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PELA VOZ DO HUMANO, DIZER O TERRESTRE: A GEOGRAFIA COMO A NARRATIVA DA GEOGRAFICIDADE

1.1 DIZENDO A EXPERIÊNCIA DE SER E ESTAR NO MUNDO

A Geografia fenomenológica-existencial, como já aludido, surge como esforço de alguns geógrafos que postulavam que o Positivismo não explicava mais a realidade frente à diversidade social e cultural. Com a notícia do pretenso falimento do Positivismo, os geógrafos passaram, na década de 1970, a se basear no Marxismo e nas filosofias do significado, a Fenomenologia e o Existencialismo. A visão destes últimos culminou no

movimento que aqui denomina-se Geografia fenomenológica-existencial, responsável por uma nova visão no contexto da ciência geográfica.

Essa nova visão negava a concepção do espaço newtoniano, o espaço do geômetra e propunha o espaço vivido. Assim, o espaço não seria um mero recipiente no qual os objetos físicos e os eventos se localizam (BUTTIMER, 1982b). Não se pode, nessa abordagem geográfica, conceber o espaço como um tabuleiro ou superfície em que se deposite objetos, pois os espaços

“[...] não são vazios abandonadas aos quais se atribuem, por vezes, qualidades e significados, mas são contextos necessários e significantes de todas as nossas ações e proezas. Então o espaço não é euclidiano ou alguma outra superfície ou forma geométrica, na qual nos movimentamos e que percebemos como separadas de nós.” (RELPH, 1979, p. 8)

Assim, o espaço não pode ser compreendido apenas através da observação e medição e, portanto, não se submete a simples matematização do mundo. Ele deve, pelo contrário, ser vivido para ser compreendido como realmente é. É preciso, pois, pensar o mundo de uma forma antipredicativa, isto é, aquela que é anterior a toda e qualquer atividade explicativa de caráter racional (HUSSERL, 2012). De fato, a experiência do espaço geográfico não está no mundo predicativo, o mundo da total objetividade. Na verdade, há o intento de romper com o projeto moderno que preconiza a clássica oposição sujeito/objeto. Assim, valoriza-se a noção fenomenológica de mundo vivido e, consequentemente, as experiências com o espaço e sua intersubjetividade.

Atualmente, há a concepção de que a Geografia fenomenológica se pauta exclusivamente na percepção. Contudo, para esta abordagem, o espaço é muito mais que a percepção do mundo; esta estaria mais vinculada a ideias ligadas ao psicologismo. Ideias estas também combatidas pelos geógrafos fenomenólogos. A grande ideia central da Geografia de cunho fenomenológico-existencial seria que “nós não apenas apreendemos o espaço através de nossos sentidos, mas vivemos nele, nele projetamos nossa personalidade e a ele somos ligados por limites emocionais” (MATORÉ, 1962, p. 22-23 apud RELPH, 1979, p.8). Ou, segundo o entendimento de Nogueira, seria

[...] pensar a Geografia a partir das experiências de quem vive e experiencia o mundo. O mundo não apenas pensado a partir da produção material da história, mas da relação existencial que liga o homem a ele. (NOGUEIRA, 2013, p. 84)

Assim, a compreensão do espaço não se limitaria a ser meramente percepcional. Lowenthal (1982) comenta sobre esse equívoco e afirma que qualquer experiência do mundo, por mais simples e direta que seja, é composta de muitos elementos, uma miríade de componentes e não apenas da percepção. Memória, lógica, fé e a própria percepção fariam a experiência. Assim, uma visão simplesmente perceptiva do mundo e/ou do espaço seria defeituosa, distorcida e até mesmo falsa (LOWENTHAL, 1982). Joan Nogué (2011) atesta esse histórico de superação da noção de percepção, defendida pela corrente geográfica conhecida como behovioral geography, em direção a noção de experiência ao explicitar que

A partir de 1970, a geografia humanística destaca novamente o papel do sujeito como o centro da construção geográfica, mas agora indo além da pura percepção. Entramos completamente numa geografia do mundo vivido, centrada em valores (...). Um conhecimento holístico, vivido e empático do espaço é buscado através de uma imersão em si mesmo, em geral seguindo os pressupostos da fenomenologia. (NOGUÈ, 2011, p. 30-31, tradução nossa)5

O espaço não é, portanto, simplesmente sensitivo ou sensorial; ele é vivido. E sendo vivido deve haver tantos espaços quanto experiências espaciais. Ele é também intersubjetivo. Essa é a pedra de toque da abordagem fenomenológica. O fundamento, portanto, não seria percepção, mas sim experiência.

