• Nenhum resultado encontrado

III. As lideranças religiosas ocupam espaços nas instituições laicas:

3.2.1. Educar para a igreja

A ideia de educar para a igreja expõe um pensamento teológico conservador, e está ligado ao contexto cultual norte-americano, como afirmamos anteriormente. Mas o contexto social brasileiro também exerceu suas influências sobre o pensamento produzido aqui. O direito a iniciar a obra missionária evangélica no Brasil seguiu determinadas orientações legais que a restringiram a certos limites, como declara a Constituição de 1824, em seu artigo 5º: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. O Código Criminal aplicava o artigo 5º da Constituição, prevendo sanções àqueles que o desrespeitassem151.

Isso fez com que a inserção protestante procurasse evitar o estímulo à discussão das questões políticas, tornando propício o ambiente para o desenvolvimento de uma teologia descontextualizada politicamente. Embora parte de liderança protestante entendesse que o avanço das igrejas evangélicas dependia da construção de um estado republicano e laico, tendo se dedicado à questão, a cultura que se espalhou rapidamente foi a espiritualista.

151

Nos momentos de crise, eclesiástica ou social, acentua-se o aspecto conservador que procura garantir a sobrevivência institucional. A própria postura conservadora da liderança da Igreja Independente, expressa no lema da Educação para a Igreja procurava evitar os perigos de uma evangelização indireta, a exemplo da educação jesuítica, suficiente para influenciar na formação da cultura, mas incapaz de gerar identificação institucional. Para uma igreja que não tinha o respaldo do Estado, essa estratégia era considerada arriscada para o êxito religioso. De qualquer forma, houve no contexto latino-americano muita pressão política para uma religiosidade espiritualista, que não foi privilégio das igrejas protestantes, mas de qualquer expressão religiosa que se pretendeu crítica, pois questionava o status quo.

Além disso, devemos considerar aquilo que Gramsci chama de pensamento religioso, uma ideologia que impede que se percebam as contradições entre diferentes concepções de mundo. Isso não deixou de significar certa nostalgia em função de um mundo moderno que aceita cada vez menos a tutela da religião. Neste caso, melhor seria considerar esse pensamento teológico reacionário ao invés de conservador. Dietrich Bonhoeffer, por exemplo, teólogo alemão que sofreu consequências por suas posições políticas contra o regime de Hittler, fez duras críticas à religiosidade alienada, afirmando que “as únicas pessoas que ainda podemos encontrar no caminho da religião são alguns últimos sobreviventes da época da cavalaria, ou então gente intelectualmente desonesta”152, e lamenta principalmente o fato de que o protestantismo histórico tenha traído os ideias da Reforma:

Hoje é a festa da Reforma, um dia que, justamente em nossa época, pode nos deixar muito pensativos outra vez. A gente se pergunta por que a ação de Lutero acabou tendo consequências que foram exatamente o contrário do que ele queria [...] Em toda a parte palavras de Lutero, e, mesmo assim, a verdade transformada em auto-ilusão. [...] É a mesma palavra de justificação somente por graça; no entanto, o uso errôneo da mesma frase leva à destruição completa de sua essência. [...] Ele queria a “liberdade das pessoas cristãs”, e a consequência foi a indiferença e o embrutecimento153.

152

Citado por ALVES (1970, p.12)

153

Trecho de uma carta de Bonhoeffer, parte do livro que reúne correspondências suas trocadas durante sua prisão pelo regime nazista na Alemanha. Ver: BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e

Da mesma natureza eram as críticas aos movimentos espiritualistas da igreja. O aspecto reacionário dessa religiosidade expressa-se, dentre outras coisas, na recusa ao diálogo com o pensamento moderno. No caso do Seminário Teológico de São Paulo isso se deu por dois elementos: a recusa a academicizar o curso; o isolamento intelectual e o controle a obras consideradas subversivas.

O primeiro aspecto pode ser observado, por exemplo, na crítica dos alunos, na década de 60 e 70, que tomavam contato com o mundo acadêmico e consideravam que a educação que recebiam no Seminário estava ultrapassada. Leontino Faria dos Santos, aluno na década de 1960, sobre isso revela uma das causas das reinvindicações dos alunos que motivaram a crise naquele período:

Em 1968, a gente, pelo fato dessa consciência crítica, a gente sempre queria que a faculdade oferecesse mais e melhor. A gente achava que o que os professores produziam e realizavam não atendiam a demanda das exigências da época. Então havia uma expectativa de mais, de querer mais. Alguns nomes se destacaram nessa época: o reverendo Abival, que dava aula de teologia da Missão, e dava aula de Introdução à Teologia, acho que era isso, e ele foi quem fez a diferença nessa época. E o Rev. Daily França, que era pastor da Primeira Igreja, presidente do Supremo Concílio, ele tinha feito Filosofia na USP, e ele era um dos poucos que entregavam um programa de curso (de aula não, de curso), e a gente se empolgava, mas os outros não, e a gente tinha dificuldade.

O segundo aspecto é destacado da entrevista de Abival Pires da Silveira, em que ele descreve uma situação curiosa que envolvia o conhecimento das obras do teólogo Karl Barth, considerado um dos grandes expoentes da teologia reformada no século XX.

na Igreja Independente primeiro ninguém conhecia quem era Barth, depois começou a conhecer informações distorcidas sobre Barth. Então pra você ter uma ideia, tinha as obras de Barth aqui no Seminário quando a gente estava estudando, mas era guardada à chave. Você tinha que pedir autorização especial para ler, e eles iam decidir se deixavam você ler ou não deixavam você ler. E era em francês ainda, os textos de Barth.