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Direitos culturais e a dimensão cultural dos Direitos Humanos

4.1 Direitos culturais

4.1.1 Direitos culturais e a dimensão cultural dos Direitos Humanos

Uma das dificuldades em se definir os direitos culturais333 diz respeito à interconexão que eles possuem com os direitos humanos, uma vez que todos os direitos humanos possuem uma dimensão cultural.334

Esse aspecto traz em si um possível paradoxo, pois se por um lado devemos proteger os direitos culturais e, portanto, não permitir qualquer discriminação tendo em vista o elemento cultura, por outro lado não podemos permitir que as diferenças culturais promovam violações aos demais direitos humanos universais. Ou seja, toda discriminação que ocorra com base em questões culturais será contrária ao Direito Internacional.335

Dessa forma, alguns direitos têm uma relação muito próxima com os direitos culturais, como é o caso da liberdade de expressão. A Convenção para a Diversidade Cultural, de 2005, em seu artigo 2º, item1, considera que a liberdade de expressão é necessária para se

332 AJILA FERNANDEZ, Rosa Ana. Aproximación a la especificidad de la exigibilidad jurídica internacional de

los derechos culturales…

333 Com preocupação na terminologia adequada e precisa, ao tratar sobre culturalismo, multiculturalismo e

direitos culturais, Francisco Humberto da Cunha Filho (2011) esclarece as diferenças entre eles. Enquanto o culturalismo embasa uma teoria que explica o direito com base na cultura, o multiculturalismo seria uma ideia de convivência dos povos com base nos valores culturais. Os direitos culturais pressupõem direitos específicos, com núcleo concreto e ligados à cultura. Dessa forma, enquanto o culturalismo é uma teoria, multiculturalismo é uma ideologia e os direitos culturais seriam a práxis. Cf. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos Culturais no Brasil. Revista Observatório Itaú Cultural. [online], São Paulo, n. 11, jan./abr. 2011. p 116 - 118. Disponível em: <http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2014/03/Revista-

Observat%C3%B3rio-11.pdf>. Acesso em: 16 mai 2017.

334 AJILA FERNANDEZ, Rosa Ana. Aproximación a la especificidad de la exigibilidad jurídica internacional de

los derechos culturales… p. 131.

335 AJILA FERNANDEZ, Rosa Ana. Aproximación a la especificidad de la exigibilidad jurídica internacional de

proteger essa diversidade336. Assim, temos um exemplo de como a proteção aos direitos culturais pode ser fortalecida com o instrumental jurídico que protege outros direitos humanos, nesse caso, a liberdade de expressão. Assim, a liberdade de investigação científica e a atividade de criação, que são direitos culturais, são protegidos também pelo direito de liberdade de expressão. Desse modo, o Estado possui mais um mecanismo que o obriga a proteger os direitos culturais337, no caso, os instrumentos jurídicos que consagram a proteção ao direito de liberdade de expressão.

Sobre esse tema, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos entendeu que a livre atividade de criação é englobada pelo direito de liberdade de expressão, como preceitua o artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos338, de acordo com o decidido no caso Müller e outros vs. Suíça, em decisão de 24 de maio de 1988, parágrafo 27, Série A, número 133.339.

O princípio da igualdade, por exemplo, consagrado internacionalmente, impede que haja discriminação motivada por questões culturais. Ou seja, os Estados não podem, segundo normas consagradas internacionalmente, violar direitos humanos com base em discriminação de caráter cultural, como afirmamos acima. Por outro lado, o completo gozo dos direitos

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Convenção sobre a Diversidade Cultural. Artigo 2 - Princípios Diretores 1.Princípio do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais

A diversidade cultural somente poderá ser protegida e promovida se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades fundamentais, tais como a liberdade de expressão, informação e comunicação, bem como a possibilidade dos indivíduos de escolherem expressões culturais. Ninguém poderá invocar as disposições da presente Convenção para atentar contra os direitos do homem e as liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantidos pelo direito internacional, ou para limitar o âmbito de sua aplicação.

