes projetos de extração energética e mineral398, como os do governo federal brasileiro e do governo peruano, têm como uma das grandes críticas o desrespeito à biodiversidade e ao conhecimento tradicional, uma vez que não se dialoga com as comunidades, aumentando o dilema entre o desenvolvimento e a sustentabilidade399400. Convenções como a CDB protegem a diversidade biológica, permitindo a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais nessa proteção.

Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI e da Organização Mundial do Comércio – OMC. Brasília-DF, 2009. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito. Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília-DF: UnB, 2009. p. 106.

394

SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010.

395 Segundo Boaventura de Sousa Santos: “Por democracia intercultural en el continente latino-americano

entendo: [...] 3) reconocimiento de derechos colectivos de los pueblos como condición del efectivo ejercicio de los derechos individuales (ciudadanía cultural como condición de ciudadanía cívica); 4) reconocimiento de los nuevos derechos fundamentales (simultáneamente individuales y colectivos): el derecho al agua, a la tierra, a la soberania alimentaria, a los recursos naturales, a la biodiversidad, a los bosques y a los saberes tradicionales; 5) másalláde los derechos, educación orientada hacia formas de sociabilidad y de subjetividad asentadas en la reciprocidad cultural: un miembro de una cultura solamente está dispuesto a reconocer a otra cultura si siente que la suya propia es respetada, y esto se aplica tanto a las culturas indígenas como a las no-indígenas”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado em América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima-Perú: IIDS, 2010a. p. 98-99)

396 YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Pueblos indígenas: constituciones y reformas políticas en América

Latina. Lima: ILSA, INESC, IIDS, 2010.

397

Especificamente sobre os grupos indígenas: “Ahora, para que el reconocimiento de los derechos tenga eficácia, no basta com la adopción de instrumentos internacionales. En conjunto, un marco de protección de derechos indígenas requiere: - una adecuada normativa interna; - la implementación institucional, y - un cambio de la cultura jurídica, tanto de funcionarios o operadores, como de usuarios o beneficiarios del sistema.” (YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Pueblos indígenas: constituciones y reformas políticas en América Latina. Lima: ILSA, INESC, IIDS, 2010. p. 19-20)

398 Shin Imai, Ladan Mehranvar e Jennifer Sander mostram as violações que empresas canadenses da área de

mineração fazem aos povos indígenas da Guatemala em: IMAI, Shin; MEHRANVAR, Ladan; SANDER, Jennifer. La Violación Del Derecho Indígena: Empresas Mineras Canadienses En Guatemala (Breaching Indigenous Law: Canadian Mining in Guatemala). Comparative Research in Law & Political Economy. Research Paper No. 12/2013. Disponível em: <http://digitalcommons.osgoode.yorku.ca/clpe/261>. Acesso em: 20 fev 2016.

399

COSTA, Sebastião. P. M.; SOUSA, Maria Sueli R. de. Grandes projetos do governo federal brasileiro, desenvolvimento regional e violação aos Direitos Fundamentais. In: COSTA, Sebastião; TEIXEIRA, Solange. (Org.). Reflexões e recortes teóricos sobre direitos fundamentais, desenvolvimento e políticas públicas. Teresina: Editora da UFPI, 2016, v. 1, p. 119-142.

400 SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Critérios para indenização em processos de desapropriação de imóveis

Analisaremos a seguir a proteção dos conhecimentos tradicionais. Veremos instrumentos internacionais para a proteção, além da análise da proteção jurídica que é feita no Brasil, tanto no âmbito constitucional, como na esfera infraconstitucional, abordando também algumas constituições estaduais e normas internas sobre a temática. Sempre que possível mostraremos a visão externada por membros de povos indígenas e comunidades tradicionais. Realizaremos ainda uma análise da legislação brasileira sobre a proteção dos conhecimentos tradicionais, em especial a Lei n. 13.123, de 2015, e o Decreto que a regulamenta de n. 8.772, de 2016, assim como algumas normas e procedimento administrativos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN que protegem o conhecimento tradicional e a cultura imaterial brasileira.

Nacional Serra da Capivara e de desapropriação-sanção no Estado do Piauí. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Mecanismos jurídicos para a modernização e transparência da gestão pública. v. 1. Brasília: Ministério da Justiça, 2013.

PARTE III

5 SUPORTE JURÍDICO POLÍTICO À PROTEÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS