• Nenhum resultado encontrado

1. HISTÓRIA E PESQUISA

1.5. Protestantismo e educação no Brasil

Temos pesquisado há algum tempo as relações entre protestantismo e educação no contexto brasileiro43. Nesses estudos, pudemos verificar que a história do protestantismo brasileiro está marcada pelas questões relativas à educação. De certo modo, a preocupação com a educação resulta da compreensão que o protestantismo tem de sua missão, que pode ser sintetizada no seguinte debate: a igreja deve se ocupara somente com a evangelização e com as questões religiosas ou deve prover essa função primeva com outros instrumentos de transformação individual e social?

Da divergência de respostas a essa questão surgiram os diversos ramos do protestantismo. Acrescenta-se o fato de que o culto protestante promove um

43

As secções sobre Protestantismo e Educação no Brasil e As escolas paroquiais do protestantismo

brasileiro: o caso do Colégio Evangélico são resultados de pesquisas realizadas em parceria com

José Rubens Lima Jardilino e Éber Ferreira Silveira Lima. Muitas das ideias desenvolvidas aqui foram trabalhadas anteriormente em artigos que publicamos juntos. Ver: PROENÇA LOPES, Leandro de; JARDILINO, J. R. L.; SILVEIRA, E. F. (2011; 2010).

esvaziamento dos aspectos simbólicos presentes nos ritos, em função da oposição, necessária ou imposta44, em oposição ao culto católico. Isto fez com que o culto protestante se concentre no discurso, o que exige o mínimo de preparo intelectual dos fiéis, que devem ser capazes de ler e compreender a dinâmica do culto e da vida religiosa pautada na observação das doutrinas. Isso fez com que as missões organizassem escolas praticamente na mesma proporção em que organizavam igrejas45. O que coloca a questão: qual o objetivo dos missionários ao oferecer educação ao povo? O fato é que os missionários entendiam que o desenvolvimento da religião protestante estava diretamente ligado ao investimento na educação, como exemplifica a seguinte citação, expressa nas palavras de Ashbel Green Simonton, um dos pais fundadores do presbiterianismo brasileiro, numa reunião de líderes em 1867:

outro meio indispensável para assegurar o futuro da Igreja evangélica no Brasil é o estabelecimento de escolas para os filhos de seus membros... Mas é necessário não cedermos a nenhum obstáculo... O evangelho dá estímulo a todas as faculdades do homem e o leva a fazer os maiores esforços para avantajar-se na senda do Progresso (HACK, 2000, p.59).

Consideramos que o ato educativo desses missionários não pode ser reduzido somente aos aspectos religiosos. Herdeiros do projeto político-pedagógico da Reforma Protestante do século XVI, os missionários enviados ao Brasil em meados do século XIX demonstraram-se sensíveis às questões sociais e às carências da realidade educacional que encontram. Concomitantemente à organização das primeiras igrejas protestantes em solo brasileiro, deu-se também a implantação de escolas bíblicas46, bem como a organização das primeiras escolas paroquiais. A elite paulista, principalmente, proporcionava um clima favorável às novas e modernas ideias pedagógicas praticadas nas escolas paroquiais, de forma

44

Como determinou a Constituição de 1824, em seu artigo 5º. Ver p.139.

45

LÉONARD faz uma diferença entra as estratégias missionárias das diferentes denominações: “ os propagandistas batistas, brasileiros e americanos, se mostraram inicialmente desinteressados por todo meio de evangelização que não se exercesse de maneira direta, enquanto presbiterianos e metodistas fizeram acompanha-la da fundação de colégios paralelamente à fundação de igrejas” (1981, p.173).

46

Conhecidas como escolas dominicais, essas são classes avulsas, organizadas nas igrejas, nas quais são ensinadas a Bíblia e as doutrinas. Trata-se de uma prática bastante disseminada no protestantismo histórico; mas para que tal empreendimento fosse possível, era necessário que as pessoas soubessem ler. Daí a necessidade de promover a alfabetização.

que elas acabaram dando sua contribuição para os novos rumos da educação brasileira.

De qualquer forma, a ação educativa foi fundamental para a empresa missionária protestante. Todavia, esse aspecto permanece pouco estudado, tanto no que diz respeito às marcas do protestantismo na educação brasileira, quanto em relação a sua importância na própria História do protestantismo no Brasil. Poucos estudos foram feitos sobre o tema47. Pesquisadores como Hack (2000) e Mendonça (1984; 1990; 1991) consideram que a criação de escolas pelo protestantismo brasileiro foi uma estratégia missionária. Essa hipótese tem fundamentação em fontes históricas relevantes, como releva o seguinte documento da igreja Batista, citado por Léonard:

