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3 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO INDIGENISTA A PARTIR DA VISÃO DO COLONIZADOR

No documento Conhecimento, iconografia e ensino do direito (páginas 187-195)

COLONIAL DO SÉCULO XVI SOBRE OS POVOS INDÍGENAS

3 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO INDIGENISTA A PARTIR DA VISÃO DO COLONIZADOR

A Coroa Portuguesa vendo a terra conquistada como mera fornecedora de mercadorias que a despontaria ante a corrida mercantilista, impõe seu direito de explorar o territó- rio comercialmente, impulsionando as incursões sobre o Novo Mundo com a busca de produtos passíveis de comércio nos portos Europeus. A era do capitalismo mercantil extrativista avançará sobre as áreas litorâneas do Atlântico com o esta- belecimento de feitorias como postos de armazenamento de madeira vermelha, de peles, de animais, como de aves exóti- cas e de macacos e de indígenas enquanto escravos a serem comercializados.

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A importância do trabalho indígena em terra brasileira na fase de exploração comercial através das feitorias era de tal tama- nho que Jean de Léry, considerado um dos primeiros franceses a produzir etnografia dos indígenas no Brasil, ainda no século XVI relatou: “se os estrangeiros que por aí viajam não fossem ajudados pelos selvagens não poderiam nem sequer em um ano carregar um navio de tamanho médio” (LÉRY, 1961, p. 134).

Ao representar o indígena em atividades extrativas no

Terra Brasilis, especialmente a do pau-brasil, tem-se determina-

do a partir dos interesses do colonizar a primeira necessidade do indígena no sistema econômico europeu; fazendo-se impres- cindível ao sistema-mundo enquanto mão-de-obra fornecedora – e não vendedora – de matéria-prima, que trabalharia a custo irrisório.

Sendo o direito colonial, produzido no século XVI, uma legislação da Coroa/metrópole referindo-se às questões econô- micas como o domínio sobre a terra, o monopólio de produtos e a defesa de fronteiras; quando versada sobre a questão indígena, o direito colonial indigenista é motivado, sobretudo, pela neces- sidade de mão-de-obra e pela defesa dos próprios portugueses que, invasores do território indígenas, sofriam as consequências das investidas de conquista sobre as terras originárias.

Num primeiro momento o contato ontológico interét- nico – entre o ser europeu e o ser indígena – é marcado pelas sucessivas tentativas de descimentos dos indígenas dos sertões e sua fixação em aldeamentos dentro de núcleos de coloniza- ção portuguesa; onde ficavam mais visíveis para o controle e dominação.

Os debates nas coroas ibéricas sobre a escravização indí- gena – seja para trabalhar em terras brasileiras, seja para a venda nos mercados europeus – logo no início do século XVI domina- rão esse primeiro século de colonização, determinando a liberda- de do indígena nas colônias na exata medida em que, e somente após, os interesses econômicos dos colonos e da Coroa estarem garantidos.

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Desde a Bula Romanus Pontifex Universibus,11 de

08/01/1455, e a Bula Inter Caetera,12 de 04/05/1493, estavam

garantidos os domínios e a imposição da jurisdição da Coroa sobre territórios conquistados, nações ou povos – ou melhor, gentes, do latim, como são encontradas nas Bulas. Inspirado nas denúncias que partiam de dominicanos na América Espanhola, como Las Casas, o Papa Paulo III declarava na Metrópole com a Bula Sublimis Deus que os índios “não estão nem podem ser pri-

vados de sua liberdade e do domínio de seus bens ao contrário, [...]” (CUNHA, 1987, p. 57). Reafirmando esta posição com a Bula Veritas Ipsa, ainda em 1537.

Dada a resistência indígena e o levante dos coloniza- dores contra esses, paralelo à instauração do Governo Geral, o Regimento de 1548 trazido por Tomé de Souza soava ajustar os ideais da Coroa às determinações papais ao regular as rela- ções interétnicas. Aliás, o sucesso do empreendimento colonial também dependia disto também. Mesmo assim, como prova do não cumprimento ante a demanda prática-econômica do sistema mercantilista, em 20/03/1570 era promulgado em Évora uma lei proibindo o cativeiro dos índios – prova de que a vontade do Direito pouco se impunha contra a vontade Econômica.

11 A Bula Romanus Pontifex Universibus ao mesmo tempo que assentia com a con-

quista e invasão de terras para a defesa e aumento da fé Cristã, regulava o comér- cio nestas regiões: “nós permitimos que o referido rei Alfonso e [seu] sucessores e do infante, como também as pessoas a quem, ou qualquer um deles, deve acho que este trabalho deveria ser cometido, pode (de acordo com a concessão feita para o Rei João Martin por V., de feliz memória, e outra concessão feita também ao rei Eduardo de ilustre memória, rei dos mesmos reinos, pai de o dito senhor rei Alfonso, por Eugênio IV, da memória piedoso, pontífices romanos, nossos antecessores) fazer compras e vendas de todas as coisas e bens e víveres que seja, como ele pareça mais adequada, com qualquer sarracenos e infiéis, nas referidas regiões; e também podem celebrar quaisquer contratos, transações de negócios, negócio, comprar e negociar, e realizar quaisquer mercadorias que seja para os lugares daqueles sarracenos e infiéis, desde que não ser instrumentos de ferro, madeira a ser utilizada para a construção, cordéis, navios, ou quaisquer tipos de armaduras, e pode vendê-los para o referido sarracenos e infiéis; [...]”.

