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“Existir é ter um lugar” J. Nicholas Entrikin

A trilogia fílmica O Senhor dos Anéis inicia com um prólogo com narração em off daquela que, mais adiante, saberemos ser a elfoGaladriel (Cate Blanchett). Ao descrever as transformações ocorrida na Terra-Média, ela anuncia: “O mundo mudou. Posso sentir na água. Posso sentir na terra. Posso sentir no ar”. Essa narração pode ser submetida a muitas interpretações, mas uma, em especial, ganha revelo neste trabalho: a personagem possui uma visão “pré-científica”, possui uma geograficidade originária. Nesta geograficidade, só se compreende o mundo estando envolvido com ele; é o enlear-se com o mundo que nos franqueia a sua compreensão. Em sua cosmovisão, a experiência direta com as realidades sensíveis, com os elementos da terra, da água, do ar é um caminho que conduz ao entendimento do mundo.

A narração em off, um instrumento fílmico para apresentar a trama, pode ser compreendida também como uma chave de leitura da trilogia O Senhor dos Anéis: para os personagens “heroicos”, a experiência direta com o mundo, o “posso sentir na terra” de cada um deles, é a essência de sua geograficidade.

Este caráter relacional se impõe na obra, na realidade. Na trilogia O Senhor dos anéis, há o entendimento de que cada personagem está umbilicalmente conectado a um tipo de ambiente, a uma região específica. Iremos tratar detalhadamente, mais à frente, como isso é vital para compreender a geograficidade reapresentada nos filmes e como elas estão relacionadas ao conceito de região. Por hora, frisamos, apenas, que cada povo da Terra-Média está relacionado a um espaço específico, como expresso no Quadro 1.

De fato, como pontuaram Martins Filho (2006) e Klautau (2007), a integração entre cada povo com seu ambiente é essencial: os anões vivem nas cavernas, no seio das montanhas; os elfos, nas florestas, os hobbits, em suas tocas em áreas rurais e os seres humanos, em suas cidades. Cada povo, assim, possui um lugar próprio. Essa informação é vital na interpretação que aqui se propõe, posto que auxilia na compreensão da geograficidade (DARDEL, 2015), do sentir-com, da empatia (PALHARES, 2016), da convivialidade (BOFF, 1999) expressas nas paisagens de cinema.

Quadro 1 – Personagens e características

Fonte: Adaptado de Martins Filho (2006) e Tolkien (2006)

O fato é que, seguindo esta integração povo-ambiente, os seres apresentados como virtuosos possuem uma geograficidade originária, uma relação umbilical com a terra, com os elementos naturais (DARDEL, 2015). Essa forma de se relacionar com a terra se dá de inúmeras maneiras em O Senhor dos Anéis. Vamos a elas.

Ao final do prólogo, o filme localiza sua narrativa no Condado, região campestre na qual se pode encontrar chalés, jardins coloridos, casas em formas de tocas, longas alamedas e árvores a perder de vista. É o lar dos hobbits. Justamente por isso, na primeira cena, vemos um hobbit, Frodo Bolseiro, lendo um livro. É a manifestação primeira da geograficidade originária. Esta geograficidade revela uma conexão forte com a Terra em toda a sua completude. Pode-se dizer que essa geograficidade exige uma conivência (SAUTTER, 1991). A simbiose é tal que “é impossível separar o mundo exterior dos fatos propriamente humanos.” (DARDEL, 2015, p. 48). Nela, a Terra sustenta e gera a vida

59 Optamos por “povo” no lugar do termo “raça”, por acreditarmos que seja o termo mais adequado. 60Gollum é um hobbit desfigurado. Para compreender melhor, buscar em Martins Filho (2006). Há uma interpretação geográfica desse personagem em Nascimento (2017).

QUADRO GERAL DOS PERSONAGENS E SERES DA TERRA-MÉDIA

Povo59 Características Personagens

Hobbit Os hobbits, criaturas pequenas, amam a paz e uma boa terra lavrada. As regiões campestres são o seu refúgio.

Bilbo, Frodo, Sam, Pippin, Merry, Rosa. Gollum60

Homens Habitantes das cidades, que conviviam com a maioria dos outros povos e se aventuraram por diversos ambientes.

Aragorn, Boromir, Faramir, Denethor, Théoden, Éowyn, entre outros.

Elfos Habitantes das florestas,

amantes da sabedoria e da tradição. Possuem uma sinergia com os elementos naturais

Legolas, Galadriel, Arwen

Anões Habitantes das minas e de baixa estatura, que se identificam com as rochas. Não lavram a terra, pois preferem o comércio.

