• Nenhum resultado encontrado

Não temos cuidado. Somos cuidado. O cuidado possui uma dimensão ontológica que entra na constituição do ser humano. Leonardo Boff

Nesta geograficidade, a ligação orgânica entre o ser humano e a Terra é quebrada, posto que agora o homem e a Terra não são mais parentes. O ser humano e os outros seres não possuem uma única mãe, a Mãe Terra (DARDEL, 2015). Tendo essa relação quebrada, o indivíduo não está preocupado com seu vínculo terrestre, pois pensa como a Terra se projeta para um futuro, na História. Há, portanto, uma espécie de profetismo. Esse efeito do profetismo gera promessa, avisos messiânicos, esperas, etc. Isso se dá através de conceitos e de anúncios do mundo vindouro69.

Esta forma de ver e habitar o mundo é encontrada em Saruman, o mago Branco (Christopher Lee). Preso a uma transcendência, a um futuro além-aqui, tenta se desvincular da terra, mas não numa aventura errante, desbravando o mundo, mas no afã de submeter o mundo aos caprichos do desejo e da ganância pelo poder. Saruman: As florestas cairão. Uma nova ordem surgirá. Dirigiremos a máquina da terra.

Os discursos fílmicos revelam uma tentativa de submeter a terra em prol de um projeto de futuro. Ela não é habitada no hoje – tampouco habitada poeticamente (BUTTIMER, 1982) –, mas é vista em prol de algo que virá. O porvir é a lei. Assim, esta espécie de profetismo gera algo que seria inconcebível na geografia mítica:

O homem não tem nada a esperar da Terra, por ela mesma. Não há nenhuma verdade essencial a ser retirada. Ele não é procedente da Terra.(DARDEL, 2015, p. 68).

Daí as religiões, ou qualquer doutrina filosófica de caráter teleológico, projetista, transcendente, que está ligada a um mundo vindouro, seja novas terras e novos céus ou

69 Para Dardel, essa postura é própria das religiões que postulam um paraíso, um outro mundo. Contudo, é interessante notar também que até hoje há essa mudança de interpretação a respeito das escrituras judaicas-cristãs e o estatuto que elas dão à Terra. Pode-se citar a postura do teólogo e geopaleontólogo Teilhard de Chardin em sua obra O Fenômeno Humano (1955), na qual apregoava uma nova forma de pensar a relação homem-Terra. Mais atualmente, é possível citar a encíclica Laudato Si e a exortação Querida Amazônia, ambas do Papa Francisco (2015, 2020), nas quais ele critica a visão de que o homem é dominador da Terra.

um mundo utópico novo, serem baseadas numa ideia de progressismo, de profetismo. Assim, a Terra perde seu caráter de origem. Não a tendo como origem, nada pode se esperar nela ou dela, apenas das realidades “superiores e transcendentais”. O mundano, o terrestre, é apenas banalidade. Tudo está no porvir, no além-aqui, numa transcendência.

Figura 52 – Destruição das árvores

Fonte: Jackson (2001)

Essa transcendência, explica Stengers (2015,) acaba por desembocar num direito de não ter cuidado com a terra, numa cegueira que permite explorar indefinidamente os “recursos” terrestres. De fato, há uma noção, desde Francis Bacon, de que é preciso exercer um direito de apropriação sobre a natureza (CAPRA, 2001). A realidade é que essa transcendência comentada por Stengers (2015) evidencia uma concepção de natureza “estável”, sempre disponível para uma conquista, um domínio por parte dos seres humanos (STENGERS, 2015; WULF, 2016).

Nesta geograficidade, então, a terra é compreendida como um mero recurso. Está subjacente nesta geograficidade uma concepção de que o meio natural é uma realidade material e objetiva em si mesmo, completamente exterior ao humano e, consequentemente, independente da sociedade. O porvir sustenta uma separação artificial entre o humano e o não humano. Uma visão totalmente dicotômica, que segrega. Mesmo que seja inescapável a relação homem-terra (DARDEL, 2015), os discursos presentes aqui insistem em negar isso e evidenciar, na paisagem, que o natural como algo útil, como recurso. Para aqueles que vivem sob essa geograficidade, o mundo será sempre um espaço

para viabilização de um projeto, de um consumo, pronto para ser explorado para um determinado fim, seja ele qual for.