12 A referida bula traça a linha a cem léguas das ilhas de Açores e Cabo Verde e as divide entre os Reis Católicos, após as notícias de Colombo. Ainda, a bula faz re- ferência que “nas ilhas e países já descobertos são encontrados ouro, especiarias e muitas outras coisas preciosas de diversos tipos e qualidades”.

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Na prática, aqueles que não representassem perigo ao co- lonizador eram vistos como aliados. Àqueles que não se adequas- sem aos mandos do conquistador-europeu era permitida a justa guerra e, com ela, a escravização.

A regra, de fato, era admitir a liberdade aos indígenas para que vivessem como o vassalo europeu, possuidores de um direito natural e positivo sempre que estivessem integrados e as- sistindo as necessidades dos colonos de forma pacífica, obvia- mente. Isso porque a dependência da mão-de-obra indígena era tamanha para a sobrevivência e lucro do próprio europeu – e a necessidade de manter os indígenas vivos frente à situação de barbárie a que estavam submetidos – que, em face dos exces- sos que missionários e particulares davam prova, muitas medi- das protetivas no sentido de resguardar a presença dos indígenas dentro das povoações foram adotadas pela Coroa.

Nesse sentido, a determinação da presença dos missioná- rios nos descimentos ante as denúncias das arbitrariedades prati- cadas pelos colonos – como confere, por exemplo, a Carta-régia de 24/02/1587 – servirá como uma tentativa de resguardar sua “liberdade”, isto é, a vida quando por bem resolvessem se aldear. Era, assim, o estímulo da escravização da mão-de-obra indígena com a presença, e aquiescência, dos representantes de Deus. De uma forma geral, na medida em que proibia a escra- vização dos indígenas pelos particulares, colocava a igreja numa importante posição de intermediadora no empreendimento da mão-de-obra indígena que, aos poucos, exercerá tão relevante domínio a ponto de serem os jesuítas expulsos na era das refor- mas pombalinas.

A legislação colonial indigenista servirá, sobretudo, de instrumento para dar cabo às ideias colonizadoras. O Direito Indigenista se origina, portanto, a partir das relações comerciais, arbitrário, autoritário, que previa a utilidade da vida indígena ape- nas para satisfação de interesses capitalista. E, uma vez contrários, a escravização forçada e o genocídio se tornavam autorizados.

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CONCLUSÃO

Tecer uma análise jurídica do mapa Terra Brasilis foi pos-

sível nesse trabalho, como demonstrado, a partir da leitura ico- nográfica, qual permitiu interpreta-lo não apenas enquanto ima- gem, mas enquanto ideologia.

Com a desconstrução desse mapa desde os marcos teó- ricos propostos, realizamos uma desconstrução não apenas das imagens, mas, sobretudo, do conhecimento produzido a partir delas. Questionamos tradições políticas herdadas do ocidente, e ao questionar, desconstruir conhecimentos e iniciamos o cami- nho da descolonização.

Ao refletirmos na imagem dos povos indígenas retrata- da pelo invasor-conquistador europeu no início do século XVI, percebemos a influência nos processos de dominação material e simbólico-cultural e na própria configuração da relação colo- nizador e povos indígenas. Mais do que meramente retratar o indígena como o ser nu, enfeitado com plumas, percebemos o in- dígena desempenhando um papel fundamental no motor da roda capitalista que começava a girar à época das chamadas “grandes navegações” e “grandes descobrimentos”, ou seja, no início da mundialização da modernidade.

Ao longo da história colonial, essa representação do in- dígena enquanto mão-de-obra mera fornecedora de produtos da terra, nada mais, seguirá presente na episteme do legislador repercutindo nos métodos de assimilação e integração dos po- vos indígenas à sociedade brasileira. O indígena, tratado como selvagem, que nada produz, muitas vezes visto como entrave ao desenvolvimento do sistema capitalista, terá sua indispensabilida- de reduzida ao longo dos séculos; somente doando certa impor- tância enquanto a vida do próprio colonizador for dependente daquele.

Desde uma perspectiva histórico-crítica do direito im- posto pelo colonizador eurocêntrico, de como a colonialidade segue presente na legislação indigenista, a cartografia nesse tra- balho tratou de destacar em que medida a análise da construção

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dos mapas e de seus signos ganha relevância na projeção políti- co-jurídico epistémica do colonizador e do colonizado.

Desmitificando essa construção epistemológica formula- da desde uma visão parcial e subjetiva presente na ideologia do colonizador temos a possibilidade de escolher se continuamos a projetar essa colonização ou se, alternativamente, construímos novos olhares sobre a realidade brasileira e os povos indígenas. REFERÊNCIAS

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Ana Clara Cor rea Henning, R enata Lobato Sc hlee e P aula Cor rea Henning

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IMAGENS, ESTUDOS DECOLONIAIS

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