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O FILME E A GEOGRAFIA: ESPRAIAMENTOS QUE NARRAM O MUNDO

2.3 EPIFANIAS PAISAGÍSTICAS: REVELANDO A GEOGRAFICIDADE

Se este é o panorama para os filmes, ele não muda em relação às paisagens. É possível, então, elencar autores que, indo de encontro com o “paradigma” arqueológico, propõem uma abordagem da coincidência, espraiante das paisagens, sobretudo aqueles que se colocam num horizonte fenomenológico da Geografia. Comentou-se já, de forma breve, sobre esse aspecto evidenciador, do entre no capítulo anterior com a perspectiva de Geografia de Eric Dardel. Agora, aprofundar-se-á mais neste aspecto, partindo do conceito de paisagem.

Entre os autores que seguem esta senda, pode-se citar Michel Collot (1986, 2014), um filósofo da paisagem. Com uma base manifestadamente fenomenológica, o autor relembra que a paisagem não está prioritariamente na forma como ela é apenas percebida, mas como lhe é conferida um sentido, fugindo, portanto, da mera percepção e aderindo ao horizonte de sentido que a teoria da paisagem possui na corrente fenomenológica. Collot (1986), assim, evidencia uma certa solidariedade, uma co-pertença entre a paisagem e aquele que a contempla e/ou a interpreta através de uma troca de valores, de uma relação de compreensão, na produção daquilo que Besse (2015a) chama de verdade geográfica.

Ainda para o autor francês, “a paisagem não é um objeto puro diante do qual o sujeito poderia estar em uma relação de externalidade; ela se revela em uma experiência em que sujeito e objeto são inseparáveis [...]”(COLLOT, 1986, p. 212)42. A paisagem, portanto, não é objeto puro que pode ser analisado sob uma lógica neopositivista, apartada daquele que a interpreta numa postura “desencarnada”, desarraigada e sem vínculos, numa atitude do estar-na-frente-da-paisagem e não nela. Pelo contrário, ela se revela, e tal revelação se dá na medida em que há uma espécie de envolvimento, de relação entre

42 le paysage n'est pas un pur objet en face duquel le sujet pourrait se situer dans une relation d'extériorité; il se révèle dans une expérience où sujet et objet sont inséparables (Tradução livre do autor)

a paisagem e aquele que se coloca no processo de interpretação, posto que não há separação entre eles. A paisagem se revela ao geógrafo e vice-versa. Isso só é possível porque a paisagem é pensada como uma experiência e não como um objeto que se pode isolar e submeter para análise ou ser submetida a estratégias quantitativistas de pesquisa. Isto posto, já é possível uma compreensão da paisagem como algo de caráter duplo, de interpenetração segundo o entendimento de Collot (1986), mas essa dimensão ganha contornos mais delineados quando o filósofo assegura que a paisagem “se apresenta como uma unidade de sentido, ela fala para quem a vê” (COLLOT, 1986, p. 213)43. Ou seja, no entendimento de Collot (1986), a paisagem é repleta de significados, se caracteriza como uma unidade de “emanação” de sentido ao entrar em contato com o geógrafo, que também se encontra com a paisagem. Compreende-se também que esses significados são “construídos” no próprio encontro com paisagem, isto é, esta revela, ela se manifesta a quem tem contato com ela, no contato com ela. Ou, para ser fiel às palavras de Collot (1986), a paisagem fala a quem a olha.

Tal compreensão gera outro corolário: se é no contato com a paisagem mesma que está a origem da significação, os sentidos que as paisagens revelam não estão além ou aquém delas; a significação da paisagem não reside em discursos fora da paisagem. De fato, aqui, não há separação entre o sentido e o sensível: ambos, residem na própria paisagem. Desse modo, indo contra o viés arqueológico, Collot (1986) argumenta que, na sua teoria paisagística, não há lugar para as paisagens hipócritas, paisagens que, usando a metáfora do pensamento não-revelativo, não revelam, nem manifestam, nem iluminam, mas encobrem e escondem: “seu dizer é um ocultar” e não revelar (PAREYSON, 2005). Em suma, as paisagens são essencialmente reveladoras e não emissoras de discursos que lhe são alheios.