Nós evangélicos estamos plenamente convencidos da superioridade dos nossos ideais, mas o povo culto em geral não aceita o Evangelho antes de ficar convencido da superioridade da cultura evangélica. Afinal de contas, a evangelização do Brasil implica no conflito dos dois sistemas de civilização (católico e evangélico), e o resultado dependerá da possibilidade de demonstrar a superioridade do cristianismo evangélico. Não será fácil no Brasil onde a vantagem do treinamento dos séculos está com os católicos. Os ideais, o modo de pensar, as instituições políticas e domésticas, os costumes e hábitos sociais do povo, o coletivismo social são influenciados e formados pela religião católica, e naturalmente resistem até entre os próprios evangélicos aos princípios de democracia e individualismo. Não obstante o poder maravilhoso do Evangelho na transformação imediata dos ideais dos indivíduos, a superioridade das doutrinas batistas não será demonstrada ao povo brasileiro exclusivamente no campo da evangelização. O povo ficará convencido pelos frutos, do Evangelho. É justamente no campo da educação que o Evangelho produz os seus frutos seletos e superiores, homens preparados para falar com poder à consciência nacional. O Evangelho encerra os princípios de democracia, individualismo, igualdade de direitos, liberdade intelectual e religiosa... Não é por acaso que nos países onde o catolicismo predomina maior porcentagem de analfabetismo48.

A educação ajudaria a criar o clima favorável ao desenvolvimento da religião protestante. Mendonça desenvolve esta ideia como uma das hipóteses de sua tese doutoral (1984), a partir do seguinte questionamento: quais as razões que levaram

47

Os estudos clássicos sobre o tema são: MENDONÇA (1990; 1991); RAMALHO (1976); HACK (2000) SCHROEDER (1982); BOAVENTURA (1979; 1991). Recentemente têm sido defendidas teses e dissertações sobre essa temática, como procuramos destacar no primeiro capítulo.

48

A passagem faz parte da argumentação do missionário Crabtree para o investimento nas obras educacionais (citado por LÉONARD, 1981, p.173-174).

os missionários a preocupar-se com a educação formal do povo brasileiro? Duas são as respostas a ser consideradas: preocupação com o desenvolvimento da nova igreja, uma vez que religião protestante é centrada no discurso, e necessita de membros letrados; ou preocupação social diante do grave quadro de analfabetismo.

A partir desses estudos pioneiros, as pesquisas recentes sobre protestantismo têm considerado as relações entre Religião e Cultura com maior interesse. Se esses elementos são tratados como inseparáveis, conduzem as pesquisas sobre protestantismo e educação a partir dessa relação; daí que se pode afirmar que a educação não foi somente uma obra filantrópica dedicada a um povo atrasado, mas foi a causa importante para a trabalho religioso49. Essa é a tese defendida pelos autores citados até o momento. Antes de fazer adeptos, a religião reformada precisa fazer leitores, alfabetizar as pessoas para compreender a racionalidade do culto e da doutrina. Segundo Mendonça (1984), no Brasil, duas estratégias foram propostas para essa finalidade:

Nas zonas rurais, os missionários deviam instruir o povo e prepará-los para o culto baseado no discurso, para a leitura da Bíblia e do catecismo de fé - uma fé laica. No campo teria se dado a aceitação do protestantismo pelos pequenos sitiantes, pobres e livres. A expansão desse novo sujeito religioso pela via econômica teria sido facilitada pela cultura cafeeira e a trilha que ela percorreu na economia brasileira. Formaram-se, nas zonas rurais, bases importantes para a cultura protestante brasileira, como se percebe no famoso quadro dos dois caminhos, encontrados em quase todas as casas de evangélicos na primeira metade do século XX. Neste quadro são apresentados dois caminhos: o largo, que leva à condenação, e que é relacionado às coisas da cidade; e o estreito, que conduz à salvação, em que se encontram as coisas relativas ao campo50.

Nos centros urbanos era necessário preparar as elites para a transformação de mentalidade que fazia parte dos objetivos missionários, o que se daria por meio

49

Émile Léonard analisa as lutas eclesiásticas e as separações ocorridas no presbiterianismo brasileiro no início do século XX, considerando que a questão educacional foi um tema importante desse debate entre o grupo nacionalista e o grupo das missões norte-americanas. O grupo nacionalista reivindicava “modalidades de evangelização por meios unicamente eclesiásticos e religiosos, mais diretos e mais francos do que a tática demasiadamente hábil dos colégios ‘mistos’” (LÉONARD, 1981, p.147).

50

A referência a esse quadro, e sua presença significativa no imaginário evangélico, ajuda a compreender a resistência, por parte da cultura evangélica, à teologia e à Modernidade.

das escolas e pela educação não-formal e informal51. A nova religião não queria produzir apenas uma civilização, mas um estilo de vida: o American Way of Life (Mendonça 1984).

