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III. As lideranças religiosas ocupam espaços nas instituições laicas:

3.2.2. Educar para o mundo

O conflito ideológico presente na ideia de formar para a igreja ou para o mundo está ligado ao fato de se considerar ou não a necessidade de reconhecimento legal do curso de teologia. A falta do reconhecimento significava uma situação confortável para as mentes reacionárias por dois motivos principais: a ausência da ingerência de instituições externas na organização e na vida dos Seminários; a indiferença do diploma para o teólogo que considerava o pastorado a única opção profissional.

No caso dos Seminários protestantes, parte deste obstáculo foi vencida com a criação da Associação dos Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE), em 1961, que tinha entre suas atribuições:

1. estimular a cooperação mútua entre os membros; 2. realizar esforço para a execução de ideais comuns; 3. publicar literatura teológica;

4. promover estudos de temas de interesse das instituições filiadas;

5. promover a obtenção e oferecimento de bolsas de estudos a professores e alunos das instituições filiadas;

6. aplicar o Padrão de Reconhecimento aos membros associados que o solicitarem;

7. fazer levantamento estatístico das instituições de ensino teológico existentes no Brasil; e

8. publicar periodicamente um diretório das instituições evangélicas de

ensino teológico existentes no Brasil154.

154

Informações obtidas do site da ASTE, www.aste.org.br, acessado em 04 de março de 2013. A ASTE acabou funcionando como instituição reguladora das instituições teológicas a ela filiadas. O padrão de qualidade concedido pela ASTE obrigava essas instituições a observarem requisitos mínimos, a exemplo do que acontece com a regulação das instituições governamentais. Por outro lado, a ASTE acabou promovendo grande debate sobre a educação teológica, oferecendo ampla bibliografia e eventos nos quais circulavam ideias novas. A igreja Independente, por meio de seu Seminário, foi uma das instituições fundantes dessa Associação. Isso desagradava os setores mais conservadores da igreja, como podemos perceber no relato de Abival Pires da Silveira: “Foi feita, assim, uma solicitação para que se fechasse o Seminário e reabrisse sobre novas bases, mas o Supremo acabou não aprovando. E na ocasião em que eles fizeram essa proposta, fazia arte dessa proposta o Seminário sair da ASTE, a Associação dos Seminários Teológicos Evangélicos. Porque a gente tinha entrado como instituição fundadora da ASTE. Esse é um outro ponto, que a direção da Igreja discordava. Não queria, porque era contato com movimentos teológicos modernos. A ASTE era a ponte para a introdução de uma teologia comprometedora, herética, essa coisa toda. E o Aharon Sapsezian era, na verdade, o que estava organizando, como Secretário Geral da ASTE, querendo dar corpo a uma instituição que pudesse auxiliar os Seminários, que reunisse os Seminários para se encontrarem, discutirem suas dificuldades, seus problemas, compartilhar experiência, etc. O negócio era sair da ASTE e também não permitir essas coisas”.

Desde então a ASTE tem promovido intensa e profícua discussão sobre a educação teológica, e foi um dos palcos do debate sobre o reconhecimento científico e social da Teologia, através da publicação da revista Simpósio. No editorial do volume 3, de Dezembro de 1979, intitulado A inutilidade da Teologia, Jaci Maraschin discute uma decisão do MEC, na época, de determinar a extinção de um curso de Teologia que funcionava havia seis anos na Universidade Federal do Pará. O editor discutiu as três razões apontadas pelo MEC para tal decisão: ausência de um currículo mínimo oficial para o curso de Teologia; ausência de qualquer mecanismo estabelecido para o reconhecimento do curso de Teologia no Brasil; e a inutilidade da Teologia.

MARASCHIN ampliou o alcance da discussão ao demonstrar que os dois primeiros argumentos já eram objeto de discussão de vários outros cursos, e considera que tal noção é “se não absurda, pelo menos desaconselhável. A imposição de um só currículo mínimo para todo o território nacional, tão vasto e com necessidades locais tão díspares, violenta a noção de correlação que qualquer curso deve ter na sociedade onde funciona e à qual quer servir” (1979, p.192). Com relação ao último argumento, o editor responde de forma irônica:

Uma palavra, apenas, sobre o terceiro motivo: a inutilidade da teologia. Ora, para os atuais governantes, (o MEC é um órgão do Governo) útil significa o que serve ao mercado de consumo. Na verdade, útil é o que se atrela, sem qualquer questionamento, ao lucro imediato, à venda, ao sistema capitalista onde o dinheiro acabou substituindo a antiga noção de Deus. Os teólogos, afinal, devem celebrar com alegria esta decisão do MEC. Eis que foram colocados no seu devido lugar, o da inutilidade. Aliás, numa sociedade voltada inteiramente ao pragmático, ao aumento indiscriminado das transações comerciais, ao ganho fácil, nada mais ameaçador do que a presença do inútil em seu meio (MARASCHIN, 1979, p.192).