Em outro trabalho, Collot (2014) reafirma essa compreensão a respeito das paisagens. Antes disso, porém, anuncia que, por muito tempo, os autores que trabalharam com a teoria da paisagem valorizaram demasiadamente duas compreensões do conceito, a saber: a) como um modelo que a arte deveria imitar e b) uma representação pictórica. Pode-se associar essas compreensões, respectivamente, ao viés mimético e ao viés arqueológico. Essas duas compreensões, contudo, eram limitadas, no entendimento de Collot (2014). Para este, elas, apesar de opostas, possuíam a mesma problemática:

instauram uma relação de sentido único entre os componentes da paisagem. Nestas compreensões, o sentido estava somente na própria paisagem ou, de forma subjetiva, naquele que se colocava diante da paisagem. O enfoque era objetivista ou subjetivismo demais. Desse modo, a solidariedade, a relação comentada acima não existiria, seria inviável, posto que haveria a supremacia por parte de um componente.

Collot (2014), então, postula uma terceira via, uma outra maneira de compreender a paisagem. O autor postula, pois, a paisagem como fenômeno. Nesta compreensão, a paisagem “não é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista.” (COLLOT, 2014, p. 18). Esta concepção intenta, explica o autor, dirimir a dicotomia do pensamento ocidental, abordada mais acima, que insiste em separar o sensível e o sentido, o visível e o invisível, o sujeito e o objeto, entre outras dualidades próprias da modernidade (COLLOT, 2014; MERLEAU-PONTY, 2004; MARANDOLA, 2010; HUSSERL, 2012). Assim, o autor francês propõe restabelecer esses termos que a tradição filosófica pensou como antagônicas ou sendo uma superior à outra. Para Collot (2014), com efeito, um novo pensamento sobre a paisagem pode proporcionar isso, posto que ela instauraria essa conexão, essa relação. De fato, colocar a significação da paisagem no visível, como sugerem Dal Gallo (2015), Haar (2007) e o próprio o autor francês: “a experiência sensível é fonte de sentidos” (COLLOT, 2014, p. 21), elucida essa capacidade do viés espraiante da paisagem. Esse sentido, essa significação impressa no encontro sensível. Para sustentar essa ideia, o autor se baseia nas ideias do filósofo Maurice Merleau-Ponty, já comentado, e do geógrafo Augustin Berque, ambos franceses44.

Em Merleau-Ponty, que construiu uma fenomenologia a partir dos fundamentos de Edmund Husserl, esta nova ideia de paisagem existe de modo pleno. Para este filósofo, “a paisagem aparece como a própria imagem do mundo vivido, do Lebenswelt” (COLLOT, 2014, p. 22). Assim, a paisagem seria a revelação do mundo, o aparecer do mundo com que os seres humanos se relacionam, a epifania da experiência humana sobre a terra, delineando uma concepção semelhante a de Berque (2017) já exposta. O pensamento de merleaupontyano, dessa maneira, faz eco ao que comentou-se no capítulo

44 A mesma ideia também reside em Eric Dardel, quem Collot (2014) cita em outros momentos, mas não neste aspecto.

interior: a paisagem faz aparecer, revela a geograficidade (DARDEL, 2015), o modo como os seres humanos são e estão o mundo.

Este fazer aparecer, esta capacidade revelativa que a paisagem possui fica evidente em outros trechos da argumentação de Collot (2014), posto que ele pensa a paisagem como um fenômeno revelador, que “diz algo”. Com efeito, “o fato de que uma paisagem possa, como se diz, ‘falar conosco’ mostra que há um logos no fenômeno em si.” (COLLOT, 2014, p. 22). O autor, apontando para o fato da paisagem possuir um logos, argumenta que ela pode ser compreendida como um texto, como algo capaz de anunciar significações; demonstra também a capacidade dela evidenciar significações em seu próprio ser e não em outras realidades fora da paisagem; e, igualmente, indica que há um conhecimento no próprio fenômeno da paisagem. Ela, por conseguinte, enquanto fenômeno de encontro, se basta e não necessita de outros “textos” ou discursos exteriores que lhe garantam a existência ou alguma explicação; ela possui essa dimensão do logos em si45. Dessa maneira, o autor nega, vigorosamente, os vieses arqueológico e mimético ao passo que assume o viés espraiante da paisagem.

O autor reforça, ainda, a ideia de relação, de solidariedade, do elo inescapável que o ser humano possui com o mundo, abordado no capítulo anterior. Efetivamente, pontua o autor francês:

Tal como se manifesta na experiência da paisagem, nossa relação sensível com o mundo não é a de um sujeito posto em frente a um objeto, mas de um encontro e de uma interação permanente. (COLLOT, 2014, p. 26).

A novidade aqui é que ele considera que este mesmo movimento de encontro e interação também se dá com a paisagem e, mais ainda, que a paisagem seria responsável pela manifestação dessa relação, ela seria uma marca, uma manifestação, refletindo o mesmo pensamento de Berque (1998, 2017). A paisagem, portanto, seria capaz de evidenciar a relação do homem com o mundo, com o espaço geográfico; a paisagem revela a geograficidade (DARDEL, 2015), uma conivência dos seres com o mundo (SAUTTER, 1991).

