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CONQUISTA DA AMÉRICA E A CONDIÇÃO DO ESCRAVO NO BRASIL IMPÉRIO

No documento Conhecimento, iconografia e ensino do direito (páginas 118-122)

O PAPEL DO ENSINO DO DIREITO NA SUPERAÇÃO DA HEGEMONIA CULTURAL

CONQUISTA DA AMÉRICA E A CONDIÇÃO DO ESCRAVO NO BRASIL IMPÉRIO

Com o objetivo de apresentar aos acadêmicos uma pers- pectiva pluralista no Direito, visibilizando a diversidade dos grupos étnicos na formação da história brasileira, bem como a violência contra eles perpetrada, buscou-se trabalhar em sala de aula com casos que envolvessem os grupos tradicionalmente excluídos da visão liberal burguesa jurídica, que são os povos indígenas e afrodescendentes.

Os estudos de casos foram desenvolvidos na disciplina de história do direito com acadêmicos de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (São Luís/MA), que adotava esta metodologia como proposta central no projeto pedagógico durante dois semestres letivos do ano de 2011.

Em ambos os casos, optou-se por trabalhar na linha de pesquisa desenvolvida no campo da antropologia jurídica e teo- ria crítica dos direitos humanos tratando da questão indígena e afrodescendente, desde um ponto de vista histórico.

No primeiro caso, para trabalhar o contexto do ensino da transição do Estado Medieval para o Estado Moderno, deci- diu-se abordar a discussão sobre a legitimidade da presença es- panhola na América e o direito dos povos indígenas, tendo por foco o pensamento dos teólogos-juristas no século XVI.

No segundo caso, levou-se em consideração o contex- to e imaginário social local, aplicando-se um estudo de caso de tortura e assassinato de uma criança escrava, no final do século XIX, em São Luís, por uma senhora da elite maranhense, tra- balho realizado em fontes primárias e que buscou visibilizar a

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contradição da cidadania liberal no Brasil Império e a condição do escravo.

No estudo intitulado “A Conquista da América: uma dis- cussão jurídica e política” apresentou-se a discussão travada pe- los teólogos-juristas da Península Ibérica durante o século XVI, tendo por foco as Releituras das Conferências de Francisco de Vitória (1483-1546), conhecido como um dos fundadores do di- reito internacional e considerado um autor de transição, onde expõe as causas legítimas e ilegítimas da presença dos espanhóis na América.

O objetivo geral foi de que os acadêmicos, em um pri- meiro momento de debates, identificassem os aspectos medie- vais e modernos em seu pensamento para, posteriormente, pro- blematizar a questão da Conquista da América elaborando por escrito uma defesa dos povos indígenas, com a indicação de sua base argumentativa.

Desde o ponto de vista pedagógico, os acadêmicos pude- ram não somente identificar as diferenças do pensamento jurídi- co medieval e moderno, mas reconhecer a violência, não somen- te física, mas epistemológica da Conquista e da Colonização por meio de obras clássicas de autores tais como Bartolomé de Las Casas, Tzvetan Todorov e outros.

Com o estudo da defesa indígena feita por Francisco de Vitoria e também de trechos de Bartolomé de Las Casas os aca- dêmicos puderam visibilizar que a gênese da teoria dos direitos fundamentais encontra-se na discussão teórica travada sobre o encontro do europeu com os habitantes do continente ameri- cano, e ainda, identificar a face oculta da modernidade, que é a violência contra o “Outro” que se quer colonizar, denominada por Anibal Quijano (2000) como “colonialidade”.

Em “A condição do escravo no Brasil Império: um es- tudo a partir do assassinato do menino Inocêncio” foi proposto aos acadêmicos que desenvolvessem o estudo do caso de tortura e homicídio de uma criança escrava, considerada “propriedade” de Anna Rosa Vianna Ribeiro, moradora na cidade de São Luís

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e importante dama da sociedade local, em 30 de novembro de 1876.

A senhora, conhecida como Baronesa de Grajaú, foi de- nunciada pelo Ministério Público e o caso teve enorme repercus- são na sociedade da época, pois ela fora condenada em primeira instância e posteriormente absolvida pelo Tribunal, sendo popu- larmente conhecido até os dias atuais.