O existencialismo também deu sua contribuição, pois postula que a essência está intimamente ligada à existência. Assim, primeiro existimos e só depois somos. Ou, como postulam Heidegger e outros autores, existimos enquanto somos. Em outras palavras: a essência está na existência. A união entre Fenomenologia e Existencialismo proporcionou à primeira um “objeto de análise”, a existência. De fato, a associação entre Existencialismo e Fenomenologia se deu de tal maneira: o Existencialismo proporcionou um material de análise, a existência com suas particularidades e singularidades, à Fenomenologia que, por seu turno, concedeu aos existencialistas um método necessário para investigar a essência da existência (PETRELLI, 2004). Esta associação é importante

5 A partir de 1970 la geografía humanística resalta de nuevo el papel del sujeto como centro de la construcción geográfica, pero ahora yendo más allá de la pura percepción. Entramos de lleno en una geografía del mundo vivido centrada en los valores (....). Se persigue un conocimiento holístico, vivido, empático del espacio a través de una inmersión en el mismo, en general siguiendo los supuestos de la fenomenologia. (Tradução livre do autor)

para compreender a contribuição fenomenológico-existencial ao campo das ciências humanas em geral e, em especial, à Geografia.

Efetivamente, como argumenta Holzer (2016), os primeiros geógrafos a se utilizarem da fenomenologia encontraram, a princípio, dificuldades devido a pluralidade que a própria corrente filosófica possuía. O encontro com o Existencialismo também foi importantíssimo nesse aspecto, pois, na concepção do autor, os existencialistas não estavam preocupados com questões de conhecimentos ou da mente humana como os filósofos da “fenomenologia pura”6. Aqueles se preocupavam, na verdade, com questões da vida cotidiana e não davam prioridade a questões eminentemente cognitivas da experiência.

Dessa maneira, a união entre a Fenomenologia e o Existencialismo adaptou o método fenomenológico a dimensão do mundo da vida ou mundo vivido (Lebenswelt), enfatizando os aspectos pré-reflexivos dos fenômenos, tais como a imaginação e a experiência. Geografizando esse postulado, o geógrafo deve se interrogar sobre “lebenswelt”, tomando consciência dele. Tal ato decorreria no debruçar-se nas experiências de mundo, sejam elas comuns ou extraordinárias, mas que agora se tornam conscientes (HOLZER, 2016; SEAMON, 2000).

Assim, essa combinação Fenomenologia-Existencialismo foi vital para a Geografia, posto que proporcionou o seguinte entendimento: o ser humano só pode ser compreendido – e compreender e/ou compreender-se – existencialmente, caso esteja no mundo. A noção de ser-no-mundo de Heidegger, portanto, colaborou demasiadamente para uma Geografia fenomenológica-existencial (MARANDOLA & HOLZER, 2014). De fato,

Encontra-se em Heidegger o tema da Terra como mundo no qual a humanidade existe, assim como o pensamento da Terra como lar originário a partir do qual a humanidade se realiza. A Terra é efetivamente apresentada por Heidegger como Heimat, quer dizer, como lar que cotidianamente se habita. (BESSE, 2015a, p. 124)

6 O arquiteto Wether Holzer (2016) e os geógrafos Anne Buttimer (1979) e David Seamon (2000) explicam que a Geografia se deparou com três posições distintas na Fenomenologia: a) fenomenologia pura; b) fenomenologia existencial; c) fenomenologia hermenêutica. Desse modo, mesmo sabendo da diversidade epistêmica que o termo evoca, optamos por utilizar “Fenomenologia” no singular e com maiúscula para se referir àquela corrente filosófica que foi incorporada ao corpus geográfico no século XX. Mesmo sendo diversa, seu rebatimento foi único na Geografia: valorização do mundo vivido e da experiência geográfica, como pontua Marandola (2013).

Isso se deve ao fato que, estando no mundo, o ser humano tem dele uma experiência própria, uma experiência de vida. Marandola e Holzer (2014) chegam a afirmar que a noção heideggeriana de ser-no-mundo está intimamente ligada à Geografia já que esse pensar filosófico tem aprofundado o sentido de lugar como essência da experiência geográfica.

