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2 MULHER CASADA E MULHER-IDEAL: ÍCONES NOS CARTUNS

CONFORME A MORAL E O DIREITO

2 MULHER CASADA E MULHER-IDEAL: ÍCONES NOS CARTUNS

Através dos cartuns publicados na seção Da Mulher para a Mulher da revista O Cruzeiro entre 1946 a 1948, podemos dis-

tinguir determinadas caracterizações e categorias que seguem a idealização acima descrita em aspectos de docilidade, beleza e submissão. Algumas imagens, a seguir, evidenciam a proposta de modelo feminino através do elogio ou da censura de alguns des- tes aspectos.

A análise documental, proposta por Mannheim e aper- feiçoada por Bohnsack, foi adotada neste trabalho sob critérios que se ajustam ao material pesquisado. Em primeiro lugar, adota- remos a perspectiva de que estas imagens propõem uma visuali- zação de verdades sociais, empiricamente, compreendidas através

das imagens – compreensão esta tácita (BOHNSACK, 2007, p.

287-288), pois o domínio do não-dito faleceu com as mulheres da(na)quele tempo; domínio este do silêncio social e jurídico so- bre a opressão sentida por elas. Assim, as imagens permitem ex- por o viés de deturpação da expectativa que permeia uma piada, lembrando que a expectativa deturpada é a do horizonte de libe- ração ou simetria da mulher em relação ao homem ou ao esposo, na relação conjugal.

Lizandro Mello e K

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Em seguida, encaramos a compreensão ateórica, em seu matiz de conhecimento sobre o habitus transmitido principal-

mente através da própria imagem, pela via da iconicidade. Cada imagem aqui reflete um lugar de comportamento, facilmente identificável pelo ícone da mulher casada (e seu espelho, o ícone da mulher solteira – assumimos que o autor das imagens não tinha em mente a mulher divorciada ou desquitada ou viúva). A partir daí, partimos para uma análise iconológica, buscando o sig-

nificado propriamente dito, um modus operandi da produção destas

imagens e buscando o iconológico como expressão do período sócio-histórico e habitus panofskiano dos produtores de imagens que reproduzem (BOHNSACK, 2007, p. 290-292) uma matriz colonial.

Conjuntamente, intenta-se utilizar dois níveis de sentido mannheimianos. O segundo nível, ou expressivo, buscando o con-

teúdo expressivo que o produtor da imagem – não o desenhista, individualmente, mas todo o status quo do modo produtivo da

revista e sua circulação, de anunciantes a editores – tenta mani- festar em sua obra. E o terceiro nível, ou documental, interpretan-

do o fenômeno cultural (jurídico e sociológico) em seguimento à identificação de uma postura frente à realidade sobre os quais esta postura repousa, passando este fenômeno inteiro a ser com- preendido como manifestação ou documento de uma determinada concepção de mundo – a patriarcal, de matriz colonial.

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O casamento e a m ulher na iconog rafia desenhada de O Cr uzeiro (1946-1948)

Na imagem acima uma mulher acompanhada por um ho- mem em situação intima e cotidiana – portanto casados: noivos ou namorados tinham uma intimidade muito limitada, e a seção da revista trabalhada não incentivava, textualmente, liberdades demasiadas antes do casamento. Como a beleza e o comporta- mento da mulher estão intimamente interligados com a felici- dade conjugal, a postura, a cintura fina e o alinho de vestes e penteado da mulher na imagem são os pontos chave para iden- tificar a felicidade do casal, mesmo que as expressões dos rostos não sejam mostradas. Na ocorrência da imagem de uma mulher ideal – aqui está seu ícone – o homem se mostra interessado nela:

o comportamento gestual demonstra isso, no abraçar e no rosto virado em sua direção.

Nas imagens, esse ícone da mulher esteticamente dese- jável representada nos padrões de “beleza” da época, é o centro dos olhares masculinos como a imagem abaixo mostra (em clara contraposição ao ícone da mulher casada-desleixada):

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( Imagem 2 )

Acima, o campo à direita da logomarca da seção tem a imagem de um casal representado. O homem se mostra voltado para a mulher-ideal (como na imagem 1), que neste caso está situada do lado oposto à logomarca, à esquerda, em campo to- talmente oposto à sua esposa. A mulher casada representada se encontra ao lado de seu marido em atitude complacente/ pas- siva, mesmo ao notar que este esteja olhando outra mulher. A interpretação da imagem permite ver dois certos conformismos da mulher casada: tanto com o olhar do esposo e sua expressão, de sorriso lânguido dirigido à mulher-ideal, como a lamentação boquiaberta causada pelas feições da moça atraente, as quais não

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O casamento e a m ulher na iconog rafia desenhada de O Cr uzeiro (1946-1948)

Seja por descuido com a aparência, ou pela ausência da juventude, a mulher casada, na imagem não representa o ideal, se aproximando talvez de uma imagem mais corriqueira e real da mulher casada de meia idade, ao mesmo tempo em que está jus- tificando a falta de interesse do marido pela esposa e o interesse por outras mulheres mais “bonitas” e mais jovens reforçando que “a afinidade sexual entre os cônjuges não é fundamental. [...] E não importa se o marido satisfizer seus incontroláveis desejos sexuais nos braços de outras. Amor contido, regrado higiênico é no leito conjugal” (PINSKY; PEDRO, 2012, p. 487). É a retrata- ção de uma esposa infeliz.