337 Carlos Frederico Mares de Souza Filho afirma que o reconhecimento da diversidade cultural e étnica somente

será integral quando não houver diferença de status entre as culturas etnicamente diferenciadas e a chamada cultura “nacional” brasileira. Sobre os direitos culturais, o autor faz uma importante reflexão diante da quantidade de “mentiras” que são prolatadas sobre os povos indígenas nas salas de aula do Brasil. Segundo ele: “Direitos culturais não são apenas os ligados ao respeito ao exercício de suas tradições, festas, alimentação, mais do que isso é o Direito a que as informações sobre o povo não sejam recobertas por manto de preconceito, desprezo e mentiras” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 158-159).

338Artigo 10.º

(Liberdade de expressão)

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados

submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. 2. O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas

formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

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EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of Müller and Others v. Switzerland. Aplication n. 10737/82. Strasbourg. Judgment 24 may 1988. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-57487>. Acesso em: 04 jul 2017.

culturais não pode permitir a violação de direitos humanos. Esse seria, portanto, um limite aos direitos culturais, isto é, não se pode implementar um direito cultural que viole os demais direitos humanos. No caso dos direitos culturais, essa é uma grande preocupação pois há diversos direitos humanos que são próximos a eles e muitas vezes essa vinculação é fundamental para que os direitos culturais sejam efetivados. Como afirma Alija Fernandez:

El CDESC también ha apuntado la vinculación intrínseca entre el derecho a participar en la vida cultural y el derecho a la educación; el derecho a la intimidad; la libertad de pensamiento, conciencia y religión; la libertad de opinión y expresión; la reunión pacífica y la libertad de asociación.340

Uma outra característica a respeito dos direitos culturais relaciona-se a quem seriam seus titulares. Nesse aspecto, há nos direitos culturais tanto uma dimensão individual quanto uma dimensão de ordem coletiva. A rigor, seguindo o artigo 15 - do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - que se refere aos titulares desses direitos como “toda pessoa”, temos uma dimensão de ordem individual. Porém, várias interpretações mostram a complexidade da titularidade dos direitos culturais e expandem a titularidade para a dimensão coletiva. Para alguns direitos, há a necessidade que a titularidade seja também coletiva, como por exemplo, nos casos de direitos culturais que se aplicam a minorias, a povos indígenas ou mesmo comunidades tradicionais, principalmente aqueles direitos que se relacionam às formas de vida, organização social, pluralismo jurídico ou mesmo pluralismo cultural. Como afirma Alija Fernandez:

El reconocimiento de derechos culturales a minorías y pueblos indígenas permite concluir entonces que existen derechos culturales colectivos. Ahora bien, no parece que de la precisión que el CDESC hace del alcance de la referencia a ‘toda persona’ se pueda derivar que todo derecho cultural es colectivo, sino que solo podrá serlo en medida en que el Derecho internacional reconozca a una colectividad la capacidad de ser titular del mismo, como en efecto ocurre con las dos indicadas. En el resto de casos, la titularidad sería individual, aunque con una innegable dimensión colectiva, en la medida en que algunos derechos culturales ‘solo pueden existir se son practicados por una comunidad’.341

O entendimento da titularidade coletiva dos direitos culturais também assume importância relevante quando consideramos a possível violação praticada por ações do Estado. Dessa forma, o respeito aos direitos culturais ocorre tanto no nível individual, quanto no âmbito coletivo, quando consideramos possíveis violações. É o caso do princípio da igualdade que não pode ser utilizado para tratar com discriminação grupos sociais. A

340 AJILA FERNANDEZ, Rosa Ana. Aproximación a la especificidad de la exigibilidad jurídica internacional de

los derechos culturales… p. 132.

341 AJILA FERNANDEZ, Rosa Ana. Aproximación a la especificidad de la exigibilidad jurídica internacional de

titularidade coletiva favorece inclusive a realização de políticas públicas e demais atividades estatais com o objetivo de se garantir o tratamento igualitário a grupos vulneráveis que sofrem riscos de discriminação por questões étnicas ou culturais.

