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Da contradição

Se te contradisseste e acusam-te... sorri Pois nada houve, em realidade

Teu pensamento é que chegou, por si, Ao outro polo da Verdade...

(Mario Quintana)76

Das inúmeras coisas a se considerar deste trabalho a primeira delas é o partilhar a experiência da contradição que Mario Quintana explicita. Nesta tese, desde o seu início até a sua finalização, o aparente “ser pego em contradição” foi o que mais ocorreu. Na verdade, assumir a contradição era, na verdade, ser surpreendido por um pensamento que, outrora inapropriado, se revelou apenas como um outro polo do saber, que também precisa ser avaliado. É o processo de considerar o outro lado também. É o movimento de passear pelo ambivalente, optando pelos espraiamentos, pelas coincidências, pela geografia do entre. Nesta luta pelos saberes moventes, por um conhecimento errático, intuir o espraiar os campos da arte e da ciência, do objetivo e do subjetivo, do sensível e do sentido, do Cinema e da Geografia.

Foi nesse processo que, pensando a dimensão antropológica do Cinema, concebemos o filme como anúncio do mundo, como forma de narrar o mundo. Já que o ser humano não pode narrar o mundo apartado dele, mas somente nele, esse anúncio é o da relação homem-mundo, isto é, da geograficidade. Assim, é próprio da espécie humana a tentativa de explicar o mundo, construir cosmovisões, isto é, criar uma narrativa sobre/com o mundo, uma geografia.

Foi pertinente lembrar que, nessa dimensão antropológica do Cinema em diálogo com a Geografia Humanista, a concepção de ser humano integral é a que deve ser levada em consideração para um fazer geográfico potente, vivo, condizente com a realidade. Afinal, compreendido integralmente, o ser humano, o único ser a criar mitos e narrativas, é também o único a fazer Geografia e geografias.

Nesse sentido, foi vital (re)visitar a abordagem fenomenológica-existencial da Geografia, posto que ela proporcionou o seguinte entendimento: o ser humano só pode ser compreendido – e compreender e/ou compreender-se – existencialmente, caso esteja

no mundo. Tal (re)visita foi, e continua sendo, fulcral, pois é necessário compreender a indissociabilidade entre o homem e o mundo, privilegiando a experiência humana na Terra e as inúmeras formas de falar sobre ela, incluindo, sobretudo, as obras cinematográficas.

Este movimento nos fez recordar e reafirmar que a Geografia é uma narrativa, uma apresentação do mundo, um narrar a experiência humana na Terra. A Geografia é, portanto, responsável por construir uma imagem do mundo, seja textual ou gráfica. Esse entendimento nos auxiliou a concluir que a imagem, para quem pensa a Geografia sobre essa perspectiva, não pode ser compreendida de forma mimética, mas como anunciadora do mundo. De igual maneira, o passeio pela história da Geografia, da Antiguidade até a Modernidade, nos ajudou a compreender esse princípio e afirmar que, não obstante a diversidade de visões sobre a Geografia, ela sempre teve a mesma função, a mesma tarefa. De fato, inúmeras compreensões sobre o espaço geográfico foram erigidas, derrubadas e/ou permaneceram concomitantemente, mas o princípio da Geografia continua o mesmo. A Geografia sempre foi entendida como uma narrativa, um anúncio do mundo, um enredo do terrestre.

É dessa compreensão de Geografia que podemos compreender que imagem (e aqui, a paisagem das obras cinematográficas) e narrativa estão intrinsicamente ligadas. A paisagem evidencia aquilo que é a grande preocupação dos geógrafos: a experiência sensível do ser humano na Terra. Reafirmarmos, assim, a paisagem como uma narrativa visual, possuidora de uma capacidade de narrar. Várias matrizes epistemológicas, da Geografia Clássica até as abordagens neomarxista e fenomenológica-existencial, corroboraram para a compreensão de paisagem como texto, como elemento que conta algo. A essa compreensão narrativa da paisagem somamos a nossa leitura da via dardeliana, na qual a paisagem narra a geograficidade e, portanto, é epifania do mundo, da relação homem-mundo. É, por isso, cosmofania e legenda do nosso mundo.

