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2.1 Cultura e individuo nas visões antropológica e jurídica

2.1.2 Visão jurídica da cultura

2.1.2.2 Direito e patrimônio cultural

Clara Bertrand Cabral167, ao estudar o patrimônio cultural imaterial, propõe uma mudança de paradigma interessante. Para a autora, se no patrimônio cultural material, o mais importante são as coisas, no patrimônio cultural imaterial, o mais importante são as pessoas. Essa mudança torna ainda mais difícil estudar e analisar o patrimônio imaterial, pois ao invés de focarmos o objeto, passamos a focar e a nos interessar por quem executa. Dessa forma, temas como o próprio patrimônio cultural imaterial, os grupos e comunidades relacionados a esse patrimônio, a transmissão entre as gerações, a memória e a identidade e direitos culturais se tornam ainda mais complexos quando tratamos como patrimônio cultural imaterial. Nessa abordagem sobre o patrimônio cultural imaterial, utilizaremos as idéias de Clara Bertrand Cabral.168

Ao mostrar a definição de patrimônio cultural imaterial segundo os itens 1 e 2, do artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada pela UNESCO em 2003, Clara Bertrand Cabral propõe uma série de considerações. Segundo a Convenção, seria patrimônio cultural imaterial:

Artigo 2: Definições

167 CABRAL, Clara Bertrand. Património cultural imaterial. Lisboa: Edições 70, 2014. 168 CABRAL, Clara Bertrand. Património cultural imaterial... p. 16-17.

Para os fins da presente Convenção,

1. Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável.

2. O “patrimônio cultural imaterial”, conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais.

Nesse conceito se percebe a necessidade de relacionarmos patrimônio e cultura para se compreender com profundidade o patrimônio cultural imaterial. E nessa análise, a globalização deve ser considerada quando se trabalha a diversidade cultural e a sua proteção através da evolução dos conhecimentos tradicionais. Ao trabalhar com o patrimônio cultural imaterial, observa-se que a Convenção do Patrimônio Cultural Imaterial tem como um de seus aspectos mais relevantes o respeito à visão das comunidades tradicionais e a busca do desenvolvimento socioeconômico com base no desenvolvimento sustentável. No mundo pós- moderno, há uma convivência de grupos múltiplos, seja na sua diversidade ou mesmo na quantidade de grupos que interagem num mesmo espaço. Apesar dessa convivência cada vez mais intensa, percebemos uma crescente diferenciação presente entre eles. Nesses espaços é necessária uma interação mais profunda, um diálogo mais efetivo no processo de interação que exige um exercício de alteridade quando um grupo é colocado diante de outro grupo. Nessa aproximação, o patrimônio cultural imaterial pode se colocar como fator de aproximação.169

Para se proteger o patrimônio cultural imaterial é importante garantir os chamados direitos culturais, que eles são protegidos em diversos tratados e convenções internacionais. Clara Bertrand Cabral mostra uma evolução histórica sobre a proteção dos direitos culturais segundo tratados e convenções internacionais, abordando também temas conexos, como a questão das populações indígenas, as minorias e os grupos migrantes. Apesar de o acesso à cultura ser considerado direito humano já na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, apenas em 1966, com o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais que os direitos culturais são discriminados. Segundo o artigo 15 do PIDESC:

ARTIGO 15

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural;

b) Desfrutar o processo cientifico e suas aplicações;

c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção cientifica, literária ou artística de que seja autor.

2. As Medidas que os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à convenção, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura.

3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa cientifica e à atividade criadora.

4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.

Seguindo essa linha, a autora mostra que em 2001, com a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, os direitos culturais são declarados universais, indissociáveis e interdependentes e fazem parte dos direitos humanos. Essa Declaração ainda reforça a preocupação com a educação e a necessidade de se respeitar a identidade cultural e de se expressar na língua que se deseje para divulgar as práticas culturais. Percebe-se que há um elemento de ordem política ao se defender o exercício dos direitos culturais. Os Estados, por exemplo, para efetivarem os direitos culturais, terão que preparar as condições para e expressão das práticas culturais e assim distribuir o poder. Segundo o artigo 5 da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural:

Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em particular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.

