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3 DESLEGITIMAÇÃO TEÓRICA E EMPÍRICA DAS TEORIAS DAS PENAS

No documento Conhecimento, iconografia e ensino do direito (páginas 130-134)

“QUESTÃO CRIMINAL”

3 DESLEGITIMAÇÃO TEÓRICA E EMPÍRICA DAS TEORIAS DAS PENAS

Há, no entanto, objeções significativas em relação às respectivas teorias legitimadoras da sanção penal, feitas tanto por representantes da dogmática (crítica) quanto pela pesqui- sa empírica realizada no interior da perspectiva criminológico (crítica).

(a) No que diz respeito à teoria retributiva, Claus Roxin a compreende como cientificamente insustentável, porque (1) a função do Direito Penal é a proteção subsidiária de bens ju- rídicos e, assim, uma pena livre de qualquer finalidade social é inadmissível por carecer de legitimação – sobretudo, porque o Estado, como instituição terrena, não pode realizar a ideia me- tafísica da justiça, e (2) a compensação de culpabilidade por si só não pode fundamentar a pena criminal, tendo em vista que seu pressuposto teórico de “liberdade de vontade” é indemons- trável (ROXIN, 2006, p. 73). Nesse sentido, também Peter- Alexis Albrecht alerta sobre o consenso no âmbito da própria psiquiatria forense de que “a capacidade do autor de poder ter agido diferente no momento do fato, não pode ser comprovada com meios empíricos” (ALBRECHT, 2010, p. 65).

(b) Há, igualmente, diversas críticas dirigidas à função especial-preventiva da pena. Antes de tudo, segundo Claus Roxin, a perspectiva não fornece nenhum princípio de medida limitadora à sanção criminal. Assim, a consequência evidente da pena apenas especial-preventiva seria manter o condenado no cárcere até o momento em que se demonstre sua resso- cialização. Surgem ainda questionamentos sobre o direito do Estado de “educar” ou “tratar” sujeitos com capacidade jurídi- ca (ROXIN, 2006, p. 76). De acordo com Karl-Ludwig Kunz, a execução terapêutica não deveria intervir sobre a autonomia do preso, facultando-lhe a participação em programas de res- socialização (KUNZ, 1994, p. 294), contrariamente a uma atual atitude paternalista do Estado que pretende o melhoramento

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do sujeito de acordo com seus próprios critérios morais.7 Roxin

indica ainda outra fragilidade da perspectiva especial preventiva. Há autores de fatos puníveis que não necessitam de intervenção ressocializadora, como é o caso, por exemplo, dos sujeitos que praticaram crimes imprudentes ou ocasionais. Aqui não haveria como legitimar a pena criminal do ponto de vista especial-pre- ventivo (ROXIN, 2006, p. 77).

Por outro lado, e além destes questionamentos teóricos, as pesquisas empíricas indicam amplamente um quadro negativo sobre o efeito especial preventivo da sanção criminal. A “neutra- lização do condenado” na prisão (prevenção especial negativa), embora possa evitar o cometimento de outros fatos puníveis du- rante a execução, prospectivamente é contraproducente, porque a pena privativa de liberdade exerce uma influência nefasta sobre a vida do preso. O encarceramento conduz à desintegração social do condenado: São rompidos praticamente todos os laços sociais fora do cárcere – no âmbito do trabalho, dos amigos, da famí- lia etc. e o condenado é condicionado a viver segundo a rotina prisional repressiva e uniformizante – que nada tem a ver com a vida fora da prisão (CIRINO DOS SANTOS, 2012, p. 442-446). Além de se sujeitar à disciplina do cárcere, o preso preci- sa adaptar-se ainda à subcultura prisional. Significa dizer: se ele não era “violento” ou “corrupto” antes de ingressar na execu- ção penal, então eventualmente precisa se tornar “violento” e “corrupto” para sobreviver no cárcere. E quanto mais tempo o condenado permanecer nesse ambiente, tanto maiores serão suas deformações psíquicas e emocionais, e tanto mais provável será sua inserção em carreiras criminosas (CIRINO DOS SANTOS, 2012, p. 442-446). Assim, conforme pontuado por Alessandro Baratta (2002, p. 184), a submissão do detento aos processos de “desculturação” – “desadaptação às condições necessárias para vida em liberdade” – e “aculturação” ou “prisionalização” – “as-

7 CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal: parte geral, op. cit., p. 425; ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.; ALBRECHT, Criminologia: uma fundamentação para o direito penal, op. cit., p. 127.

