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Assistimos hoje ao retorno do liberalismo selvagem. Numa terra em transe e num mundo cada vez mais em transe, o ensino de teologia terá de redefinir, preferencialmente em termos de serenidade e crítica, o lugar que confere ao fenômeno religioso.

Odair Pedroso Mateus186

Essa pesquisa procurou compreender o significado social de uma instituição de educação teológica no contexto do protestantismo brasileiro. Trata-se de uma instituição marginalizada, a considerar somente os critérios quantitativos como aqueles que definem a importância de uma escola. Trata-se de uma instituição centenária, muitas vezes existindo pela inércia de pessoas que se recusaram a transformá-la num lugar de formação burocrática destinada a atender demandas de aumentar o número de membros da igreja – o que se tentou fazer dela muitas vezes.

É pela luta consciente de intelectuais engajados que o Seminário procurou cumprir a vocação da educação teológica marcada pelo princípio protestante: formar teólogos que se insiram na sociedade numa perspectiva crítica e profética. Nesta perspectiva foram formados intelectuais, que aturam nos ambientes religiosos, mas que também se inseriram na sociedade como promotores da cultura reformada, moderna e protestante. O trabalho escolhido para exercício dessa vocação foi predominantemente a docência.

A motivação para a pesquisa partiu, em parte, dessa constatação preliminar, de que a docência é espaço bastante ocupado por teólogos dessa tradição. Coincidência? Considerávamos que se tratasse de estratégia de sobrevivência eclesiástica, a estabilidade profissional que daria liberdade ao pastor protestante manter o discurso crítico, livrando-se, ao menos em parte, da ameaça contra o seu direito de trabalhar. Em conversas com alunos, professores e pastores formados ou em formação pela instituição estudada, é comum a referência de que é necessário aprenderem a “fazer tendas”, eufemismo para o exercício de uma profissão que lhes

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permita não depender dos proventos do sacerdócio187. Procuramos verificar, nesta pesquisa, se as motivações para a inserção no mundo acadêmico e a prática da docência se esgotavam em estratégias de sobrevivência institucional ou preservação da liberdade do discurso crítico.

A pesquisa em História das Instituições Escolares permitiu a convergência de diversos interesses. Dentre os quais, destacamos a possibilidade de inserção no debate sobre a educação teológica a partir do prisma do filósofo e do historiador. O contato com Lucien Febvre e Marc Bloch foi de uma riqueza inesgotável. Descobri- os no doutoramento, embora já conhecesse bem o discípulo de Febvre, Émile- Guillaume Léonard, que introduziu no Brasil o estudo crítico sobre a história do protestantismo. O contato com esses mestres foram de inestimável riqueza.

Dois pensadores já conhecidos, mas não antes aprofundados, foram Paul Tillich e Antonio Gramsci. Registramos o diálogo profícuo, com eles e entre eles, que deu novas perspectivas à pesquisa. Ambos foram sugestões: Gramsci, sugestão da professora Ester Buffa, orientadora, que indicou seu estudo sobre formação de quadros de intelectuais e a formação da cultura; e Tillich, sugestão do professor Jardilino, orientador inicial e coorientador, que indicou a apropriação do conceito de princípio protestante para análise do perfil do teólogo formado na instituição estudada.

Queremos enfatizar também o caráter inacabado do trabalho, embora seja lugar comum afirmar que um trabalho de pesquisa é sempre inacabado. Trata-se de uma questão epistemológica: o conhecimento precisa sempre se refazer para continuar fazendo sentido188.

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Essa expressão é uma alusão ao apóstolo Paulo, que trabalhava produzindo tendas para não receber salário das igrejas e assim manter a liberdade de sua pregação (ver o texto bíblico 2Tessalonicenses 2.9, 3.8).

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Trata-se também de questões objetivas, materiais, que nem sempre permitem a realização do trabalho intelectual em condições adequadas. As limitações de força maior impediram que a presente pesquisa pudesse ter se dedicado a temas e preocupações presentes no planejamento inicial. Do que não pudemos realizar, citaremos alguns pontos: a produção intelectual dos egressos da Faculdade em Programas de Pós-Graduação em instituições nacionais e internacionais, principalmente no Instituto Bossey, ligado à Universidade de Genebra, que conta com um docente formado no Seminário Teológico de São Paulo, e pra onde muitos egressos foram aperfeiçoar seus estudos; levantamento completo de toda a produção de Lucien Febvre, Émile-Guillaume Léonard e dos estudos histórico-sociais sobre o protestantismo, principalmente os textos que ainda não são conhecidos no Brasil; da mesma forma, era parte do plano inicialmente fazer um levantamento sobre as pesquisas, estudos e artigos sobre protestantismo e educação que não foram publicados ou não circulam mais, produção que pode ser encontrada, presumimos, em arquivos de instituições inter- denominacionais ou ecumênicas; gostaríamos ainda, de realizar um ensaio filosófico sobre os

Sem embargo, porém, o percurso percorrido nos permitiu tecer algumas considerações finais. A proposta inicial consistia na análise dos princípios filosóficos do projeto educacional do Seminário Teológico de São Paulo. Constatamos que não houve predominância de um único projeto, mas um conflito bastante intenso entre duas propostas.

A primeira é expressão de um pensamento conservador, que seria melhor descrito como um fundamentalismo esclarecido, e procurou adequar a educação teológica para as demandas internas da igreja. A definição de Abival Pires da Silveira sobre essa proposta é bastante lúcida: “A Igreja estava voltada para ela mesma, olhando para ela mesma e assim mesmo ela não se via bem”189.