45 É preciso frisar que a palavra grega logos possui uma polissemia. Pode ser compreendida tanto como razão, racionalidade ou como palavra, verbo, texto e até mesmo narração. Como Collot (2014) não evidencia a sua compreensão, toma-se a liberdade de se fazer as duas leituras e ampliar o entendimento sobre a paisagem e sobre o que ela revela. Para entender mais sobre, ver a tese em Filosofia No princípio

era o logos: Linguagem, verdade e experiência em Walter Benjamin de Rafael Domingues Azzi, defendida

Ao postular que a paisagem tem um caráter revelativo e revela a relação homem-mundo, a geograficidade, Collot (2014), comenta sobre como esse caráter auxilia na eliminação da dicotomia sujeito/objeto. Citando o geógrafo Augustin Berque, o autor enceta essa argumentação, partindo do entendimento que as significações que as paisagens possuem não estão em si mesmas e tampouco fora delas, questão central na discussão que se levanta nesta tese. Efetivamente, como explica Gumbrecht (2010), a noção do sujeito desraigado, separado do mundo o reduziu à condição de produtor de sentido, posto que o mundo – a paisagem, por tabela – era apenas um objeto que o ser humano deveria inteligir constantemente. Tal noção retira o sentido do mundo, do encontro com a paisagem, ao promover um processo gradual de abandono e esquecimento da presença do sentido e absolutizar a busca incontestada de sentidos fora da paisagem (GUMBRECHT, 2010).

Além do mais, Berque, como já aludido, segue uma linha fenomenológica da Geografia e estudou como as sociedades orientais, sobretudo a japonesa, se relacionam com o espaço (BERQUE, 1987). Tal relação é distinta da interação homem-espaço da sociedade ocidental, a qual é baseada nas dicotomias da modernidade clássica, como explicam o próprio Berque (1897, 2017) e Collot (2014).

Com efeito, Berque (1987) relembra que a paisagem, no seu surgimento no Oriente, possui uma dimensão pautada numa relação intrínseca entre o objetivo e subjetivo. Berque, ainda, propõe que, por muito tempo, o sentido do termo da paisagem foi obliterado ao dar primazia ao sujeito. De fato, Berque (1987) faz coro aos autores já citados e investiga como o paradigma ocidental moderno separou o sujeito do objeto e o fenomênico do físico, caindo num “dualismo positivista”. O geógrafo francês opta, pois, pela articulação, pelo intermediário. Para o autor, com efeito, não há uma compreensão de que a natureza comanda a cultura e tampouco uma oposta a essa, na qual a cultura é completamente autônoma e se projeta sobre a natureza.

Na sua concepção, de fato, não há como pensar a paisagem sem ser pela ambivalência (BERQUE, 1987). No intento de superar as dualidades, os pensamentos de dilema, Berque (1987) chega a propor uma nomenclatura, produzindo neologismos para pensar essa ambivalência, essa confluência: mediância (médiance). Aqui, homem e paisagem estão em relação, participam um do outro Trata-se, pois, de unir ou – por que não? – espraiar a compreensão das representações subjetivas das paisagens e de seus

componentes objetivos, “ecológicos”. É compreender a paisagem, conjuntamente, fisionômica e simbólica. Ela, ao mesmo tempo, exprime um significante (simbólica) e é matriz de significados, ressoados após experiências com ela. (BERQUE, 1987)46.

A conclusão de Augustin Berque nesses estudos é que não se pode dissociar os componentes físicos da paisagem, sua fisionomia de suas ressonâncias existenciais naqueles que a experimentam. Desse modo, continua a explicar o autor, a dicotomia sujeito/objeto já não faz sentido dentro dessa compreensão de paisagem na senda de Berque.

Essa indissociabilidade também propicia pensar que as fisionomias das paisagens também são responsáveis pelas emoções, evocações e significações. De fato, “a paisagem implica um sujeito que não reside mais em si mesmo, mas se abre ao fora”. (COLLOT, 2014, p. 30). Assim sendo, não só a paisagem se revela ao sujeito, mas o sujeito se abre à paisagem, delineando a relação inescapável entre ambos, a relação intrínseca já comentada, posto que a subjetividade humana, desvinculada do imperativo do cogito cartesiano (MERLEAU-PONTY, 2004; AGAMBEN, 2017), não é uma substância autônoma, mas interação (COLLOT, 2014).