Trata-se de um código de existência e de relação com a terra totalmente diferente das geograficidades anteriores. Para Saruman e seus séquitos, a terra não os envolve, mas deve ser controlada, submissa. Tampouco há uma relação como as aventuras andantes que, ainda com os vínculos enraizantes quebrados, privilegie um envolvimento com os elementos da natureza. Nesta geograficidade, o ser humano é o dominador, quebrando toda conivência (SAUTTER, 1991). Ainda há uma relação entre ambos, que é, como vimos, inescapável. Contudo, essa relação é de outra ordem agora. A Terra é apenas uma realidade circundante ao indivíduo.

Se trata, na verdade, da terra com valor de utensílio, para uso irrestrito do ser humano (DARDEL, 2015). O utensílio é sempre “algo para”: não existe em si mesmo, mas está sempre à disposição de alguém para algum uso. Com efeito, nesta concepção, o ser humano agencia a terra em prol de suas demandas. Na verdade, por toda a terra ser vista como um recurso, ela existe em função de algo, necessariamente vinculado a um contexto de funcionalidade e nunca independente disso. Sua existência está submetida ao seu valor de uso.

Assim, esse agenciamento sobre e a respeito da terra desencadeia numa soberania do ser humano sobre todos os outros seres, conduzindo a uma compreensão da Terra como algo subsistente e meramente utilitário, posto que é passageira e claudicante (DARDEL, 2015). Não tem um valor em si e, portanto, não merece ser cuidada. Assim, nesta geograficidade, não há razões para habitar harmonicamente ou possuir uma relação parental, umbilical com a natureza. De fato, a finalidade está apenas em dominar a natureza, fazer dela um recurso. É justamente isso que Saruman e os orcs fazem, posto que enxergam a Terra como uma máquina, algo a ser dominado em prol de um progresso. Eles, de fato, se auto enxergam como dominadores da Terra, como na fala de Saruman supracitada. Outra fala e outras paisagens do filme, aliás, nos fazem compreender esta relação de dominação. Além do domínio em prol de um projeto, há também a compreensão dos elementos como recurso. Isto fica claro no diálogo entre um guardião da floresta e os hobbits sobre Saruman:

Ent, o guardião da floresta: Sempre há fumaça subindo de Isengard. Houve uma época em que Saruman podia andar pelo meu bosque, mas agora ele só se preocupa com metal. Ele não mais se importa em plantar,

A única preocupação de Saruman é com o metal retirado do solo. Vive, ou melhor, passou a viver sob uma mentalidade de predação, de dominação, de utensilidade. A única relação de Saruman com a terra se dá sob a perspectiva do extrair recursos em prol de um plano, de um mundo novo, se “desconectando” do mundo que habita.

Figura 53 – Isengard desmatada e com focos de queimadas

Fonte: Jackson (2020)

É interessante interpretar as paisagens de cinema que revelam essa geograficidade. Nelas, há sempre um tom de escuridão, ainda que seja dia. Assim que o natural é transformado em utensílio, o dia é transfigurado em noite. O aspecto escuro aqui remonta ao vazio e ao nada, aos vestígios do que foi destruído, do que não há mais. Há desolação diante da ausência de laços parentais. O submeter a terra, anuncia a paisagem, promove um horizonte negro. Nestas paisagens de cinema, a pouca luz, de fato, emana um quê de lúgubre, alude à morte. O aspecto sombrio, com efeito, remete a notícias funestas.

No discurso fílmico, então, o negrume é sinal evidente da morte das árvores, da fuga dos animais que residiam na floresta. A princípio, é uma visão aterradora, contudo, é exatamente este cenário que os seres de coração maligno gostam de habitar. Para Saruman e seus servos, este ambiente permeado pelas cinzas das árvores é o lugar por excelência, posto que, para eles, o ideal é submeter a terra. É ter a paisagem tal como expressão a submissão terrestre (Figura 53).

Não por coincidência, há paisagens de Isengard em que não possui nenhum personagem em evidência (Figura 53). Saruman reside na torre e lá permanece isolado, distante, apartado das outras realidades (Figura 54). Ele não se envolve com o meio. Este está desencantado e, como tal, pronto para ser agenciado, explorado. Afinal, o mundo desencantado é ao mesmo tempo um mundo manipulável (STENGERS, 2015).

Figura 54 – Saruman no alto de sua torre

Fonte: Jackson (2002)

Noutro ponto da narrativa, as árvores e os minerais encontrados na terra são utilizados para construções de armas e utensílios de guerra, seja como matéria-prima ou como combustível para as “fábricas”. Tal noção de terra como utensílio e/ou recurso, foi trabalhada por Heidegger (2007). O filósofo alemão relembra que, por vezes70, a terra é compreendida apenas como algo que oferece carvão e minérios: “[...] natureza como um depósito caseiro de reservas de energias.” (HEIDEGGER, 2007, p. 386).