É possível situar, ou justificar, esse ethos protestante que acompanhou outros processos missionários desde os princípios da Reforma e pela difusão do princípio protestante na Europa oitocentista, que foi percussora na luta pela Educação para todos. Exemplo disso foi o ideal de Comênio, que não só escreveu uma normatização didático-pedagógica, mas organizou todo o sistema da escola básica na Europa reformada52.

No Brasil, os protestantes – vindos dos EUA, país recém-dividido pela guerra civil – mantêm as mesmas raízes da tradição reformada no que diz respeito à Educação: fundar escolas. Com os missionários, chega também a experiência da escola de paróquia53, que depois dá lugar aos colégios americanos e, posteriormente, às universidades, como aconteceu nos EUA (Harvard, Princeton e outras).

Não é fácil concluir se a organização de escolas no Brasil foi propaganda religiosa ou vocação social do protestantismo. Porém, é possível verificar algumas possibilidades de análise a partir de uma perspectiva político-social que teria criado o ambiente certo a receber a religião protestante. No caso da América Latina54 e, em especial, no Brasil, foram as forças políticas e econômicas do liberalismo inglês que permitiram a entrada do Protestantismo. Contribuíram também os interesses da elite

51

Amparamo-nos na conceituação definida pela professora Maria da Glória Gohn. A dimensão educativa informal é característica das religiões, mas o protestantismo destaca-se pelos projetos pedagógicos inseridos na experiência religiosa, como por exemplo, a instituição da Escola Bíblica Dominical.

52

Podemos citar também o exemplo dos protestantes na França; animados pelo espírito laico, ajudaram a organizar a política escolar da III República. Conforme Jacqueline GAUTHERIN (2006, p.91) “a pequena minoria protestante exerceu uma influência notável sobre a pedagogia universitária e sobre a Ciência da Educação”. Na verdade é possível falar até mesmo de uma certa liderança dos pedagogos protestantes no governo da III República. Estes não tinham como objetivo primeiro

protestantizar a escola, a universidade e a França, mas, sobretudo, defender a escola republicana,

laica e propagadora da nova pedagogia.

53

Escolas paroquiais eram escolas anexas aos templos.

54

Estadistas como Sarmiento e Varela, preocupados em modernizar suas respectivas sociedades, mostravam-se animados com as viagens que fizeram aos Estados Unidos nas quais puderam tecer considerações sobre a influência do protestantismo na cultura (ver PROENÇA LOPES, Leandro de; JARDILINO, José Rubens Lima. Sarmiento e Varela. Caminos de cruces en la educación del cono sur en el siglo XIX. In: ARANGO, Diana Elvira Soto (et al. orgs). Educadores en América Latina y El

Caribe: de la Colônia al siglo XIX y XX. HISULA. RUDECOLOMBIA. Ediciones Doce Calles, S.L.

local que, seduzida pela ideologia do progresso, permitiu a inserção de estrangeiros protestantes, representantes do liberalismo social, político e econômico. É nesse contexto que o Brasil recebe instituições como a Maçonaria e o Protestantismo, entre outros:

El comercio inglés, la agricultura germana – e incluso una posible contribución estadounidense, por medio de inmigrantes confederados – constituyeron la modernización del progreso. Aunque en realidad, por encima de todo y porque no representaba ningún riesgo político, existía el deseo de asimilar las ideas y practicas generadoras de la transformación de los anglosajones, quienes, cabe mencionarlo, habían pasado a ser lideres del mundo. La apertura al mundo anglosajón significó el ingreso al universo protestante. Este ideario y el espacio religioso originado por el alejamiento que se dio entre el Estado monárquico y la Iglesia (Católica) constituyeron factores favorables para la incursión del protestantismo en Brasil (MENDONÇA, 1990, p. 77).

Apontamos para uma relação entre protestantismo e educação a partir da raiz de sua inserção no contexto nacional. Uma das principais preocupações das elites brasileiras e latino-americanas, em geral, era o de inserir os Estados recém- independentes nas trilhas do progresso. Para a realização dessa tarefa, a Educação é o carro-chefe. Desta forma, para além da ideologia do american way of life presente na estratégia missionária, está o ideal do progresso. Embora tenha encontrado muitas resistências culturais no Brasil, é a ideia de progresso que permite o ingresso e a ingerência da cultura protestante no imaginário religioso do Brasil. É esse o campo fértil a que se refere Simonton em seus relatórios ao Board55, no qual os missionários exercerão suas vocações de semear o evangelho e o progresso da nação a partir da educação liberal. A educação protestante, por meio de seus seminários, escolas paroquiais e colégios do final do século XIX e começo do XX está inserida nessa história.

55

Board of Foreign Missions (Junta de Missões estrangeiras), de Nova York, que ficou conhecida simplesmente por Board.

1.6. As escolas paroquiais do protestantismo brasileiro: o caso do Colégio