Essa abertura do sujeito à paisagem não significa apenas uma dimensão relacional, de interação, mas também implica num movimento de saída de si em direção ao mundo e aos outros, posto que a paisagem aponta o ser humano ao mundo (HOLZER, 1999). Pressupõe, pois, uma dimensão ética ao negar o fechamento em si mesmo, um narcisismo, um egocentrismo intelectivo, no qual o pensamento está associado à introspecção, como apregoava Descartes (MERLEAU-PONTY, 2004; COLLOT, 2014). Ou seja, essa abertura sugere que a compreensão das paisagens se baseia na relação com elas, num movimento de deixar-se ser encontrado por elas e lançar-se, de alguma maneira, a elas. Isto é possível, explica o autor citando Edmund Husserl e Merleau-Ponty, por que a paisagem se manifesta não aos corpos físicos (köper) e, sim, aos corpos vividos (leib), os quais criam um espaço em torno de si e permitem que a paisagem, enquanto manifestação e expressão do mundo vivido, alcance os leib. Assim, dentro do contexto de uma releitura da filosofia da encarnação merleaupontyana por parte de Collot (2014), é graças ao fato

46 Para superar a questão das nomenclaturas que governam o paradigma dualista e sugerir como funciona a ambivalência, Augustin Berque usa o termo “trajection”. A paisagem tem sempre essa dimensão “trajetiva”.

do ser humano ter um corpo (leib) que as paisagens podem encontrá-lo e vice-versa. O intérprete da paisagem, e todo ele, todo o seu corpo e não apenas o seu intelecto, o cogito cartesiano, é vital para o encontro com a paisagem que, serenamente, se expressa e se desvela ao envolver-se com o ser humano que, por sua vez, também se deixa ser envolvido, encontrado.

Esta dinâmica de abrir-se às paisagens e ser encontrado por elas possui, então, uma implicação metodológica crucial: é impossível interpretar uma paisagem, sobretudo se compreendida como no viés espraiante, sem se permitir ser tocado por ela, negando uma relação, impondo seu olhar sobre seus contornos. Significa, portanto, que a interpretação paisagística não se dá num contato invisível consigo mesmo, mas reside sobremaneira na relação, no encontro com aquele que interpreta, é sempre movimento do intérprete e, portanto, nunca egocêntrico e sempre excêntrico (MERLEAU-PONTY, 1999). No caso da tese em tela, que intenta interpretar e compreender as paisagens de cinema da Trilogia do Anel, é necessário esse movimento de lançar-se, de permitir que a paisagem encontre seu intérprete, fugindo de uma postura meramente introspectiva.

Esta última dimensão da paisagem é também compreendida por Ferreira (2017) que, sustentado por Marandola Júnior (2014), comenta que o conceito de paisagem não pode ser compreendido dentro de uma perspectiva dicotômica, com um caráter externo e outro interno, posto que “ela expressaria em essência o ser-e-estar-no-mundo” (FERREIRA, 2017, p. 65). Os autores, dessa maneira, fazem eco aos pensamentos de Coltot (2014) e Berque (1987) abordados anteriormente: a paisagem tem a ver com a relação do homem com o mundo e, igualmente, não pode ser inserida nas grandes dicotomias da sociedade moderna ocidental. Ferreira (2017), contudo, além de partir desse princípio “antidualista”, também identifica nas tradições críticas da Geografia a compreensão da paisagem como um artefato do mundo predicativo, uma ideologia, uma produção histórica ou um espaço geográfico “historicizado”. Isso se deu, explica o autor, devido a inserção da paisagem na Geografia ter sido realizada pelo campo da arte e, tal inserção, proporcionou um entendimento sob a égide da “representação”.

Trata-se, pois, da mesma crítica construída anteriormente sobre o viés arqueológico, que enxerga a essência da paisagem fora da paisagem, ou, nas palavras do autor, a tentativa de “buscar o sentido por trás daquilo que se manifesta na representação” (FERREIRA, 2017, p. 65). Essa compreensão propiciou, como já exposto com Collot

(2014) e Merleau-Ponty (2004), um entendimento de um ser humano fora da natureza, que não possuía uma relação inescapável e, portanto, desarraigado e desvinculado do mundo. Com essa crítica ao caráter representacional e a uma visão desarraigada do mundo, uma “despoetização do mundo”, o autor pretende dar um passo a mais e compreender, de fato, a natureza da paisagem, em vista do que ele chama eidética da paisagem. Isto é, procura pelo eidos (essência em grego) da paisagem (FEREIRA, 2017).