A outra proposta é expressão de um grupo mais aberto, assumindo um ideal progressista. Principalmente a partir da década de 1980 houve uma preocupação muito grande com as questões sociais na Direção e entre os professores do Seminário. Um fato a que não se deu muita importância é que os primórdios da Teologia da Libertação, por exemplo, remontam a protestantes. Primeiramente com Richard Shaull, na década de 1950 quando lecionou no Seminário Presbiteriano de Campinas, influenciando toda uma geração de teólogos brasileiros, incomodando-os para a elaboração de uma teologia latino-americana. Outro marco deste movimento da Teologia da Libertação foi Rubem Alves, que fez sua tese de doutoramento em Princenton, sob orientação justamente de Shaull. Sua tese, concluída em 1968, era intitulada Towards a Theology of Liberation. Em 1971 Gustavo Gutierrez publicou o livro que é comumente considerado o marco fundante deste movimento teológico- político-religioso, Teologia da Libertação.

Isso levanta a questão de que o princípio protestante conduz necessariamente a uma inserção crítica na sociedade, trabalhando para sua transformação. Se isso é verdadeiro, foi necessário verificar como se dá organização político-pedagógica para formação desse espírito protestante. A educação teológica

pressupostos teológicos da educação e os pressupostos educacionais da teologia. Enfim, muitas coisas que não puderam ser realizadas por falta de condições materiais. Todavia, todas permanecem como plano para uma pesquisa que está longe de terminar. Registramos ainda o fato de que muito material, principalmente fontes primárias, tornaram-se acessíveis a nós somente na fase final da pesquisa, em razão da dificuldade de reunir todo esse material, boa parte disponível em arquivos pessoais. Registro a importância e riqueza do material cedido pelo professor e pastor Leonildo Silveira Campos, a quem sou devedor.

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seria o espaço privilegiado para essa tarefa. No fundo, havia uma questão, vital: quais as contribuições sociais da educação teológica protestante?

Tillich nos ajudou a compreender o princípio protestante: “o elemento protestante do protestantismo é a profunda proclamação da situação limite da humanidade e o protesto contra qualquer intento de esquivar-se dela por meios religiosos” (1965, p.298). Esse é um elemento utópico, sem o que qualquer forma de educação torna-se alienada e legitimadora do status quo. Fundamental ainda é a percepção de Tillich de que o princípio protestante não é exclusividade do protestantismo histórico. De fato é possível encontrar possibilidades de diálogo com autores não marcados por nenhuma tradição religiosa, como, por exemplo, Carlos Bauer:

É a compreensão do perverso espraiando-se pelo cotidiano da existência humana que nos leva a utopia. Não podemos abrir mão da utopia sob pena de matar a possibilidade do humano instituir-se como uma realidade presente em cada um de nós. Quando você abre mão da utopia, nada tem sentido, nem o amor. Vive-se a desesperança e o medo e não se pode falar em educação e sim em mera reprodução (BAUER, 2005, p.87).

Em convergência à importância que Bauer atribui à utopia no compromisso com uma educação libertadora, a contribuição do pensamento protestante para a educação é grandiosa, pois ela ajuda no processo libertador da compreensão de que a religião não é mais importante que as pessoas. É essa a perspectiva que leva os protestantes a se inserirem na sociedade, buscando os meios políticos para emancipação do ser humano.

A dificuldade encontrada pela teologia na busca de encontrar liberdade para criar um conhecimento crítico é a mesma encontrada em setores conservadores da sociedade para promover mudanças. Sobre a postura das igrejas protestantes e de seus seminários em relação a seus intelectuais na época da ditatura militar, Leonildo Silveira CAMPOS percebeu uma identificação das lideranças eclesiásticas com o autoritarismo presente na sociedade: “as autoridades religiosas, inspiradas pela ideologia da segurança nacional ou identificadas com interesses do regime militar brasileiro, fizeram cair sobre essa intelligentsia [destacados teólogos protestantes] a ira repressora” (2008, p.113). É dessa forma que o perigo atribuído ao pensar e ao

fazer teológico é identificado com o perigo de todo o pensamento crítico. Desta forma, é possível se justificar a relevância da educação teológica, principalmente num país laico, mas profundamente marcado pela religião.

O Seminário Teológico de São Paulo foi muitas vezes em sua história usado como instrumento ideológico. A fuga das “coisas do mundo”, como a recusa de tratar o Seminário como instituição educativa, sujeita a intervenções políticas e científicas, sob o argumento de que religião não se mistura a esses assuntos, dá razão a Marx ao identificar esse tipo de religião como ópio, que tacitamente legitima as estruturas dominantes e opressivas da sociedade.

A presença do principio protestante colaborou para as questões educativas na Faculdade de Teologia, pois não há viabilidade deste princípio fora do contexto da formação de intelectuais orgânicos, no sentido gramsciano. O que verificamos na instituição escolar estudada é a tentativa constante de dar significado à educação teológica numa perspectiva de “formação de formadores”, que deverão descobrir que mais importante que o lugar de sua atuação é o significado de sua ação. Consideramos que essa é a explicação para o fato de encontramos tantos teólogos envolvidos com a docência, não exclusivamente na teologia, mas nas áreas de Filosofia, Letras e Ciências Sociais. Inverte-se, aqui, o lema propalado pelo senso comum, segundo o qual docência é sacerdócio: para o princípio protestante, sacerdócio é docência.