A contribuição de Eric Dardel não se limitou à proeminência da noção de geograficidade no nosso trabalho. Inúmeras inspirações dardelianas foram assumidas. Podemos citar a inserção da Geografia nas ciências hermenêuticas, fazendo da paisagem um texto e da Geografia, uma forma de decifrar esse texto. Com a Geografia sendo uma interpretação de texto, ou seja, uma maneira de ler o mundo, pode-se, naturalmente, comparar o fazer do geógrafo com o do hermeneuta: interpretar textos. Geógrafo como

leitor, interprete do mundo e da paisagem. Ainda podemos elencar a compreensão de uma Geografia que contempla a cientificidade, mas vai além dela, posto que não só extrapola o status científico bem como o antecede, numa perspectiva existencial e num diálogo frutuoso com outros campos do saber.

Este último ponto, aliás, nos encorajou ainda mais a entrarmos em contato com as linguagens artísticas, sobretudo a fílmica, compreendo-as como manifestações e expressões da geograficidade. Tal contato, como vimos, não é um caminho novo, mas que sempre se pode avançar e não se dá por esgotado. Afinal, seja fazendo Geografia ou arte, mas sobretudo no encontro de ambos, o ser humano está narrando a geograficidade. É desse ponto que irrompe uma das conclusões de nossa tese: a compreensão da narrativa como ponto de encontro no espraiamento Geografia-Arte. A narrativa é geográfica e a Geografia, por sua vez, possui em sua essência elementos de narratividade. As estruturas narrativas, de fato, se prestam perfeitamente à missão do geógrafo de narrar, dizer o mundo.

A noção de espraiamento, por sua vez, reatualiza uma característica própria do conhecimento geográfico ao pensar não só num diálogo, mas também num avançar mútuo das áreas do saber, no pensar em outros contextos, em outras perspectivas, em outras confluências de saberes. Aqui, ela se expressa num entrelace entre os campos do saber, entre o pensar – a razão – e o sentimento, entre da imaginação criadora e da intuição da razão. da união desses dois sopros criadores em estado permanente de contato, de contágio surge a alma de um espraiamento geográfico. A Geografia, como vimos, tem seu desenvolvimento nesta gama de espraiamentos. Estes são o coração da ciência geográfica. A noção de espraiamento é pertinente também, pois traz com ela uma espécie de subversão, de liberdade, de abertura.

Concluímos também que o movimento de espraiamentos múltiplos da ciência geográfica é enriquecido ao bebermos da fonte dos saberes míticos e imaginários, como é caso da trilogia O Senhor dos Anéis. De fato, o domínio do imaginário, da fantasia, não significa entrar pelos caminhos do irracionalismo e/ou do erro. O fato deste imaginário ser veiculado numa linguagem visual e artística só deve aumentar a preocupação do geógrafo e inquietá-lo na busca de interpretações geográficas. Afinal, a ciência deve se preocupar com as obras de fantasia que (re)modelam o imaginário bem como a existência humana e o geógrafo, atento a tudo aquilo que está vinculado com a maneira do ser

humano se relacionar com o mundo, muito ganha ao se enveredar pelas trilhas do imaginário.

Esse gesto de mergulhar no imaginário propicia uma motivação para a reflexão sobre a maneira de ser e estar no mundo, da geograficidade. Isto por que O Senhor dos Anéis, sendo uma máquina de estoriar e de produzir sonhos, também é um vetor de debates. De fato, como vimos, os mundos imaginários são, ao mesmo tempo, pontes para a reflexão do mundo e dispositivo para restauração desse mesmo mundo. Filmes de fantasia e de potência mítica, a trilogia do Anel é concomitantemente proposta de um futuro e comentário da sociedade atual. Permite, portanto, um ligeiro escape, um distanciamento e propõe refazer os contornos do mundo. É exatamente por isso que concluímos que as estruturas míticas de O Senhor dos Anéis e suas paisagens são consideradas uma hermenêutica da Terra, uma legenda do mundo, uma cosmofania.