Mas qual a grande preocupação de Heidegger? E qual é a sua colaboração efetiva para a Geografia, diante dessa preocupação? Vale a pena se debruçar brevemente sobre isso para melhor entender o que é a noção de ser-no-mundo. No entendimento de Dal Gallo & Marandola (2016) e Belo (2011), a grande questão heideggeriana não é, a priori, espacial, mas acaba por chegar na espacialidade. No caminho aberto por Heidegger, “presenciamos nascer a chamada filosofia do espaço, que tem entre seus temas principais a relação ontológica ser-lugar” (MARANDOLA & HOLZER, 2014, p.15). Heidegger, na verdade, está preocupado com a questão do ser, a qual seria, segundo o filósofo alemão, a grande preocupação da Filosofia. Mais especificamente, a questão heideggeriana seria a do ocultamento do ser. Em seu entendimento, várias instâncias da cultura ocidental proporcionaram o que ele denomina ocultamento do ser. A técnica, a metafísica e as ciências modernas impediram de enunciar a verdade, esta entendida como o sentido do ser, e o ser permanece “velado”. Heidegger, então, propôs pensar a existência a partir do Dasein7, que pode ser traduzido por presença ou ser-aí, e não de forma idealista (SEAMON, 2000).

Esse ser-aí tem a espacialidade como dado constitutivo, ou seja, o ser-aí necessariamente, como já dito, precisa do mundo para existir. Estar no mundo é uma necessidade ontológica: “O ser, para sê-lo, necessita do espaço” (NOGUERA & ARIAS, 2014, p. 27, tradução nossa)8. De fato, a essência do ser-aí está em sua existência e esta, por sua vez, se ancora ao mundo, se espacializando e abrindo lugares. Existir, então, é espacializar o ser. Buttimer (1979) explica de modo mais direto essa compreensão heideggeriana: “‘A essência da existência humana’, disse Heidegger, é ‘habitar’ (Wohnen), ou seja, viver em um estado de diálogo com todo o seu ambiente.”

7 Na língua alemã, Dasein indica um termo para a existência. Para uma leitura mais acurada, ver o artigo “O Dasein que somos no pesquisar em Geografia” de Antônio Bernardes (2016) no volume 6 da Revista Geograficidade.

(BUTTIMER, 1979, p.247). Assim, o ser-aí, em sua estrutura ontológica, é ser-no-mundo (BELO, 2011). De tal modo,

a partir de uma abordagem heideggeriana na Geografia, o mundo recebe um sentido preponderante, não mais como algo a ser apenas descrito categorialmente como conjunto de entes circundantes, mas em seu modo mais fundamental de existir. (DAL GALLO & MARANDOLA, 2016, p. 552)

Daí a pertinência de compreender o conceito de ser-no-mundo para a Geografia, posto que “o pensamento de Heidegger tornou se solo fértil para uma aproximação a uma ontologia da espacialidade humana.” (GERALDES, 2011, p. 63). A noção de ser-no-mundo não está ligada a um objeto no ser-no-mundo, mas a uma ligação unívoca, inescapável que o ser humano possui com o mundo. O ser no mundo, também, não se refere a uma localização geometricamente posta no planeta, mas, de fato, implica necessariamente na espacialidade inerente à existência humana, condição do ser humano no mundo. Este por sua vez não é apenas um conjunto de coisas que cercam o ser humano. Ele “não é um mero mundo de fatos e negócios, mas de valores, bens e ações.” (MELLO, 2005, p. 35). O mundo é, na realidade, sua base da existência, o único modo de existir. E existir, como já elucidado, está intimamente ligado à experiência do mundo, objeto dos geógrafos ligados à Fenomenologia.

O fato é que a própria expressão ser-no-mundo, sendo com e em no mundo (BERNARDES, 2016), já atesta, por si, essa indissociabilidade entre o homem e o mundo. Ambos só existem mutuamente. Um instaura o outro e vice-versa. Há, portanto, essa unidade entre o ser e o mundo, uma co-pertença, uma espécie de elo. Este elo não é simplesmente físico, no sentido que o homem apenas está sobre a terra como peças estão sobre um tabuleiro de xadrez. O elo a que se refere essa concepção é que o homem, além dessa ligação física, também tem consciência que a possui e faz parte dela (ROUX, 1999). Geografizando esse entendimento, é totalmente compreensível a perspectiva que julga essencial pensar o espaço geográfico como o lócus da existência humana, privilegiando a experiência humana sobre a Terra e as inúmeras formas de falar sobre ela, pois

[...] a Geografia tem uma afinidade fundamental ou vital com a concepção de mundo, visto que o conhecimento geográfico não se trata da adequação a um objeto, mas da compreensão do mundo desde a compreensão do ser-no-mundo. (DAL GALLO & MARANDOLA, 2016, p. 551).

Nesse sentido, como postula Claval (2014), quando se trata do aporte fenomenológico-existencial da Geografia o que se leva em consideração “não são as referências a Heidegger, mas a ideia que a disciplina deve ser centrada na experiência humana do espaço.” (CLAVAL, 2014, p. 249). Essa ideia é vital para a Geografia Humanista, pois valoriza a essência humana, posto que essa ligação com a Terra é parte da essência humana e, de certo modo, é o que a constitui como tal. Um exemplo da abordagem fenomenológica-existencial é a concepção de Augustin Berque. Para Berque (2017), o objeto da Geografia é “a Terra enquanto que humanizada” e o papel do geógrafo, então, seria “[...] perguntar pelo ‘enquanto que’, onde o físico e o social só valem em relação um com o outro” (BERQUE, 2017, p. 8). Desse modo, o autor francês segue a noção de Geografia da Escola Francesa e tal como Dardel (2015), como se explicará posteriormente, reatualiza a concepção de que é a relação entre o ser humano e a Terra o escopo da ciência geográfica. As semelhanças não acabam aí: ambos – Berque (2017) e Dardel (2015) – encontram em Heidegger uma referência valiosa para a Geografia e, exatamente por isso, pensam na indissociabilidade entre o ser humano e a Terra, como exposto. De fato, para ambos, o fator humano e o social imbricados é o cerne da questão geográficas; não é apenas a Terra, mas esta última “humanizada”. Desse modo, a Geografia, nessa abordagem, não se preocuparia simplesmente com a mera descrição da terra ou com inventariar os diversos tipos de paisagem e explicar as formas de organização do espaço. Trata-se, agora, de

[...] interrogar os homens sobre a experiência que tem daquilo que o envolve, sobre o sentido que dão à sua vida e sobre a maneira pela qual modelam os ambientes e desenham as paisagens para neles afirmar sua personalidade, suas convicções e suas esperanças. (CLAVAL, 2001). Ou, como explica de modo resumido Joan Nogué na introdução de Geografía Romántica de Yi-Fu Tuan (2015), essa perspectiva geográfica:

[...] devia facilitar ao geógrafo e a geógrafa uma maior e melhor abordagem para o estudo das relações que os seres humanos mantêm com o entorno que nos rodeia. Se buscava compreender muito melhor como os seres humanos se relacionam com seu entorno, como criam lugares e o imbuem de significado ao espaço geográfico e se gera o sentido de lugar. Os lugares não serão considerados a partir de agora como simples localizações nem nós sem formas ou pontos estruturadores do espaço geográfico que, muitas vezes, se concebe como espaço quase geométrico, topológico. O espaço geográfico será

concebido como espaço existencial. (TUAN, 2015, p. 2, tradução nossa)9

Dito isto, é possível chegar ao que se postulou no início: a Geografia é uma narrativa. Os geógrafos se utilizam de várias ferramentas, discursos orais e escritos, cartas, croquis, fotografias e filmes para tornar viva a descrição e explicação do mundo, fazendo uma ciência geográfica mais ligada ao mundo da vida, ao mundo vivido, posto que era a experiência do ser humano sobre/com a Terra o grande objeto da Geografia. Aqui se valerá tanto das ideias de Gomes (2017), Besse (2014a; 2014b) e Dardel (2015) para explicar essa concepção de Geografia.

Para Gomes (2017), a Geografia é uma apresentação do mundo. Essa ideia, contudo, não é nova. Desde a Antiguidade, a Geografia, explana o autor, se preocupa com procedimentos que possam auxiliar na descrição e compreensão da Terra (GOMES, 1997; 2017). Mais especificamente, a Geografia é responsável, desde os primórdios da cultura ocidental, pela criação de uma imagem do mundo e, consequentemente, a sua tarefa é apresentar o mundo. É interessante notar, inclusive, que, para o autor, a Geografia não nasce de discursos unicamente racionais sobre o espaço. Segundo o geógrafo brasileiro,

é provável que a Geografia tenha, na verdade, nascido nos cantos dos aedos gregos que declamavam sobre a aventura dos deuses, das potencias naturais vivas, sobre suas origens e sobre suas relações com o devenir da vida cotidiana. As cosmogonias da Antiguidade seriam, assim, os primeiros relatos geográficos gerados por este gênero de curiosidade sobre a ordem das coisas do mundo. (GOMES, 1997, p. 34). Assim, o princípio da Geografia, nos dois sentidos do termo, é anunciar o mundo, é narrar a experiência humana sobre/com a Terra. Seja falando de como os homens se relacionam com as forças sagradas/naturais ou como se deslocam entre reinos, evidenciando as feições fisiográfica da superfície terrestre, a narração foi o modo que os primeiros “geógrafos”, os aedos gregos, utilizaram para apresentar o mundo. Esses relatos constituíram as primeiras obras geográficas. Este é o mesmo entendimento de Claval (2010) ao comentar sobre as geografias espontâneas, aquelas baseadas em narrativas, sejam orais, escritas ou visuais, que eram transmitidas de inúmeras maneiras e eram

9 [...] debía facilitar al geógrafo y la geógrafa um mayor y mejor acercamiento al estúdio de las relaciones que los seres humanos mantenemos con el entorno que nos reodea. Se perseguía compreender mucho mejor como los seres humanos se relacionan com su entorno, cómo crean lugares e imbuyen de significado al espacio geográfico y como se genera el sentido de lugar. Los lugares no serán considerados a partir de ahora como simples localizaciones ni amorfos nodos o puntos estructuradores de um espacio geográfico que, demasiado a menudo, se concibe, a su vez, como espacio casi geométrico, topológico. El espacio geográfico será concebido como um espacio existencial. (Tradução livre do autor)

traduções das experiências terrestres dos seres humanos. Entre essas geografias, explica Claval (2010), encontram-se poesias alimentadas pelas experiências em lugares específicos, mitologias que relatam as forças e os seres divinos que supostamente governam o mundo.

Diante disso, apresentar o mundo narrativamente é a gênese da Geografia e aqui o intento é comprovar que essa tarefa ainda perdura. Mas, antes disso, continuar-se-á a seguir o histórico da Geografia como uma apresentação do mundo defendida por Gomes (2017) para fortalecer esse argumento.

Pode-se encontrar essa concepção de Geografia como anúncio do mundo, ainda que de forma germinal, em Estrabão10. Apesar de ser considerado o pai da ciência geográfica, devido a sua obra Geografia, Estrabão, explica Gomes (2017), não atribui a si esse título e confere a Homero todo o pioneirismo do conhecimento de ordem geográfica. De fato, “Estrabão, em sua Geografia, nomeia Homero o primeiro dos geógrafos, lembrando assim que a fronteira entre a geografia e o imaginário há muito é mais porosa do que imaginamos hoje” (DESBOIS et al, 2016, p. 241, tradução nossa)11. Tal ato se deve às descrições do mundo de Homero em a Odisseia e em a Ilíada, obras que Claval (2010) denominou geografias vernaculares da época arcaica justamente por serem descrições do mundo mediterrâneo, do cosmos grego. Apesar do enfoque nas descrições do mundo, já se encontra em Estrabão também a ideia de que a mera descrição da terra não basta para a composição de um trabalho geográfico. Segundo Gomes (2017), a geografia estraboniana visava aliar descrição e explicação, culminando na ideia de apresentação do mundo, ainda que em germe.

Esse entendimento de Geografia como apresentação do mundo perdura por toda a Antiguidade. Havia, na realidade, uma forte influência da filosofia estoica naqueles que procuram apresentar o mundo. Segundo Gomes (2017), até hoje essa influência estoica interfere na Geografia, sejam nas ideias de totalidade e unidade ou na compreensão de que é necessária uma observação criteriosa para desenvolver trabalhos de ordem

10 Estrabão foi um filósofo de concepção estoica que também produzia obras de cunhos geográficos e históricos. Nascido na atual Turquia, tinha cultura helênica e é tido por muitos como um dos pais da Geografia.

11 “Strabon, dans sa Géographie, nomme Homère premier des géographes, rappelant par-là que la frontière entre géographie et imaginaire a longtemps été plus poreuse qu’on ne l’imagine aujourd’hui (Tradução livre do autor)

geográfica. O que é vital frisar aqui é a contribuição deles para o entendimento da geografia como apresentação do mundo.

Não obstante a diversidade do pensamento estoico, é preciso salientar que o que proporcionou esse entendimento da geografia é o fato dos estoicos conceberem que há uma ordem no mundo. O mundo não seria repleto de caos, mas era, na verdade, um cosmo, uma realidade harmoniosa. Sendo assim, era possível apresentá-lo. Havia uma ordem no mundo por si mesma (AGAMBEN, 2013).

Urge recordar também que, segundo Jaeger (2010), o conceito de cosmo dos gregos tinha um sentido metafísico também, vinculado a uma ação transcendente, uma ação que procurava, antes de qualquer observação e compreensão dos fenômenos naturais, a questão da origem, da essência e do sentido do mundo. Jaeger (2010), ainda, corrobora a tese de Gomes (2017) ao explicar que os antigos gregos, sobretudo os jônicos, eram inspirados por essa ideia metafísica de ordem e de articulação universal do mundo, o cosmos, buscavam exprimi-las – ordem e articulação – na linguagem previamente estruturada das proporções matemáticas. Desse modo, se valendo de princípios