Gimli

Orcs Elfos que foram desfigurados ou seres criados da terra pelo Mal. Abandonaram as florestas e optaram por cavernas, poços, câmaras e túneis.

Lurz, Uglúk, Grishnákh e incontáveis orcs sem nome.

Ents Seres arvorescos, que possuem uma ligação forte com as árvores.

Barbárvore Maia e Vala Seres angélicos que tomaram

forma material. Tidos como sábios.

humana, ela é Mãe. Sendo mãe de tudo aquilo que vive, inclusive do gênero humano, a Terra é fornecedora desse laço de parentesco que une homem a tudo que o circunda. Assim, o ser humano não apenas divide a existência com o mundo circundante, mas ambos fazem parte da mesma família. É justamente isto que a paisagem de cinema presente na primeira cena nos revela.

Figura 18 – Frodo na alameda

Fonte: Jackson (2001)

Na Figura 18, notadamente, Frodo é abraçado pelo verde, pela terra. E mãe é tudo o que abraça (ORTHOF, 1984). O hobbit, de fato, divide sua experiência de leitura com a Terra. É como se Frodo estivesse numa poltrona da sala de estar de sua casa ou na intimidade de seu quarto – enfim, em seu seio familiar. Estando sob a sombra da copa das árvores, Frodo está literalmente em casa. A paisagem revela uma cumplicidade, um acolhimento. Aqui, a Terra é mãe: acolhe no útero, no colo, na presença afetiva. Frodo está imerso na relva verdejante. Vislumbramos apenas parte do corpo do pequeno hobbit; a outra parte está mergulhada na verdosa alfombra que cobre o chão do Condado. É como se eles – hobbit e chão gramado – fossem praticamente um só. Frodo vive numa perspectiva em que é impossível “romper jamais, inteiramente, com o cordão umbilical pelo qual a terra nutre o homem.” (DARDEL, 2015, p. 48). A paisagem revela que há essa indissociabilidade, essa ligação “umbilical” entre ambos.

Tal indissociabilidade é trazida à tona nas cenas seguintes. Enquanto Frodo lê, um barulho se avizinha. O farfalhar das folhas e o som de uma carroça em movimento vão,

de pouco em pouco, se aproximando e uma voz cantarolando ganha cada vez mais proximidade. O pequeno hobbit segue apressadamente em direção aos murmúrios e encontra Gandalf (Ian McKellen). Depois de uma conversa inicial, Frodo sobe na carroça e continua o diálogo amistoso com Gandalf. A conversa revela características interessantes dos hobbits, as quais reforçam a ideia de geograficidade originária, de relação quase parental deles com a terra. É que os hobbits são descritos como aqueles que não se lançam em aventuras, que nunca saem da zona de conforto, que sabem viver exclusivamente na segurança do enraizamento, sob o prisma do lar e do lugar (TUAN, 2012).

Os hobbits sabem, ensinam e sentem que sair é perigoso. Estar, de fato, em lugares cuja feição não lhes é familiar significa uma experiência aterrorizante. Por isso, podemos considerar os hobbits como “gente de lugar” ou, referindo-se aos antigos gregos, de “autóctones”, devido a essa relação intrínseca do ser com a Terra (DARDEL, 2015). Essa característica enraizante, que gera gente de lugar, efetivamente, proporciona o entendimento de que um grupo humano ou um indivíduo é um só com o lugar de origem. Isso ligaria o ser a esse lugar de maneira tal que qualquer tipo de migração de uma sociedade ou de um sujeito seria impensável e, caso ocorresse, provocaria uma ruptura existencial profunda. Seria uma espécie de perda de substância, advoga Dardel (2015). Aqui as noções de ser-com e ser-no são muito mais fortes. Só é possível ser no lugar ou, mais propriamente, ser naquele lugar. Sair dali não é simplesmente mudar, mas desvanecer-se, perder a sua essência.

O diálogo entre Frodo e Gandalf vai além de evidenciar o caráter enraizante dos hobbits. Ele também revela como o Condado é isolado das outras áreas da Terra-Média. “A vida no mundo lá fora continua sempre como foi nesta época: cheias de suas idas e vindas, quase sem saber da existência dos hobbits...”, comenta Gandalf. A distinção “mundo lá fora” versus Condado já denota que a Terra-Média possui uma regionalização bem precisa, delimitada. Aliás, os mapas elucidam que as fronteiras das regiões não são fluídas, mas possuem limites rígidos, fixos e delimitados por “elementos naturais”, tais como rios e/ou montanhas. A chegada de Gandalf, ea revelação da distinção regional,

remete a um gênero de vida (LA BLACHE, 2012a) diferente, diverso em relação a outras áreas da Terra-Média61.