Clara Bertrand Cabral trata também da Declaração de Friburgo sobre Direitos Culturais de 2007, fruto do trabalho do chamado “Grupo de Friburgo”, e que tem entre seus pontos positivos as definições apresentadas de “cultura, identidade cultural e comunidade cultural”, além de mostrar que os direitos culturais possuem preocupações além da questão cultural, vinculando-se a questões econômicas, de bem-estar e de desenvolvimento. Segundo a autora, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial tem essa mesma

preocupação de não se ater a questões eminentemente culturais, mas nesse caso, busca-se promover o desenvolvimento das comunidades e grupos, reforçando suas capacidades. Sobre tratados e convenções que se referem especificamente a povos indígenas e demais minorias, a autora mostra que essa diferenciação entre grupos que muitas vezes se sobrepõem, decorre de uma visão da ONU e de suas agências especializadas que provoca essa diferenciação ao tratar instrumentos internacionais específicos para cada grupo, embora existam alguns traços comuns entre esses instrumentos, como a busca da proteção contra a discriminação.

No que diz respeito aos povos indígenas, a partir de 1969 começam a ser debatidos na ONU de forma mais profunda temas relacionados a esses grupos. As convenções que tratam dos povos indígenas valorizam os saberes, práticas e artesanato indígenas, mostrando a importância econômica e cultural desses conhecimentos. Assim como se fortalecem princípios que protegem a identidade cultural indígena, como o direito de autodeterminação e o de viver segundo a sua cultura. Além disso, essas convenções fortaleceram a relação entre os povos indígenas e seus territórios.

Quanto à questão das minorias, apesar de não haver uma definição aceita internacionalmente, há uma meta comum em não se privar as minorias de ter vida cultural própria, permitindo-se, por exemplo, que as minorias usem suas línguas e suas religiões. Isso está presente no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966, e na Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, de 1992. Sobre os povos indígenas e as minorias, Clara Bertrand Cabral chama a atenção ao perigo que correm seus patrimônios culturais. Segundo a autora, diante das mudanças econômicas, sociais e culturais que ocorrem ultimamente, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial se transformou num instrumento internacional importante para se defender os interesses desses grupos.

Outro autor que trabalha profundamente o tema patrimônio cultural é Casalta Nabais. O professor da Universidade de Coimbra faz um interessante estudo sobre o Patrimônio Cultural ao pretender sistematizar uma metodologia de estudos para uma disciplina de Pós- graduação sobre Direito do Patrimônio Histórico-Cultural. O patrimônio cultural é um assunto que envolve a todos os membros da sociedade e não pode ficar restrito à atuação estatal. Diante disso, o autor busca analisar o patrimônio cultural e suas relações com o Direito e promover uma melhor proteção.

Inicialmente o professor português se questiona sobre qual o melhor termo a ser utilizado para a disciplina, uma vez que diversas línguas tratam o tema sob termos diferentes. Apesar de uma prevalência do termo patrimônio cultural, temos na língua inglesa o uso do

termo herança (heritage) cultural ou até mesmo propriedade cultural (cultural property), na língua alemã temos bem cultural ou bens culturais (Kulturgut ou Kuturgüte). Para ele, os substantivos herança ou legado não são os mais adequados, pois passam a ideia de algo estático, relacionado a simples conservação e preservação para que as gerações futuras herdem tais bens. Essa ideia não condiz com o sentido dinâmico e a necessidade de valorização que se deve ter com os bens culturais. Propriedade cultural também não seria um termo apropriado, segundo Casalta Nabais (2010), uma vez que o substantivo propriedade passa a ideia de tratarmos apenas com bens materiais. Bens culturais também não é uma terminologia preferencial para o professor, pois enquanto bem cultural dá uma ideia de preocupação com os elementos internos e constitutivos, já o termo patrimônio é mais apto a tratar de forma global questões que envolvem a cultura170.