O caso serviu como pano de fundo para o objetivo peda- gógico principal que era promover o estudo e a reflexão sobre a condição do escravo no Brasil Império, que ao mesmo tempo era “objeto” de direito, em se tratando de relações cíveis e mercantis, e “sujeito” de direito para aplicação da lei penal.

Trabalhou-se com a elaboração de um relatório parcial sobre o estudo aprofundado do caso, com leituras feitas direta- mente dos autos do processo, para posteriormente, com base na obra de jushistoriadores críticos como José Reinaldo Lima Lopes e Antônio Carlos Wolkmer fosse feita a reflexão sobre a cidada- nia liberal esposada tanto no plano normativo da Constituição de 1824, quanto no plano fático.

Ao final, foram travados debates sobre a possibilidade de condenação ou absolvição da “Baronesa de Grajaú” diante de sua condição senhorial, do panorama jurídico e contexto social existente à época dos fatos.

O envolvimento dos acadêmicos nas discussões em sala de aula foi bastante intenso, no qual se pode verificar que tanto na questão dos povos indígenas quanto afrodescendentes, apesar de distanciadas no tempo, possibilitaram o surgimento de questões atuais, uma vez que a realidade de exclusão destes grupos não se encontra resolvida no seio da sociedade brasileira, que carrega con- sigo ainda o peso desta herança cultural escravocrata e senhorial. CONCLUSÃO

No percurso que engloba a passagem do exame vesti- bular – um mecanismo de seleção alienante que desestimula o pensar crítico – até a colação de grau, o acadêmico receberá a

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formação da qual dependerá tanto seu desempenho técnico-for- mal, quanto sua realização como sujeito na esfera da vida.

O ensino jurídico tradicional tem contribuído para a ma- nutenção do status quo ao separar o acadêmico da realidade social,

colocando-o em um mundo formal-positivista que proporciona que a cultura jurídica que se impõe é aquela do homem branco, portador dos valores hegemônicos.

Com a crise do monismo jurídico, o sistema apresenta fissuras e a sua ineficácia, em regra, não é apresentada aos acadê- micos como produto da mistificação da lei e do Estado nacional homogêneo, construído sob a cimentação das diferenças dos di- versos grupos étnico-culturais existentes.

O estímulo para uma formação crítica e calcada na reali- dade social deve partir de professores comprometidos com a su- peração da hegemonia cultural construída ao longo de séculos de espoliação e subalternização de povos indígenas, afrodescentes e outras minorias existentes no território nacional.

Na formação do profissional do Direito não é aceitável que se descuide da sua identidade como sujeito apto para lidar e respeitar as diferenças existentes em nossa sociedade multicultu- ral e para que sua atuação corresponda efetivamente às deman- das sociais de justiça.

A perspectiva da pluralidade das fontes de produção do Direito e o processo conflitivo que envolve a concretização das normas devem ser trabalhados com os estudantes em sala de aula a fim de se evitar a perpetuação da postura bacharelesca dos novos profissionais do Direito.

Diante do pluralismo étnico-cultural e das desigualdades ainda existentes no país, a metodologia de ensino deve enfocar e trazer à lume a voz dos subalternos, sempre respeitando as diferenças de cada realidade. Os estudos de caso baseados na questão indígena e da escravidão negra além de apresentarem-se como questões fáticas, possibilitaram que os acadêmicos refle- tissem sobre a herança cultural que ainda se faz presente e cuja ferida é preciso olhar e cuidar.

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emonia cultural

Assim, a proposta de estudo de casos que trataram das diferenças étnico-culturais existentes no país, contextualizando- -as historicamente, apresentando o campo cultural como espaço de poder pelas elites dominantes serviu de proposta válida para a superação, pelo ensino do Direito, da hegemonia cultural. REFERÊNCIAS

APARICIO, A. B. Novos atores e movimentos étnico-culturais: Antropologia Jurídica na rota das identidades In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de Antropologia Jurídica. Florianópolis: Conceito, 2008, p. 75-91.

AUTOS DO PROCESSO-CRIME DA BARONESA DE GRAJAÚ

No documento Conhecimento, iconografia e ensino do direito (páginas 118-122)