A montanha é pedreira, a árvore é madeira e carvão, o rio é represa que gera energia, gira turbinas. Aqui, os indivíduos se relacionam com os elementos naturais unicamente como algo do qual tirar proveito para satisfazer suas necessidades. A natureza é algo a ser desafiada, a ser exigida, um ente cobrado a dar algo, a oferecer (HEIDEGGER, 2007). Daí a terra ser compreendida como uma oportunidade do “extrair”. E extrair num duplo sentido, argumenta Heidegger (2007), posto que o termo

70 Martin Heidegger, na verdade, está se referindo ao advento da técnica na sociedade moderna e como ela possui um caráter instrumental da ciência no seio desta mesma sociedade.

se refere tanto a explorar como a destacar, apartar. Nesse aspecto, sendo apenas oportunidade de extrair, a terra não pode ser considerada como companheira da existência, partícipe da vida. O mundo é apenas utensilidade. A natureza está sempre submetida ao pensamento que calcula e que exige eficiência, entrega dos resultados (HEIDEGGER, 2000).

Figura 55 – Rio ou represa?

Fonte: Jackson (2003)

Exatamente por isso que a natureza, reduzida à obediência, é escravizada e obrigada a servir (CAPRA, 2001). Os troncos das árvores, outrora vistosos e fortes, são reduzidos à servidão dos projetos malignos.

É interessante notar como o fogo está sempre presente nessas paisagens das narrativas das submissões terrestres (Figuras 52, 53 e 56). O elemento ígneo, nas paisagens de O Senhor dos Anéis, é sempre flamejante, fumegante, produtor de cinzas (BACHELARD, 2003). Com efeito, o fogo pode ser cruel71. Aqui, o fogo está sempre como devir e como força transformadora: transforma a floresta num campo negro; o ar puro em cortinas de fumaça; a madeira em energia para as fábricas. É o que devora e transforma de forma rápida.

71 Bachelard, na verdade, chama atenção para o caráter dubio, de fabulação dupla do fogo, que pode ser tanto positiva ou negativa. Aqui, claramente, o fogo em si entra numa dimensão negativa.

Trata-se, pois, do fogo como símbolo de todas perícias e técnicas. E estas não só constroem, mas também têm poderes destrutivos. A presença do fogo, assim, nos faz refletir sobre um espírito prometeico que insiste em transformar a “natureza” (FREITAS, 2006). Faz da existência uma experiência projetiva, sempre a projetar um futuro novo, transformador, diferente, custe o que custar.

Figura 56 – Orcs cortando madeira

Fonte: Jackson (2002)

Desse modo, o fogo que, nas paisagens acima, está com os orcs não serve para iluminar a sociedade; não está relacionado ao fogo como prolongamento ígneo da luz, como o mito de Protemeu sugere72. Ele faz alusão, na verdade, ao símbolo do fogo-luz-gládio (FREITAS, 2006), que remete a uma força de expressão bélica das armas. Isto é, da destruição. Aqui, o fogo presente na paisagem de cinema não é utilizado na batalha contra as trevas, mas a favor delas. O fogo é uma força destrutiva, na qual as árvores se consomem. No discurso fílmico, o fogo não é um alento para a iluminação diante das trevas da ignorância, mas poder destrutivo, transformante do mundo.

Além disso, da própria terra são “produzidos” seres malignos: orcs (Figuras 59 e 60). Tal produção, aparentemente, pode estar relacionada à geograficidade originária, na qual os seres vêm da Terra.

72 No mitologia grega, Prometeu é um titã que foi o co-criador dos homens e teria roubado o fogo do Olimpo, exclusivo aos deuses, e dado aos seres humanos.

Figura 57: Orc saindo do solo barroso

Fonte Jackson (2001) Figura 58 – Orc, fruto da terra

Fonte: Jackson (2001)

De fato, recorda Dardel (2015), diversos mitos criadores e inúmeras narrativas originárias que concebem os seres numa ligação visceral com a terra remetem a esta um surgimento material deles. Nestas narrativas, a origem do ser é a terra, o solo, a argila. Contudo, essa não é a única leitura a ser feita. Estes mesmos seres, ainda que advindos do solo, não possuem uma relação parental com a terra.