Figura 19 – Mapa da Terra-Média e suas principais divisões

Fonte: Jackson (2002)

A geografia originária dos hobbits, portanto, é relacionada a uma região, a uma determinada área, ao Condado. Aqui vislumbra-se o que ocorrerá em todo o filme: a relação estreita, salvo raras exceções, de uma específica região a um modo peculiar de viver a relação com a terra, a uma determinada geograficidade. Essas reiteradas correlações regiões-geograficidades sugere um ecoar do relato próprio da geografia regional francesa, o qual compreende as regiões congeladas, estáveis, imutáveis, isto porque são como personagens, individualidades (LACOSTE, 2005; BERDOULAY, 2017). De fato, na geografia lablacheana e de seus “seguidores”, a região era inseparável de seus habitantes e de sua cultura. É exatamente isso que se percebe em O Senhor dos Anéis: a cada região, um povo62 diferente; a cada povo, uma cultura distinta e, por conseguinte, uma maneira peculiar de geograficidade. Discutiremos isto mais à frente.

Voltando à narrativa, Gandalf, logo após o diálogo com o enraizado, encontra Bilbo em sua casa – uma toca hobbit. Literalmente uma toca. Envolta por uma pequena

61 Para compreender melhor como as divisões territoriais da Terra-Média estão estabelecidas, ver o artigo “Leituras do poder na Terceira Era da Terra-Média: um ensaio baseado em O Senhor dos Anéis” de Rafael Nunes (2017).

62 No mundo imaginário da Terra-Média, o termo povo também é utilizado, contudo é mais comum o uso de raça para cada conjunto de indivíduos do mesmo grupo. Aqui prefere-se usar o termo povo.

cerca, mas cravada no chão e com porta ladeada pelo verde vicejante de gramíneas e pelo aspecto floral de jardins bem cuidados. No centro dela, uma lareira flamejante. Janelas permitem que feixes de luz solar invadam a toca e a ilumine. Calor, aconchego, luz, sensação de bem estar, paz de espírito: desenho claro daquilo que Tuan (1996) chama de hearth63. Tal descrição nos levaria a pensar que Bilbo, como bom hobbit, seria a mais arraigada das criaturas e faria parte daqueles que comungam de uma geograficidade originária, de uma relação umbilical com aquela toca e a capacidade de lugaridade que ela contém. Contudo, não é isso que se revela.

Bilbo revela que a experiência de sair e de retornar expandiu sua visão de mundo. Ele não é o mesmo. Algo mudou e, contraditoriamente, nada mudou. As paisagens do Condado continuam as mesmas: verde em profusão, tocas-hobbit com suas minúsculas cercas vivas, o lago a espelhar o sol, hobbits trabalhando com a terra, árvores esparsas e esvoaçantes, estradas carroçáveis. Contudo, há algo distinto que somente os mais acautelados podem perceber: Bilbo é outro. Suas experiências em terras distantes, cheias de perigos e aventuras, foram essenciais para a sua transformação. De fato, como nos explica Tuan (2013), sair de seu lugar, contemplar paisagens diferentes e regressar para casa transforma aquele que regressou.

Não se trata simplesmente de franquear novos espaços, mas a possibilidade e a efetividade de que esses novos espaços proporcionam outras experiências, outras culturas, outras (re)interpretações sobre a vida, outros modos de compreender e viver a relação homem-terra. Não sem motivo, a visão de mundo do filho que retornou ao lar, às terras de sua gente já não é a mesma. É irremediavelmente outra. Bilbo, com efeito, não é mais um hobbit comum.