Qual é, portanto, a essência da paisagem? Para esta pergunta, Ferreira responde, juntamente com Marandola Júnior (2014), a paisagem é “expressão do mundo-da-vida (Lebenswelt), isto é, a efetividade do ser-e-estar-no-mundo”. (FERREIRA, 2017, p. 66). É interessante notar que Ferreira (2017) usa praticamente as mesmas palavras de Collot (2014) e associa a paisagem ao mundo vivido, ao mundo da experiência vivida.

Ademais, assim como Collot (2014), Ferreira (2017) sugere que é preciso, para compreender realmente a paisagem e sua essência, “ouvi-la, deixarmos ser invadidos por ela para que possamos viver a plenitude do ser-lançado-no-mundo” (FERREIRA, 2017, p. 68). Desse modo, o autor relembra também a premissa metodológica inspirada por Collot (2014): não se pode, baseado num pensamento calculador, se debruçar quantitativamente sobre a paisagem, caso se queira compreender realmente a paisagem. Nesta senda, uma ideia de paisagem sistematizada e racionalizada não só padece, posto que é totalmente carente de sentido, como também é impossível. A experiência da paisagem dificilmente pode ser exprimida apenas por dispositivos unicamente racionais, por construtos teórico-científicos desvinculados da experiência. Daí que

A paisagem enquanto linguagem geográfica (esta que nos une ao mundo), não pode ser entendida em uma racionalidade homogenia, ao contrário, a partir da orientação fenomenológica, faz emergir um mundo familiar com signos e objetos próprios significantes. (FERREIRA, 2017, p. 72)

É de enorme complexidade, então, expressar sobre a experiência, pois ela transpassa e transborda o ser humano e todas as áreas do seu ser, sobretudo o seu intelecto. E aqui apenas a Filosofia e, sobremaneira, a Arte podem se aproximar desse empreendimento de comunicação da paisagem, pois somente elas podem dizer da experiência. A obra de arte é capaz disso “não porque representaria a paisagem, mas porque mostra a paisagem, [...] porque faz aparecer o mundo enquanto mundo” (BESSE, 2014, p 53). Aqui, uma jocosa contradição eclode: se a paisagem entrou na Geografia pelo campo da Arte e isso desencadeou em compreensões meramente representacionais

e de caráter arqueológico, é a mesma Arte que agora possui a capacidade de auxiliar na comunicação da paisagem enquanto fenômeno, enquanto experiência, posto que ela, como vimos anteriormente, é responsável por revelar o mundo, expressá-lo.

Ferreira (2017), ainda, argumenta que quem descortinou esse horizonte de compreensão da paisagem na ciência geográfica foi Eric Dardel, autor já comentado, posto que ele propõe a relação homem-mundo de maneira vigorosa, compreendendo o ser humano não desvinculado, mas sim fundado no mundo da vida, lançado no Lebenswetl.

Desse modo, na senda dardeliana, a paisagem tem como ponto fulcral a relação homem-terra. O seu coração, seu âmago, é a maneira como o ser humano habita geograficamente a Terra. A paisagem exala a geograficidade, expressa essa relação homem-terra. Daí ela ser movimento e não só pausa; ser som e não apenas vazio sonoro; anunciar tudo aquilo que implica na existência humana sobre a terra, na geograficidade. Em O Senhor dos Anéis, a título de exemplificação, é notório que como a experiência sonora das festas (sons de risos, de instrumentos de música, de vozes altas e alteradas, provavelmente pela bebida, etc) no Condado revelam a paisagem hedonista (SAUTTER, 1991), a experiência de gozo, de alegria, um modo de habitar poeticamente aquele lugar (BUTTIMER, 1982b). A música também compõe a paisagem e delineia uma geograficidade mítica, de relação umbilical com a Terra, de um elo amigável, isto é, literalmente uma tertúlia.

Figura 15 – Festa no Condado

É perceptível, então, como a paisagem de cinema da trilogia exala a geograficidade, manifesta essa relação ser-mundo. Outros autores, aliás, reforçam essa compreensão. Usando os mesmos pressupostos de Dardel, Besse (2011) também compreende a paisagem nesta concepção de experiência, que está associado ao conceito de ser-no-mundo, de ligação existencial entre o ser humano e a Terra. Assim, citando o autor americano John Brinckerhoff Jackson, teórico e historiador da paisagem, Besse (2011) explica que a paisagem, fugindo do entendimento da leitura crítica de inspiração neomarxista, é condição determinante do ser-no-mundo e não pode mais ser considerada fora do mundo vivido, posto que o ser humano se sabe incluído na paisagem, ou, para