Se trata, na verdade, de ver a Terra sempre como recurso e não como companheira de existência (DARDEL, 2015). Até os soldados são retirados do solo. Submete-se a terra para tudo, sobretudo para a guerra. A questão aqui é dominar o mundo, a máquina da terra para impor uma política de beligerância, para submeter outros povos. O dominar e submeter a terra é próprio dos corações malignos. No discurso de O Senhor dos Anéis, viver sob a égide desta geograficidade é um atentado à harmonia, é sempre se considerar superior aos outros elementos da Terra. Ser senhor dos outros e não saber conviver, coabitar: aqui, “o homem dispõe da Terra como mestre absoluto” (DARDEL, 2015, p. 93). O mundo é apenas um elemento a ser explorado ou simplesmente uma mercadoria. Como explica Dardel (2015), é a redução da terra como matéria-prima ou fonte de energia industrial. É a concepção que se prolonga pelo decorrer da história e afirma que a terra pertence ao homem e não que homem e terra se pertencem mutuamente (NOGUERA & ARIAS, 2014). Trata-se, pois, de uma superioridade senhorial.

Tuan (2013) comenta sobre o pensamento do espaço geográfico como mero recurso. Aliás, pontua o autor, trata-se de uma aspiração cada vez mais comum73. Nas sociedades contemporâneas, sobretudo as ocidentais capitalistas, a aspiração e o ímpeto “empresarial” tem sido muito forte, a ponto dos anseios, dos apetites pelos recursos da terra serem potencialmente ilimitados. De fato, avançam para além dos limites naturais por compreender que o papel do espaço geográfico é unicamente oferecer recursos, produzir riqueza e poder, ser explorado incansavelmente. Tal postura, seja por parte de empresas, nações74 ou grupos específicos, torna-se, muitas vezes, incontrolável. Esse desejo de dominar a terra, também recordado por Dardel (2015), acaba por proporcionar essa relação redutiva, que enxerga a humanidade como entidade afastada e superior ao mundo. (TUAN, 2013)

É exatamente da “superioridade senhorial” comentada anteriormente, e do olhar o espaço como mero recurso para a atividades financeiras do ser humano, que Escobar (2014) trata ao comentar o conceito de ontologia dualística. Para o antropólogo colombiano, esta ontologia, inspirada e pautada em dicotomias, propõe que o mundo é povoado de “indivíduos” que manipulam “objetos”. Assim, o ser humano é, no mundo,

73 É importante frisar que a crítica de Yi-Fu Tuan remonta ao século passado, às décadas de 1960 e 1970. 74 Tuan (2013) chega a citar o conceito de espaço vital e menciona como países, submetidos a esse desejo de dominação do espaço geográfico, buscam conquistar outros territórios para continuar com um projeto de exploração de recursos.

um ente autossuficiente segregado dos demais coisas. Do mesmo modo, o mundo é repleto de objetos autossuficientes, prontos para serem manipulados de maneira livre. Essa compreensão, portanto, visa apenas a apropriação e o consumo do “natural”, uma vez que este já foi dessacralizado, objetivado e manipulado pelo ser humano.

A ontologia dualística recusa, portanto, o ser-no-mundo, o sentido terrestre do ser humano, o saber-se unido à terra. Escobar (2014) explica que as premissas proporcionadas pela ontologia dualística promovem atitudes concretas e não apenas elucubrações vazias. O autor explica esse movimento com exemplos concretos: o extrativismo mineral degradante é fruto de uma visão que percebe a montanha como um ser inerte, um objeto a ser manipulado. Se a montanha fosse vista como um ser sensível, pontua Escobar (2014), ela não teria a destruição como fim último, em nome da mineração a céu aberto. A concepção de mundo das ontologias dualísticas torna cada vez mais difícil a consciência terrestre, mundana. As conexões com o mundo só existem sob um viés dominador, senhorial.

Aqui, Escobar (2014) reafirma o que foi dito por Noguera e Arias (2014): “O homem separado da terra está acima dela e de todos os seres que a habitam” (NOGUERA & ARIAS, 2014, p. 29, tradução nossa)75. Assim, o ser humano é o dominador, quebrando toda conivência (SAUTTER, 1991). Ainda há uma relação entre ambos, que é, como vimos inescapável. Contudo, essa relação é de outra ordem agora. a Terra, nesta geograficidade, não é a origem, não possui um caráter originário.

Esta relação senhorial, como dito, promove toda uma matriz epistêmica projetada para o domínio da terra, já que toda realidade que se quer dominar já está colocada numa situação de subalternidade. A relação senhorial tem por consequência degradação. Após as degradações da terra e acabados todos os recursos ao alcance das mãos, abandonam a terra a própria sorte. Nestas paisagens de cinema (Figura 59), a ausência é tal que não há signos de esperanças, nenhuma expectativa de que o a paisagem reverdecerá. As raízes e o troncos, enegrecidos e expostos, indicam uma adesão ao império dos mortos e remontam a uma morte enlanguescida, lenta e sem perspectiva de volta a vida (BACHELARD, 2003).

75 El hombre separado de la tierra se sitúa por encima de ella y de todos los seres que la habitan (Tradução livre do autor)

Figura 59 – Árvores sem cuidado

Fonte: Jackson (2003)

Fazendo uma alusão a La Blache (2012b), pode-se dizer que, nas nossas paisagens de cinema, há também uma geografia das ruínas, dos destroços. Feições que nos revelam o poderio destrutivo dos indivíduos que se concebem superiores a realidade circundante. Tais indivíduos, incapazes de garantir uma perpetuidade da extração, se deslocam daquele ponto e procuram outras aéreas para estabelecer seu pretenso senhorio. Aqui, a relação estabelecida é de abandono. As submissões terrestres, após o sugar todo valor utilitário da terra, obrigam escolher outro ponto, “rico em recursos”, para continuar com a exploração, única relação que se pode ser com a terra.

Outro ponto digno de atenção é o contraponto feito àqueles que submetem a terra. Estes não agem sem oposição. Há sempre aqueles que se colocam contra o projeto de destruição. Na nossa narrativa, são os entes, guardadores da floresta e pastores de árvores. Estes, literalmente, fizeram guerra a Saruman e seus servos (Figura 55). Humanoides com forma de árvores, possuem uma ligação estreita com elas: residem na floresta, conversavam com as árvores, pressentem o que acontecem com elas, sentem as suas tristezas e raivas (Figura 60).

Os ents são, literalmente, amigos das árvores e se compadecem com a destruição delas. Se revoltam com aqueles que as destroem, com os participes de uma geograficidade das submissões terrestres. Evocam, de certa maneira, um ecologismo, um movimento ecológico.

Figura 60 – Ents, guardiões da floresta

Fonte: Jackson (2002)

São portadores de uma ética ambiental. São aqueles que se decidiram por cuidar da casa, do habitar geopoeticamente (BUTTIMER, 1982; NOGUERA & ARIAS, 2014). Uma vida simples (mínima, mas não minimizada), uma vida in natura: unida aos elementos naturais e está longe da concepção fragmentária, dicotômica e senhorial comentada anteriormente (CHACON, 2015). Os ents, de fato, possuem essa sensibilidade de saberem estar ligados ao solo – ainda que andem – e aos outros elementos naturais.

Figura 61 – Ents e a empatia com as árvores destruídas

Os ents, reconhecendo-se como seres cognoscentes, sabem que a diferença entre si e tudo o que circunda não é possibilidade e dever de dominar e explorar, mas condição necessária para o exercício do cuidado. Perceber a natureza não como physis e sua consequente compreensão da simples ocupação de espaço, mas como formas de morar, como um fluxo incessante de viver, de habitar (CHACON, 2015). E habitam não sob um vislumbre de uma geografia patética (DARDEL, 2015), mas, conscientes das tensões e alegrias próprias da relação com a terra, respeitando os ritmos próprios do habitar. Isto por que os Ents optam por uma geograficidade baseada na empatia, no sentir-com (PALHARES, 2016). Aliás, eles sentem a dor das árvores. Eles fazem, pois, da relação com/no mundo uma relação empática.

Os ents, portanto, são personificações do cuidado com a terra, com a convivialidade (BOFF, 1999). São seres que propõem e vivem a re-ligação com a terra, sob um ethos da sinergia, do cuidado e da compaixão. De fato, o ethos do cuidado não está circunscrito a atos pontuais de cuidar, mas ocorre, necessariamente, sob um ponto de vista mais abrangente, que originária, ontológica. Envolve todo o ser; o cuidado está presente em tudo, em cada ação, em cada pensamento, em cada valor. É um modo-de-ser-cuidado (BOFF, 1999). Neste modo de ser,

Não existe, co-existe com todos os outros. A relação não é de domínio sobre, mas de con-vivência. Não é pura intervenção, mas inter-ação e comunhão. Cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em