Os hobbits são descritos geralmente como aqueles que não se lançam em aventuras, que nunca saem da zona de conforto, que sabem viver exclusivamente na segurança do enraizamento. Eles compreendem que sair é perigoso, estar em lugares cuja feição não é familiar significa uma experiência necessariamente temerária, indica ser envolvido pelo medo e até mesmo pelo terror. Bilbo, por sua vez, não vive mais sob o

63 Normalmente, traduzido como “lareira”. Contudo, Pádua (2013) recorda que não há tradução que transmita o significado profundo do que Yi-Fu Tuan quer passar. A palavra pode significar “fogo” também. Afinal, foi diante de uma fogueira que os primeiros humanos se socializaram e criaram laços bem como a cozinha é pensada como o coração da casa, ponto de encontros afetivos. De qualquer maneira, há um sentimento de lugaridade, de calor humano.

signo de uma geograficidade originária. Suas pernas não estão mais presas a sua terra de origem, ainda que não haja sapatos para uma ligação estreita entre ele e o chão verde do Condado. A bolsa posta, olhar voltado para o horizonte, o cajado na mão e o corpo de costas para o lar são provas incontestes de que Bilbo quer ser um caminhante e não um enraizado, fixado eternamente no lugar de origem (Figura 20).

Figura 20 – Bilbo e as suas costas para o lar

Fonte: Jackson (2001)

Aqui, Bilbo está no entremeio em que a espacialidade revela um conflito existencial: ainda não está no local cobiçado pelos seus desejos de ser um caminho, mas também já não está no lugar de sempre (ONFRAY, 2009). A viagem de Bilbo, contudo, não se inicia neste partir. Não tem seu pontapé inicial no volver as costas para o lar. A partida começa muito antes. Se inicia no desejo, nas lembranças. Se inicia, na verdade, no contato com os livros e mapas. O desejo de rever as montanhas e os livros e mapas da montanha estão intimamente ligados. Em Bilbo, de forma enigmática, é o caráter fixo que o leva a colocar os pés no mundo, como explica Onfray (2009):

A viagem começa numa biblioteca. [...] Misteriosamente, ela tem lugar ali, na claridade de razões antes escondidas no corpo. No começo do nomadismo, encontramos assim o sedentarismo das prateleiras e das salas de leitura, ou mesmo do domicilio onde se acumulam os livros, os atlas, os romances, os poemas, todas aquelas obras que, de perto ou de longe, contribuem para a formulação, a realização, a concretização de uma escolha de destino. (ONFRAY, 2009, p. 25).

O erotismo pelo sair, de fato, antecede o movimento físico. São nos mapas e livros que se iniciam as viagens e os rompimentos existenciais. Eles são a bíblia dos errantes, dos nômades; são neles que se encerram os fundamentos de uma geograficidade originária e se iniciam a perspectiva de uma nova geograficidade, uma relação menos enraizante com a terra, uma outra maneira de viver, isto é, uma nova existência.

Figura 21 – Livros e mapas de Bilbo: bíblias de sua errância

Fonte: Jackson (2001)

Com efeito, procurar novos horizontes, inclinar-se a seguir direções novas significa buscar uma nova existência. Mudar de lugar é mudar a si mesmo. O mover dos pés, na verdade, é consequência de um mover do pensamento, ou melhor, do coração: “[...] o êxodo exteriorizou a emoção interior, o movimento intenso do seu eu para outros lugares” (DARDEL, 2015, 13). A saída exprime uma escolha existencial e, igualmente, afetiva, emocional.

Percebemos, assim, que o laço de geograficidade pode se modificar, que geograficidade não significa necessariamente enraizamento perpétuo. A sede por novos lugares e o tédio pelas áreas lugarizadas são sempre possíveis. Enfadado pelo lugar, Bilbo deseja a liberdade do espaço (TUAN, 2013). Deseja as montanhas, o rasgar de novos horizontes e uma amplitude a perder de vista; intenta a liberdade de escrever sem ser importunado. Com isso, Bilbo revela que a existência é feita de rotas e não somente de raízes (CRESSWELL, 2006).

Aliás, o fato de não se contentar com a imobilidade também pode significar a concepção de que é possível “passear” pelas geograficidades. Isto é, a rigidez de enquadrar um ser, ou toda uma sociedade, em apenas uma geograficidade, em uma relação única com a terra, é uma posição ingênua e não condizente com a realidade. Os seres humanos e as sociedades, de uma maneira geral, possuem múltiplas geograficidades, inúmeras formas de habitar a terra. Estas, inclusive, podem ser modificadas ao longo do tempo em razão de algum evento ou até mesmo coexistirem. Aqui também é possível contemplar um espraiamento de geograficidades, que se tocam e convivem, coabitam – sem necessariamente serem antagônicas. As geograficidades, apesar de bem definidas conceitualmente, são fluídas e não demarcadas rigidamente no que diz respeito ao empírico.