Para compreender as paisagens da trilogia, utilizando a metáfora do espraiamento, propusemos o viés espraiante, no qual discurso e paisagem não estão separadas, mas coincidem, se espraiam num encontro; levam em consideração que a “fisiografia” da paisagem e seu discurso também estão se espraiando para se encontrar. Um viés que não renegue a objetividade presente na paisagem das obras cinematográfica e tampouco sua subjetividade, mas que celebre o encontro de ambas, numa espraiar que gera compreensão, própria dos processos de interpretação.

Ao propor o viés espraiante, optamos por pensar que os discursos sobre o mundo estão presentes na própria paisagem e não alhures, compreendendo o filme como um mundo que ali se instaura. Os significados geográficos comunicados, portanto, estão no visível, no filme e não aquém ou além dele. Este viés rompe com as dicotomias (exercício da tautologia e exercício da crença de Didi-Huberman; sensualismo e espiritualismo de Pareyson) existentes nas abordagens que aqui denominamos de viés mimético e do viés arqueológico e nos conduz a perspectivas de integração, de união, de coincidência, da interpenetração – numa palavra, ao espraiamento: se inquietar com o entre; isto é, fazer do exercício do entremeio.

Este viés nos impulsionou a pensar uma nova nomenclatura para a paisagem dentro das geografias fílmicas, diferenciando-a das paisagens tomadas nos vieses anteriores. Propusemos, então, as paisagens de cinema, nas quais imagem e discurso, signo e significado se coincidem.

Ademais, concluímos que os significados geográficos dos filmes são “construídos” no próprio encontro com paisagem de cinema, isto é, se manifestam no contato com ela. Desse modo, reafirmamos que é impossível interpretar uma paisagem sem se permitir ser tocado por ela, negando uma relação, impondo seu olhar sobre seus contornos. Assim, o saber geográfico, advindo do processo hermenêutico, se constitui como um eco, uma repercussão provocada no intérprete com o encontro da paisagem de cinema, do “texto paisagístico”.

Diante disso, as inspirações dardelianas também se fizeram presentes no aspecto metodológico de nossa tese, com uma aproximação sem ressalvas, incondicional, mas dentro de um processo de articulação de conceitos, colocando-os e imaginando-os em outras perspectivas. Como já aludido, para as geografias fílmicas, que possuem interesse nas paisagens e as compreende como um texto, é necessário, então, um exercício exegético, uma leitura dos signos geográficos acurada que desemboca inescapavelmente numa interpretação. Levando em consideração as inspirações do projeto dardeliano e da abordagem fenomenológica-existencial em união com as matrizes discursivas da paisagem, o papel do geógrafo, o hermeneuta da paisagem, não é mais procurar um sentido por trás das paisagens nas obras cinematográficas, das paisagens de cinema. O sentido, agora, está no visível.

Estes aspectos nos mobilizaram a pensar no encontro paisagem-hermeneuta. Assim, a hermenêutica paisagística e seu caráter de encontro, de relação “interessada”, nos fez compreender que os valores do intérprete também são levados em consideração, isto porque a singularidade da paisagem de cinema reclama da parte do exegeta da paisagem uma capacidade compreensiva, uma postura interessada.

Na nossa interpretação das paisagens de cinema em O Senhor dos Anéis, ficou nítido que os seres apresentados como virtuosos possuem uma geograficidade originária, uma relação umbilical, não sempre harmoniosa, com a terra ou uma relação de aventura com uma lugaridade rizomática.

Como vimos, essa relação estreita, salvo raras exceções, de uma específica região a um modo peculiar de viver a relação com a terra está intimamente interligada a uma determinada geograficidade. Há, portanto, reiteradas correlações regiões-geograficidades, as quais sugerem um ecoar do relato próprio da geografia regional francesa, apresentando regiões como congeladas, estáveis, imutáveis. Nesta perspectiva,