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Para a imagem acima, antes de imergir aos níveis de aná- lise mais profundos, por se tratar de uma tirinha, é importante descrevê-la, visto que para entender a imagem, precisa-se levar em conta que a análise da imagem carrega os fenômenos cul- turais e a concepção de mundo que é expressada na imagem (MARTINEZ, 2006, p. 400), principalmente tratando-se de charges ou, como neste caso, tirinhas. Em seis quadros há uma mulher aparentemente casada que encontra a foto da suposta amante do marido e aos prantos pede-lhe satisfação. Desolada a mulher pede ajuda a uma cartomante que a aconselha a resolver a situação agredindo o marido. Ao fazer a agressão o marido se irrita e resolve ficar com a amante que coincidentemente é a car- tomante a qual a esposa pediu ajuda. Dentro da linha que seguem as outras imagens, o primeiro aspecto a ser analisado é a aparên- cia. Logo no primeiro quadro, a esposa traída não mostra uma boa postura e nem se encontra nos padrões de beleza já citados.

Isto por si só justificaria o interesse do marido por outras mulheres, contudo a esposa se mostra também com um humor instável e explosivo frente ás ações do marido. Uma boa espo- sa deve ser agradável e contida em suas emoções, pois brigas, discussões – e neste caso a agressão -afastam o esposo do lar,

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O casamento e a m ulher na iconog rafia desenhada de O Cr uzeiro (1946-1948)

exatamente o que está representado na tirinha. Ela não deve cau- sar brigas, não deve lembrar o marido das obrigações, não pode relembrar os erros que ele porventura cometeu ou queixar-se deles. Desta forma, a esposa corre o risco de ser a causadora da infelicidade do seu lar, além de ser um motivo para um possí- vel afastamento do marido. Tanto Priori (2011) como Bessanezi Pinsky (1997, 2012) ressaltam que o papel de boa esposa, está diretamente relacionado com a felicidade do marido, se este, por sua vez, está infeliz, pode comprometer a vida conjugal, mas a responsabilidade por um lar desfeito, via de regra, recai sobre a mulher.

Outro erro de comportamento da esposa na imagem é procurar ajuda de uma cartomante para resolver seus problemas conjugais. A seção na qual se encontram essas tirinhas aconse- lhavam a mulher a sempre resolver seus problemas diretamente com seu marido ou sozinha, mas nunca mencionar os problemas conjugais a terceiros por mais próximas que sejam essas pessoas, como no seguinte trecho da seção onde se encontram as ima- gens, onde a conselheira respondia à uma carta da leitora sobre a infidelidade do marido: “A dignidade cabe na vida a qualquer mulher, qualquer que seja seu estado civil. [...] É isso, portanto, que lhe aconselho: resolva sozinha o seu problema, se dar ouvi- dos a ninguém, nem a seus pais” (O CRUZEIRO, 1946, p. 68) Interpretando as imagens, mesmo que demonstre que a carto- mante tenha planejado a separação do casal com o intuito de ter o homem para si, a mulher casada é colocada como responsável

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pela traição do marido, já que nem a aparência, nem o comporta- mento, tinham os traços desejados para a boa esposa. Vale lem- brar que a tirinha carregava um conteúdo humorístico.

Após as análises das imagens, tem-se um padrão. Quando a esposa aparece histérica, mal arrumada, com má postura e/ou muito acima do peso, ela está infeliz, e geralmente seu marido está interessado em outra que esteja possuindo as características

desejáveis da mulher na década de 1940. Sant’Anna coloca que até

a década de 1950 o corpo da mulher não pertencia exclusivamen- te a ela, mas

[...] poderia significar uma prova de virtude do caráter e, aceitar de bom grado submeter os cuidados do corpo à ad- ministração, controle e responsabilidades masculinos: pais, irmãos mais velhos, maridos e namorados, deveriam, as- sim, manter o governo dos corpos das mulheres na medida, também, em que era por meio destes corpos que uma parte da masculinidade poderia ser confirmada e realçada social- mente (2004. p.126.).

A imagem, a beleza e os cuidados da mulher casada, vol- tam-se sempre ao marido, e quanto mais jovem e bela além de

possuir a atenção do esposo, suas chances de felicidade do lar e da família aumentam. Se a estética da mulher não se encontra agradável ao marido, ela precisa entender e aceitar os olhares que ele direcionar a outras mulheres, mas permanecendo ao seu lado e mantendo a postura de boa esposa caso contrário, estará fadada à infelicidade e até a ruína do lar, que caracteriza o fracasso na vida da mulher neste período.

3 O MODELO E SUA DESCONSTRUÇÃO: