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O FILME E A GEOGRAFIA: ESPRAIAMENTOS QUE NARRAM O MUNDO

2.1 O FILME COMO NARRATIVA E OS VIESES DAS GEOGRAFIAS FÍLMICAS FÍLMICAS

As obras cinematográficas são linguagens artísticas peculiares. Diferentemente das outras, o filme pode ser considerado moderno por excelência. Isso ocorre porque ele nasce dissociado do sagrado, das religiões naturais e/ou abraâmicas bem como porque ele nasce ligado à técnica, ao aparato fotográfico, a uma máquina. É importante notar que, apesar do desligamento com o sagrado, o Cinema possui um valor mítico (LIPOVETSKY & SERROY, 2010). Contudo, o que interessa notar mesmo é o segundo aspecto, a proximidade com a técnica. No caso do Cinema, explicam os Lipovetky e Serroy (2010), foi a técnica que inventou a arte e esta, por sua vez, estimula o uso da técnica. Ambas são indissociáveis. Benjamin (2012) comenta esse aspecto de indissociabilidade ao rechaçar o conceito de arte fundamentalmente anti-técnico.: “a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico [...]” (BENJAMIN, 2012, p. 100). É impossível, então, separar arte e técnica; não há essa distinção. Pensar, pois, a obra cinematográfica como sonho ligado à máquina é cada vez mais comum (RAHDE, 2008). O filme, portanto, é uma obra do entre, de um espraiamento e não da secção, da fragmentação. Ele sempre segue a trajetória do espraiamento, numa dinâmica oscilante: o lúdico e a pesquisa, o espetáculo e o laboratório, a decomposição e a reprodução de movimentos – sendo esses próprios

elementos dinâmicos e não estanques, permeados de mestiçagens, de hibridismos27. O fato é que o filme é um espraiar múltiplo de arte e técnica.

Morin (2014) também comenta acerca disso. Em seu entendimento, o cinematógrafo traiu seus criadores. Criado para ser unicamente técnica, acabou criando arte. Feito para captar o “real”, o equipamento acabou por ser desviado de seu intento original e deu aos filmes um teor onírico, artístico. Ainda que o nascimento do cinema se deva ao cinematógrafo, aquele logrou êxito não apenas pela exibição de imagens, mas pela capacidade narrativa dessa exibição. De fato, com o tempo, a técnica simplesmente cansa o público e o filme só obteve sucesso quando começou a contar histórias, quando se propôs a ser narrativo também. Isto é, o êxito dos filmes se dá na união técnica-arte (LIPOVETSKY & SERROY, 2010; MORIN, 2014).

Com efeito, não se pode conceber o filme como uma disjunção, uma separação entre os caráteres artístico e técnico. Usando o exemplo dos irmãos Lumière, pode-se perceber que o que causou espanto no público não foi a simples exibição de trens, mas o fato de acreditarem na narrativa de que o trem estava indo de encontro ao público. Ainda que não fosse feita aos moldes hollywoodianos, a narrativa já impactava e espantava graças a técnica. Na trilogia O Senhor dos Anéis, por exemplo, o mesmo é válido. Para se construir a narrativa, foram utilizados efeitos especiais até então inéditos bem como técnicas já conhecidas como a composição digital, o uso de miniaturas e de matte paiting (BRAUN, 2009). Na construção dos filmes elegidos para a nossa compreensão, arte/narração e técnica são indissociáveis. A nossa trilogia é feita de misturas, de espraiamentos também. Mesmo sob a ótica dos blockbusters, com um apelo à ideia de produto, O Senhor dos Anéis atesta a essa indissociabilidade arte-técnica. Nele, é pujante a ideia de que a produção cinematográfica, com o uso de técnicas, inclui também a inovação, a criação, a originalidade e, por isso, uma espécie de desvio, de despadronização, um mínimo de singularidade que a arte, a narrativa lhe confere (MORIN, 2014).

De fato, a narrativa “é um dos elementos mais constitutivos, mais universais da vida cultural e social” (LIPOVETSKY & SERROY, 2010, p. 300). Desde o início da existência com as cosmogonias, com os mitos – que são essencialmente geografias – o

27 Michel Serres (2001) e Bruno Latour (2016) relembram como, em todas as instancias, não há elementos totalmente puros. Todas as realidades são compostas por mestiçagem, hibridismos.

ser humano conta, narra o mundo. Com efeito, a oralidade, a epopeia, o teatro, a pintura, a música, os romances literários: tudo isso ao narrar – seja imageticamente ou verbalmente – oferecem à humanidade o relato de seus sonhos e suas angústias, de suas alegrias e esperanças. A narrativa, então, é essa dimensão primeira da vida humana. É impossível dissociar narrativa e existência. E é exatamente por isso que um trabalho de geografia humanista, por priorizar a existência humana, deve pensar nas narrativas. Afinal, a Geografia é sempre um dizer (BESSE, 2014a; CHAVEIRO, 2015), um relato, uma narrativa, um espraiamento de dizeres múltiplos.

O filme possui, igualmente, essa dimensão antropológica da narrativa. Não é uma simples exibição de imagens fotográficas, mas imagens projetadas em sequência, produzindo a narrativa que caracteriza um filme. Isto propicia o entendimento de que o filme não é meramente uma projeção de um conjunto de imagens. Seu caráter essencial é a capacidade narrativa, sendo esta última compreendida não como uma representação, um enunciado de um acontecimento, mas como o próprio acontecimento (FERRAZ, 2012). Essa dimensão antropológica é a que provoca a compreensão de que “ver um filme é saber que vão nos contar uma história.” (LIPOVETSKY & SERROY, 2010). Esse mesmo entendimento é reforçado por Mascarello (2006). Segundo este autor, é imprescindível pensar a conquista da narratividade. Citando Edgar Morin, o autor argumenta que essa conquista da narratividade causou a metamorfose do cinematógrafo em cinema, processo no qual houve a passagem da técnica de registro visual para uma arte propriamente cinematográfica, com o uso de técnicas, de códigos e convenções fílmicas para narrar. Os filmes, portanto, possuem uma potencialidade em contar, narrar as experiências do mundo contemporâneo em sua integridade.

Esse caráter narrativo do filme também é sustentado por Morin (2014), como já aludido por Mascarello (2006). Para o filósofo francês, o filme narra e não apenas descreve. Ele é uma narrativa e não tão somente um relatório descritivo. É uma forma de dizer o mundo e não simplesmente uma descrição objetiva do mundo, como muitos apregoam. Não se trata apenas do mundo capturado pelas lentes de uma câmera. Não é um mundo representado, mas é um mundo que ali está sendo dito, apresentado. Não só Morin (2014) possui este pensamento. Ranciére (2012) também faz coro àqueles que exaltam a narratividade como aspecto não só constitutivo das obras cinematográficas, mas como elemento central. Para o autor, o elemento central do filme não seria

exatamente a plasticidade das imagens ou a espetacularização destas, mas a faculdade de narrar estórias:

a grandeza do cinema não estava na elevação metafísica de seus temas ou na visibilidade de seus efeitos plásticos, mas em uma imperceptível diferença na maneira de colocar histórias e emoções tradicionais em imagens. (RANCIÈRE, 2012, p. 15).

Dessa maneira, ainda que, de forma evidente, existam referências a grandes discussões sociológicas – sejam atemporais ou contemporâneas, pontuais ou universais – bem como a possibilidade de produzir imagens exuberantes, anestesiantes com o uso dos efeitos especiais nas obras cinematográficas, o que faz de fato um filme é a sua capacidade de narrar, de contar estórias, de inserir dramas existenciais, de narrar emoções e sentimentos próprios da natureza humana, isto é, sua “natureza existencial”.

Essa natureza existencial do filme, promovida pelo fato dele ser uma narrativa, é reafirmada não só por Morin (2014) e Rancière (2012), mas também ecoa no pensamento de Lipovetsky & Serroy (2010). Para os autores, é justamente esse caráter que justifica o grande sucesso do cinema – que está em todos os lugares, em todas as telas28. Para além dos apelos comerciais, é a capacidade narrativa que promove a obra cinematográfica. O filme, então,

diz o que faz a condição e a existência humanas: o amor e o ódio, a vida e a morte, a felicidade e a infelicidade, a paz e a guerra, o bem e o mal, o riso e as lágrimas, o belo e o feio, a juventude e a velhice, o prazer e o sofrimento, a esperança e o desespero. (LIPOVETSKY & SERROY, 2010, p. 300-301).

O filme encanta, portanto, não somente pelas imagens exuberantes ou pelos efeitos especiais em demasia. Pelo contrário, explicam os autores, muitos filmes que se utilizaram dessas técnicas foram massacrados pela crítica. O que fascina e arrebata no filme – e a trilogia O Senhor dos Anéis é exemplo disto – é a capacidade de

Oferecer, aos olhos e ao coração dos homens de todos os países e de todas as culturas, os grandes arquétipos da narrativa “eterna”, contadas de maneira tal que cada um pode neles se reconhecer e se reencontrar imediatamente. (LIPOVETSKY & SERROY, 2010, p. 301).

O Cinema é essa máquina de narrar, de estoriar e o filme, seu produto. O filme oferece uma miríade de narrativas das experiências humanas; é histórias sendo contadas

28 Gilles Lipovetsky e Jean Serroy compreendem que há, atualmente, uma cinematografização do mundo, com o reino absoluto das telas nas relações humanas e o efeito cinematográfico em toda as telas, seja celulares ou televisão.

(FERRAZ, 2012; LÉVY, 2013). Para Lipovetsky & Serroy (2010), nenhuma outra arte, seja tradicional ou nova, cumpre de forma tão completa a função de narrar. A trilogia O Senhor dos Anéis é uma produção dessa máquina de narrarque se auto intitula “fábrica de sonhos”, pois é um sonho projetado, por técnica e magia. Aqui, argumenta Morin (2014), poetas, acadêmicos e técnicos são unânimes: o filme é sonho! Ele nos leva sempre por uma aventura errante, para peripécias do imaginário. As imagens fílmicas, de fato, são portais para o devaneio e o sonho (BULCÃO, 2013). Por isso é importante lembrar que, como mito e sonho, o filme – e aqui dar-se ênfase a trilogia estudada – não só cativa e fascina, levando os seres humanos a uma fuga da realidade. Sendo uma máquina de produzir sonhos, a trilogia também é um vetor de debates, uma motivação para a reflexão sobre a maneira de ser e estar no mundo, da geograficidade.

Aliás, nossa atração pelo imaginário, pelas ficções, argumente Desbois et all (2016), reside no desejo de compreender o mundo. Os mundos imaginários são, ao mesmo tempo, pontes para a reflexão do mundo e dispositivo para restauração desse mesmo mundo. Filmes imaginários e de potência mítica, como é a trilogia do Anel, são ao mesmo tempo proposta de um futuro e comentários do hoje. Um movimento duplo, um movimento espraiante: interpretação do agora e projeção do que há de vir (DESBOIS, GERVAIS-LAMBONY & MUSSET, 2016). Não é à toa que Bachelard, filósofo do sonho e da ciência, nos relembra que a imaginação quer sempre sonhar e compreender ao mesmo tempo, sonhar para melhor compreender, compreender para melhor sonhar (BACHELARD, 2003).

Com efeito, sendo sonho e devaneio, a trilogia O Senhor dos Anéis tem um quê daquilo que Bachelard (1994, 2001) chamou de “função do irreal”. Ainda que este filósofo tenha se dedicado, sobremaneira, aos textos poéticos, sua obra transcende à Literatura e toca toda e qualquer imagética criadora, tomadas pelas forças inebriantes do imaginário (VIEIRA, 2012; BULCÃO, 2013). E os filmes, sobretudo os de teor onírico, também possuem esta função do irreal: afastar-se da pretensa realidade, que é, na verdade, uma forma condicionada de vermos o mundo, e despertar-nos das conduções automáticas, gerar reflexão, pensar o mundo, ser inquietados. A imaginação, de fato, intenta e reclama um futuro (BACHELARD, 2006). Todo filme, portanto, é um sonho libertador: “Liberta das amarras do ontem, nos prepara um amanhã.” (VIEIRA, 2012, p. 220). É um futuro reimaginado; é o imaginar e o dar novas formas ao mundo. Assim, a trilogia do Anel

permite, então, um ligeiro escape, um distanciamento e, concomitantemente, propõe a refazer os contornos do mundo. Pensar sobre os filmes e, mais especificamente, sobre O Senhor dos Anéis, portanto, não é cair numa evasão, numa simples fuga da realidade. Ao contrário: é escapar dos automatismos e ter senso de realidade, pois as obras cinematográficas são um modo de falar do mundo (MORIN, 2014).

Essa compreensão sobre o filme é demasiadamente importante, posto que, para compreender a relação entre Geografia e filme, é necessário ter em mente que concepções – tanto a de Geografia como a de filme – estão em jogo. No primeiro capítulo, a Geografia foi apresentada como um modo de dizer o mundo, como a narrativa da geograficidade. Anteriormente também se apontou timidamente a compreensão de filme como narrativa sobre o mundo. Contudo, essas perspectivas não são as assumidas nas maiorias das análises que se preocupam com as geografias fílmicas. Geralmente, as concepções de filme utilizadas são de filme como cópia da realidade ou como um objeto trespassado de discursos extrafilme (AZEVEDO, 2007). Urge, portanto, apresentar uma relação que seja coerente com os entendimentos aqui estabelecidos. Assim sendo, propomos um terceiro viés, no qual tanto as paisagens como os filmes possuem um aspecto espraiante. Nele, imagem e discurso, signo e significado se coincidem, configurando o que chamamos de paisagens de cinema. Antes disso, discorreremos tanto o caráter mimético da relação Geografia-Cinema como a sua compreensão meramente arqueológica, a fim de negá-los.

A princípio, é vital compreender que o filme não é uma cópia da realidade. Esse caráter mimético foi negado por inúmeros estudiosos da relação Geografia – Cinema: Azevedo (2007, 2009), Lukinbeal (2005), Costa (2005, 2013), Cresswell e Dixon (2002), Ferraz (2012), Oliveira Junior (2014), Name (2013), por exemplo. Tal negação se dá pela crítica ao entendimento de que a imagem fílmica seria simplesmente fruto da captação de uma câmera cinematográfica. Essa posição mimética, argumenta Costa (2005), nega todo olhar daquele que manipula a câmera e impõe seu olhar sobre o mundo por meio da edição e da montagem, postulando que aquilo que está no filme é uma reprodução exata do que está no mundo. Assim, como explica Azevedo (2007), a câmara é entendida como um gravador objetivo da realidade. Vários autores criticaram essa postura e pouquíssimos são

aqueles que ainda sustentam essa argumentação, como explica o antropólogo Michael Taussig (1993)29.

Este pensamento de compreender o filme como uma reprodução do real, na verdade, como expõe Azevedo (2007), está amparado pelo ideário realista. De fato, há uma tradição científica, essencialmente moderna, a qual estão filiadas as “teorias miméticas de representação que percorrem a tradição da racionalidade ocidental” (AZEVEDO, 2007, p. 104). Esta tradição, por sua vez, reclama a si uma verdade universal para os modos de representação. Tal pensamento, explica a autora, é importado dos filósofos do Iluminismo para os quais a linguagem é um meio transparente de representar o mundo. Há, nesse pensamento, a ideia de mimese, ou seja, o pensamento de que a representação é tão potente que “copia” a realidade ou parte desta. Assim, tudo – sobretudo a paisagem – que é perspectivado dentro de cada representação equivale, no pensamento tradicional da racionalidade ocidental, como a realidade objetiva (AZEVEDO, 2007).

Este pensamento, aliás, foi sustentado pelo mito do cinema total (BAZIN, 1991). Tal mito apregoava que os filmes eram a realidade captada através de um aparato. Bazin (1991), de fato, explica que, por muito tempo, essa ideia da obra cinematográfica enquanto expressão da realidade era crível e tanto cineastas como estudiosos do Cinema defendiam a tese de que os filmes eram, realmente, a captação do real. A grande justificativa era de que houve um salto qualitativo dos filmes em relação às técnicas de representação anteriores, a saber: fotografia e pintura. Tal salto decorria da possibilidade do filme produzir uma impressão de movimento que, com o passar do tempo, passou a contar com a cor e o som, caraterísticas consideradas como reais. Assim sendo, o filme era tido como uma representação total, integral do mundo; uma reprodução perfeita e fidedigna do mundo (BAZIN, 1991). Desse modo, elucida Azevedo (2007), quando Bazin propôs o conceito de mito integral do cinema ele

[...] defendia que o cinema era o resultado de uma idée fixe, um mito orientador que animara a busca de uma ilusão perfeita e completa, perspectivando a câmara fílmica como instrumento não mediado para a captura de uma “realidade pró-fílmica” (AZEVEDO, 2007, p. 362)

29 É importante lembrar que Taussig (1993) pensa a faculdade mimética de modo mais complexo do que a posição mimética dos primeiros estudiosos do cinema nas ciências humanas. Taussig (1993) pensa a

E para que isso ocorresse seria necessário, então, que os cineastas apelassem para cenas com “garantias naturais”, ou seja, uso de cenários naturais nos ambientes diegéticos. Assim, a presença da natureza estava garantida. Neste mito, o filme seria uma espécie de dramaturgia da natureza e “passaria pela necessidade de um denominador comum entre a imagem cinemática e o mundo tal como é percebido pelo espectador” (AZEVEDO, 2007, p. 362). Em outras palavras, o registro presente na imagem cinematográfica seria necessariamente o equivalente ao mundo. Essa compreensão é fruto de um poder demasiado dado ao aparato cinematográfico ou, mais especificamente, à câmera. Como explica Azevedo (2015):

As abordagens tradicionais ao documento fílmico pela geografia, ao assumirem uma teoria do realismo cinematográfico em que os factos são retirados do mundo social por forma a revelar as suas estruturas essenciais de significado através de uma cuidadosa historiografia naturalista, encontram-se implicadas com a crença no poder cientifico da câmara para restituir a imagem do mundo e dos fenômenos (AZEVEDO , 2015 p. 82).

Desse modo, dentro do “mito do cinema total”, do realismo cinematográfico, a concepção de imagem cinematográfica estava baseada na crença da técnica que tudo pode restituir e representar, na fé no progresso científico que deu à câmara um status elevado, o de “copiar” o mundo. Este último, portanto, era “o modelo que a arte devia imitar, conforme a concepção tradicional de miméses.” (COLLOT, 2014, p.17). Era possível então, graças à autoridade do aparato da câmera, mostrar o mundo tal como ele era, produzir uma cópia dele.

Essa concepção sobre o filme ilustrada acima não se distanciava das interpretações sobre a paisagem. De fato, neste contexto, a paisagem era entendida como “a manifestação absoluta da presença do mundo em torno de nós, a natureza, para a qual lançávamos olhares admirativos e quase religiosos.” (CAUQUELIN, 2007, p. 26). Deste modo, a paisagem foi compreendida como uma exterioridade, “o mundo lá fora”. Trata-se, pois, do mesmo raciocínio do olhar o mundo pela janela comentado anteriormente. É pela janela, argumenta Cauquelin (2007), que se dá conta da paisagem.

De fato, conforme explica Azevedo (2007), a paisagem era compreendida como uma tentativa da representação rigorosa da terra; ela possuía o intento de ser um inventário exato do mundo. Era o mundo em exibição, um conjunto de objetos para visualização, um verdadeiro teatro do mundo moderno que os olhos ocidentais e racionais deram um valor mimético. Fruto de um realismo, essa ideia de paisagem foi

potencializada por diversas construções de panoramas e dioramas que, ao serem edificadas sob uma égide da tridimensionalidade, proporcionava a ideia e a sensação de mobilidade, dado a inspiração do realismo (AZEVEDO, 2007). Essa inspiração do realismo é vital nessa compreensão de paisagem dentro deste viés, por que o realismo tem caráter ideológico ao passo que serve para ocultar e porque pode ser considerado como “uma questão estética que se concentra na relação entre o que é retratado na mise-en-scène e como o espectador recebe essa representação.” (LUKINBEAL, 2005, p. 16-17, tradução nossa)30. Desse modo, a paisagem, neste viés, era o retrato do mundo, completamente disponível aos olhos de seu observador; era uma espécie de evocação de caráter original do ambiente físico.

Essa concepção, segundo Azevedo (2007), vem de escolas tradicionais da Geografia Regional. Para estas escolas, as paisagens eram “janelas de enquadramento para a celebração de complexos holísticos e harmoniosos de natureza/cultura” (AZEVEDO, 2007, p. 272). O mundo, a relação entre a natureza e a cultura, era visualizado pela paisagem. Como já exposto, essa compreensão de paisagem, na crítica de Cosgrove, era uma unidade atemporal, algo que sempre esteve lá ao alcance de quem lançasse um olhar, negligenciando o caráter de construto sociocultural que foi abordado pelo geógrafo inglês (AZEVEDO, 2007).

Outras críticas antecederam à supracitada crítica de Denis Cosgrove. Além desta, os críticos da paisagem como janela para o mundo, argumenta Azevedo (2007), também chamaram atenção para o fato que esta concepção, a semelhança do que foi abordado no primeiro capítulo, reproduzia a noção de separação entre observador/observado, perpetuando a dicotomia moderna já elucidada. Além disso, não se trata apenas de uma separação qualquer, mas, como pontua a autora, uma cisão produtora de ponto de observação localizado fora do mundo e sob o controle deste mundo.

Não obstante essas compreensões, essa mera oposição binária entre mundo e reprodução do mundo é radicalmente criticada por diversos autores e, pelos motivos elencados, foi descartada nas geografias fílmicas, que rejeitou as teorias miméticas de representação justamente por que essas últimas eram frutos do objetivismo, da racionalidade pura, das meta-narrativas, ou seja, produtos do Iluminismo oitocentista que

30 “an aesthetic issue focusing on the relationship between what is depicted in the mise-enscene and how the viewer receives that depiction” (Tradução livre do autor)

celebra a universalidade de valores (AZEVEDO, 2007). Com efeito, para os geógrafos que investigam os filmes, estes últimos deixaram de ser compreendidos como janelas para a realidade e, delineando o segundo viés das geografias fílmicas, passaram a compreender as obras cinematográficas como representações enviesadas da realidade, um discurso, entre vários, sobre o mundo (AZEVEDO, 2009).

O segundo caráter do filme, por sua vez, é mais aceito e mais plural, rico em referências. Apesar da forte influência neomarxista, este viés foi fruto, na verdade, daquilo que Duncan (2004) denominou heterotopia. Desse modo, as influências vão além do marxismo e são variadas: tradição inglesa de geografia social, antropologia, linguística, história da arte e semiótica (CORREA, 2011). Trata-se da noção de