Interessante notar a semelhança com a clássica reflexão sobre a utilidade da filosofia proposta por Marilena Chauí, situada no mesmo âmbito de demonstração da relevância do pensamento filosófico, publicada no livro Convite á Filosofia, de 1993:

O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: “o que é o útil?”, “para que e para quem algo é útil?”, “o que é o inútil?”, “para que e para quem algo é inútil?” O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá

prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando sua possível utilidade, como na famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira? [...] Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; [...] se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes (CHAUÍ, 2005, p.24).

A educação para o mundo é consequência direta da consciência crítica do intelectual protestante que reconhece na sociedade o contexto vital para sua ação. A teologia protestante não procura ignorar a igreja como realidade da fé. Reconhece que a teologia é função da igreja, mas busca compreender o significado da igreja à luz de uma determinada interpretação da Bíblia e da tradição reformada, a partir da qual a igreja não é instrumento da ação de Deus, pois este age livremente no mundo. Desta forma a igreja seria, dentro dessa tradição, “a comunidade que é criada pelas vidas que respondem aos eventos e possibilidades liberadores que Deus cria em seu amor para o mundo e no próprio mundo” (ALVES, 1970, p.17). Neste sentido, “a secularização é a tarefa que Deus a política de Deus estabelece para a humanização do homem” (ALVES, 1970, p.16).

Nessa perspectiva, a educação teológica deveria atender à necessidade e aos anseios de transformação da realidade, ideia que ganha força no contexto geral da educação através de Paulo Freire. No mesmo artigo citado de Rubem Alves, ele faz referência ao contexto de insatisfação dos estudantes contra as estruturas da educação do momento: “em número cada vez maior, os estudantes percebem que o sistema educacional se transforma ‘numa fábrica destinada a produzir conhecimento e técnicos capazes de servir às burocracias da sociedade humana” (ALVES, 1970, p.10)155. Em perspectiva teológica, a crítica era contra a tendência de formar teólogos somente para as burocracias eclesiásticas.

No caso da educação teológica protestante no Brasil, outro capítulo importante a ser considerado é o pensamento de Richard Shaull, missionário norte- americano, formado em Princeton, que atuou na Colômbia e no Brasil por mais de

155

O autor faz referência à definição de Clark Kerr sobre a função da universidade, em: LIPSET, S.M.; WOLIN, S.S. The Berkley Student Revolt, facts and interpretations. New York: 1965.

uma década156. A atuação de Shaull significou, em primeiro lugar, novas exigências para o fazer teológico no Brasil. O sugestivo título de suas memórias no Brasil já indica o teor dessas novidades: Entre Jesus e Marx: reflexões sobre os anos que passei no Brasil. Nessas memórias lemos as impressões de SHAULL sobre um forte desejo de mudanças na década de 1950: “antes da minha chegada ao Brasil, um novo espírito já invadia a igreja. Vários homens e mulheres já estavam em contato com a evolução da teologia na Europa e nos Estados Unidos, e tinham sua própria visão sobre a renovação da igreja” (1985, p.189). Parte da renovação teológica se deu a partir de novos referencias que foram amplamente divulgados nas aulas e nos escritos de SHAULL, como ele mesmo atesta: “os nomes de Barth, Brunner, Bonhoeffer e outros conhecidos pensadores europeus e norte-americanos começavam a atrair alguma atenção. Sentia-me à vontade no mundo desses pensadores de forma que podia introduzir seus escritos e pensamentos aos que o desejassem” (1985, p.191).

Shaull compreendeu o imperativo de influenciar politicamente a educação teológica, pois seria somente assim que o protestantismo brasileiro conseguiria resgatar o princípio protestante:

Descobri que, de uma forma geral, os pastores e a liderança leiga da igreja, eram teologicamente conservadores e eticamente puritanos. Sabia também que essa liderança seria incapaz de responder às indagações de uma nova geração ou de conduzir a igreja a uma nova era. A atmosfera do Seminário parecia bastante estéril. [...] Estava certo de que a contribuição cristã para uma transformação social só poderia ser feita por meio de uma Igreja renovada. Tal renovação viria como resultado da preparação de uma nova geração de pastores, equipados com uma dinâmica teológica orientada para o mundo (1985, p.190).

Mas a principal contribuição de Shaull estava na reflexão sobre a necessidade da emancipação do pensamento latino-americano, o que deveria se dar a partir de seu próprio contexto vivencial. O verdadeiro pensamento libertador tem que ser autóctone. Era isso que Shaull descobriu, ao perceber que os limites de sua contribuição seria dar condições para os estudantes elaborarem sua própria teologia. Esse fato se deu como tomada de consciência pelo próprio professor:

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Na próxima secção nos dedicaremos especificamente ao contexto do Seminário Teológico de São Paulo.

Estava tão convencido da importância e relevância do que ensinava, que nunca me ocorreu indagar dos brasileiros se isso tinha tanto sentido pra eles quanto pra mim. Estava ciente dos muitos aspectos da dominação europeia e norte-americana no mundo; jamais pensara que a teologia que ensinava também fazia parte dessa dominação (SHAULL, 1985, p.192).

Desta forma, Shaull antecipava o que seria tendência em toda a produção intelectual brasileira e latino-americana sob o impacto de Enrique Dussel, com a Filosofia da Libertação, e Frantz Fanon, com Os condenados da Terra, a partir do final dos anos 1960.