O adjetivo “cultural” também prevalece na ideia do professor Casalta Nabais. Segundo ele, patrimônio histórico-cultural mostra algo mais restrito, passando-se a ideia que o patrimônio cultural se encerra naquele que possui uma natureza histórica relevante. Dessa forma, “cultural” mostra uma abrangência maior e mais aberta aos desenvolvimentos da cultura. Conforme declara Casalta Nabais:

Pelo que o patrimônio cultural pode ser visto como um conjunto de bens culturais, um conjunto de bens imateriais (criações jurídicas) que, nuns casos, estão ancorados em suportes materiais (infungíveis ou fungíveis) e, noutros casos, não tem qualquer suporte material.171

O estudo do patrimônio cultural e de seus mecanismos de proteção necessita de certo cuidado. A proteção é necessária, mas não pode ser exagerada a ponto de ao final dessa ampliação termos uma proteção mais frágil, ou nas palavras de Casalta Nabais: “[...] uma pretensa protecção superlativa dos bens culturais pode, afinal de contas, redundar numa protecção bem menor ou mesmo numa desprotecção total desses mesmos bens”172

. Ou seja, é necessária uma ponderação entre a valorização do patrimônio cultural e os demais valores constitucionais, como a propriedade privada, a vida privada e a liberdade religiosa.

170 De acordo com Carlos Alberto Molinaro e Fernando Antonio de Carvalho Dantas, o substantivo acervo seria

mais conveniente que patrimônio. Além de patrimônio revelar um caráter econômico, a palavra acervo é mais ampla por envolve bens, materiais e imateriais, a posse ou a propriedade tanto de um indivíduo como de um grupo. O termo acervo também é associado aos usos, costumes e conhecimentos que foram adquiridos através de experiências. Porém os autores ponderam que o termo patrimônio, por já estar consagrado

internacionalmente, deve ser o utilizado, mas tendo-se o cuidado do seu uso ser feito consoante o significado do termo acervo. MOLINARO, Carlos Alberto; DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Artigos 215 e 216. CANOTILHO, J. J. Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; MENDES, Gilmar Ferreira (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1976 – 1985. p. 1982.

171 NABAIS, José Casalta. Introdução ao Património Cultural. 2. Ed. Coimbra: Almedina, 2010. p. 21. 172 NABAIS, José Casalta. Introdução ao Património Cultural... p. 26.

Ao tratar especificamente do direito do patrimônio cultural, Casalta Nabais173 cita quatro noções de patrimônio cultural que mostram aproximação com o Direito, que seriam o conceito de Pierre-Laurent Frier, o artigo 1º, da Lei do Patrimônio Cultural de Portugal, de 1985, o artigo 2º, da UNIDROIT, de 1985 e o artigo 2º, n. 1º, da atual Lei do Patrimônio Cultural de Portugal. Nas quatro noções apresentadas, percebe-se que a noção de patrimônio cultural é ligada à cultura, não é ampla e se opõe à noção de algo ligado à natureza. Após essas considerações, Casalta Nabais expõe sua definição de direito do patrimônio cultural. Para ele:

Numa idéia aproximada, podemos considerar o direito do patrimônio cultural como um conjunto de normas de direito público – isto é, de normas de direito constitucional, de direito comunitário, de direito internacional e de direito administrativo (no qual se inclui, como ramo especial, o direito fiscal) -, que estabelecem, portanto, um regime de direito público, relativamente a um objecto específico, constituído pelos bens culturais. Bens estes que, sendo testemunhos com valor civilizacional (na expressão da Comissão Franceschini), são sempre, em si mesmos, bens imateriais ou espirituais.174

Após essa definição, o autor promove um estudo aprofundado sobre a temática, abordando de forma pormenorizada os princípios gerais do direito do patrimônio cultural.