Em sentido semelhante ao esboçado acima, trabalham Carlos Alberto Molinaro e Fernando Antonio de Carvalho Dantas342 ao tratarem da titularidade dos direitos culturais, tendo-se como parâmetro o estabelecido pela Constituição Federal brasileira de 1988. Apesar de tratarmos da Constituição brasileira mais intensamente num momento posterior deste trabalho, em que analisaremos as suas normas relativas à proteção da cultura, é importante anteciparmos o pensamento desses autores sobre a titularidade dos direitos culturais. A Constituição Federal de 1988 confere titularidade dos direitos culturais tanto como direitos individuais, quanto como direitos coletivos. De acordo com os autores:

A CF garante a titularidade dos direitos culturais com direitos individuais e como direitos coletivos. Como direito individual se firma na característica de cada ser humano, tomado individualmente, tem direito a desfrutar e desenvolver sua vida cultural no interior do grupo social a que pertence, assim, este direito de titularidade individual é suficiente para respeitar e proteger a diversidade cultural e a integridade dos grupos sociais interconectados na vida nacional. Como direitos coletivos os direitos culturais se dirigem a titularidade coletiva das características imprescindíveis para a preservação da identidade e integridade dos grupos minoritários ou não hegemônicos, aparecem com intensidade nas comunidades quilombolas, nas tradicionais e nos povos indígenas, a estes últimos a CF garante o reconhecimento de suas identidades coletivas, incluindo à identidade étnica alguns direitos culturais como os de viverem seus usos, costumes e tradições o que equivale dizer: direitos diferenciados do ser, de autogoverno, direitos sobre as terras e recursos naturais, o que torna os direitos coletivos um componente fundamental das reivindicações indígenas.343

A Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã, de acordo com Molinaro e Dantas, garantiu o reconhecimento da cidadania do sujeito ativo culturalmente e também do grupo etnicamente diferenciado como forma de assegurar sua identidade cultural coletivamente. Dessa forma, grupos remanescentes de quilombo, comunidades tradicionais e povos indígenas, que diversas vezes desenvolveram estratégias de invisibilidade social para não serem literalmente massacrados por grupos hegemônicos, tiveram protegidos coletivamente direitos culturais como o de respeito a suas formas de viver, de acordo com seus costumes. No que diz respeito especificamente aos povos indígenas, os autores afirmam que a Constituição Federal de 1988, ao reconhecer e proteger a organização desses grupos, apontou para uma pluralização do Direito, pela força normativa da Constituição, gerando reflexos importantes no contexto social brasileiro, principalmente no que diz respeito aos

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MOLINARO, Carlos Alberto; DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Artigos 215 e 216...

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aspectos culturais, sociais e políticos que esse reconhecimento gerou. Para Carlos Alberto Molinaro e Fernando Antonio de Carvalho Dantas:

A titularidade dos direitos culturais se estende aos autores de todas as manifestações culturais, artísticas, intelectuais, científicas, sejam esses sujeitos singulares ou plurais. Neste sentido, os direitos culturais das populações etnicamente diferenciadas que integram e colaboram para a construção da identidade nacional, com destaque para os povos indígenas uma vez que estes representam, no plano nacional, a máxima diferença cultural.344

Fixada a dimensão cultural dos direitos humanos, bem como a sua titularidade plural, reafirma-se a necessidade de proteção e respeito aos direitos culturais. Dessa forma, no que diz respeito às obrigações estatais, Alija Fernandez345 mostra que o respeito aos direitos culturais faz surgir para o Estado algumas obrigações, entre elas a obrigação de respeitar, de proteger e de garantir o cumprimento. Respeitar para que não adote medidas que limitem os direitos culturais. Proteger para que se tomem as medidas necessárias para impedir que se violem os direitos culturais. E a obrigação de garantir o cumprimento, para que o Estado realize as medidas necessárias para a efetividade dos direitos culturais, sejam tais medidas de ordem legislativa, administrativa ou mesmo judicial.