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sunção das atitudes, dos modelos de comportamento e valores da subcultura carcerária” –, não podem ser equilibrados por ne- nhuma técnica psicoterapêutica e pedagógica e impedem qual- quer tentativa de “ressocialização do condenado” na prisão (pre- venção especial positiva).

Após o cumprimento da pena, o sujeito que desaprendeu a viver em sociedade retorna ao convívio social. E nesse ambien- te sofre da rotulação de “excondenado”, com duas consequên- cias gravosas: Por um lado, dificilmente consegue se reintegrar na sociedade, tendo em vista que a desconfiança dos outros dificulta a reconstrução dos velhos e a construção de novos laços sociais de trabalho, amizade etc. Por outro lado, se, como revela a psico- logia, o sujeito se constitui a partir do olhar do outro (LEITE, In

PATTO, 1997), então o egresso do sistema prisional tende a assi- milar essa autoimagem negativa de “ex-condenado”. Pode então não encontrar o estímulo necessário para abandonar o modo de vida da subcultura prisional eventualmente assimilado durante a execução penal.

A representação nefasta da própria imagem, associada à falta de apoio estrutural após a saída do cárcere, pode induzir a atuação do sujeito de acordo com o papel que lhe foi atribuído socialmente, ou seja, conforme um “criminoso” – realizando- -se a “self fulfilling prophecy” (CIRINO DOS SANTOS, 2012, p. 442-446). Desse modo, na contramão da pretendida função de prevenir crimes futuros, a inserção do condenado na institui- ção prisional favorece, na verdade, a sua reincidência em fatos puníveis. Deve-se reconhecer, portanto, o fracasso das teorias correcionais (PAVARINI, 2006, p. 67-71). De forma conclusi- va, Albrecht afirma que “é de se supor, no melhor dos casos, um não efeito e, no pior dos casos, um efeito contraprodutivo. [E] Isto vale especialmente para a pena privativa de liberdade” (ALBRECHT, 2010, p. 86).

(c) Por fim, em relação à teoria da prevenção geral da pena, existe um amplo consenso que apenas algumas pessoas planejam tão racionalmente o cometimento de fatos puníveis a

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ponto de serem “intimidadas” pela ameaça penal. Em todo caso, o que as desestimularia não seria a ameaça em si, mas o risco de ser descoberto e perseguido pelo sistema de justiça criminal8.

Nas palavras de Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar,

[...] a imensa maioria das pessoas evita as condutas aber- rantes e lesivas por uma enorme e diversificada quantidade de motivações éticas, jurídicas e afetivas. [...] não é a pre- venção geral negativa que dissuade as pessoas ou conserva a sociedade: trata-se, sim, de uma ilusão do penalismo que identifica direito penal com cultura (ZAFFARONI et al., 2006, p. 118-119).

A ineficácia da elevada ameaça penal resta empiricamente comprovada e, além disso, também a função de prevenção geral positiva da pena parece empiricamente inacessível (ALBRECHT, 2010, p. 91). Assim, para Cirino dos Santos (2012, p. 427), o dis- curso descreve antes um mundo imaginário.

Diante das críticas, acima referidas, emerge – ainda no interior da própria dogmática – a teoria de unificação das fun- ções da pena como perspectiva doutrinária que defende a com- pensação das deficiências individuais de cada teoria penal com a justaposição dos princípios retributivo, especial-preventivo e geral preventivo – dando luz a uma ampla legitimação da sanção criminal (ALBRECHT, 2010, p. 428),subscrita inclusive pelo ar- tigo 59 do Código Penal brasileiro.9

Não há como negar que essa elucubração teórica é mais complexa do que as respectivas teorias isoladas. Contudo, a teo- ria da unificação é incapaz de fazer frente às constatações empí- ricas sobre a ineficácia das funções preventivas atribuídas à pena

8 Idem, p. 86-87. ROXIN, Strafrecht: allgemeiner teil, op. cit., p. 80.; CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal: parte geral, op. cit., p. 427.

9 Artigo 59 do Código Penal: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos anteceden- tes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabele- cerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do cri- me (...).” (BRASIL. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del- 2848compilado.htm>. Acesso em: 29 jul 2013.)

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criminal, conforme explicitado anteriormente. Levando-se em conta o fracasso dos objetivos declarados da pena, na verdade, o discurso jurídico acima problematizado é uma tentativa de legiti- mação de uma ordem injustificável.

4 “MOVIMENTO” DAS CRIMINOLOGIAS CRÍTICAS

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