É exatamente isso que ocorre na vida de Bilbo Bolseiro. As relações originárias se dissolvem, ficam para trás. Há uma espécie de “desencantamento” do lar original, de perda do charme da estrutura mítica de mãe-terra que ligava Bilbo ao chão do Condado. Há também um despojamento progressivo da compreensão que só se pode viver naquele lugar, que somente ali ele poderia assentar o seu ser. Momentos marcantes, traumas, acontecimentos luminosos e agradáveis, experiências significativas em outros lugares são fragmentos de vida que podem auxiliar na compreensão dessa reviravolta, desse desencantamento pelas suas terras: “Na mesma existência, uma ruptura profunda pode quebrar a relação com a terra natal [...]” (DARDEL, 2015, p. 35). Com Bilbo, percebemos que conhecer outros ares, ir alhures, possibilitou uma mudança de cosmovisão e, consequentemente, de seu modo de habitar, de se relacionar com o mundo. Há agora a instauração, o erigir de uma nova geograficidade.

Depois da saída de Bilbo do Condado, outros hobbits fazem o mesmo. Mesmo ato com motivações distintas. Enquanto Bilbo se retira do seu lar para ser livre, autônomo, Sam e Frodo o fazem por outro motivo: salvá-lo do perigo de forças estranhas. Sua partida do Condado significa a defesa de sua terra. Sair, por mais contraditório que pareça, significa manter os laços com a sua morada. Inclusive, no início da trilogia, o próprio Bilbo explica o motivo de partir sozinho e, a princípio, não levar Frodo: Acho que viria comigo se pedisse, mas acho que, no fundo, Frodo ainda está apaixonado pelo Condado. As florestas, os campos, os pequenos rios...

É nítida a relação de “parentesco geográfico”, de vínculos afetivos com a terra, própria da geograficidade originária. Nela, o ser não apenas divide a existência com o mundo circundante, mas ambos fazem parte da mesma família. Aliás, nesta geograficidade,

A montanha, o vale, a floresta não são simplesmente um quadro, um “exterior”, mesmo que familiar. Eles são o próprio homem. É lá ele se realiza e se conhece. É deles que provém sua existência [...] (DARDEL, 2015, p. 49).

O vocabulário que descreve a relação de Frodo com o Condado é de caráter afetivo, vinculante. Não seria exagero dizer: uma relação da ordem do eros. É, literalmente, um vocabulário amoroso: apaixonado. De fato, Frodo, tamanha era a ligação, não sairia do seu lar diante de um convite de Bilbo. Apenas uma motivação, como vimos, o fez sair do Condado: o amor por ele.

Ao Sam e Frodo saírem da cerca que envolvia seu lar, eles não fazem a experiência de que tudo mais era apenas um jardim. Passeiam entre florestas, campos abertos, trigais, cascatas de águas límpidas em afloramentos rochosos e descansam, na companhia de uma fogueira, sob a proteção de uma árvore, que, na ausência do irradiação solar, não era sombra, mas abrigo, acolhimento, um simulacro do lar (Figuras 22 e 23). Todo este contexto revela, portanto, que não era, de fato, um jardim, mas ainda era lar. Não estavam mais abraçados pela cerca e pelas paredes de suas casas e, contudo, as feições da paisagem ainda são familiares. Aquelas paisagens, com elementos naturais em profusão, possuem laços de parentescos; elas são também, de certa forma, o seu lugar. A relação estabelecida ainda é de conivência. A geograficidade originária ainda é o vínculo estabelecido.

Essa relação de parentesco, de segurança com as árvores, os bosques e as florestas continua presente até mesmo quando os hobbits estão em perigo. Já depois de saírem do Condado, dois novos hobbits, Merry (Dominic Monaghan) e Pippin (Billy Boyd), juntam-se a Sam e Frodo. Os quatros hobbits, acusados de roubar vegetais, fogem de um fazendeiro e acabam saindo do itinerário inicial, feito por atalhos em bosques e florestas. Chegam a estrada, que deveriam evitar devido ao perigo que se utiliza dessa via para se aproximar do Condado. É na estrada que um dos Servos de Sauron, o Senhor do Escuro, sentem a presença dos pequenos hobbits. Estes, por sua vez, sentem o perigo no farfalhar das folhas secas, amarelas. Aqui, as folhas são como mensageiras. Avisam que o mal está à espreita. Se relacionam com os hobbits: revelam a geograficidade originária.

Figura 22 – Frodo e Sam na companhia do fogo e da árvore

Fonte: Jackson (2001)

Figura 23 – Sam e Frodo em campo aberto

Fonte: Jackson (2001)

Para fugir deste servo de Sauron, um espectro do Anel, os hobbits se escondem