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Nossa pesquisa teve como principal objetivo analisar práticas de alfabetização buscando compreender como os professores lidavam com a heterogeneidade da turma, no que dizia respeito aos conhecimentos dos alunos sobre o Sistema de Escrita Alfabética (SEA). Especificamente, buscamos identificar e analisar: (1) as atividades propostas pelas professoras, investigando como foi tratada a heterogeneidade de conhecimentos sobre o SEA; (2) os recursos didáticos utilizados, investigando como a heterogeneidade das turmas quanto aos conhecimentos do SEA foi tratada; (3) os tipos de agrupamento dos alunos, analisando os critérios estabelecidos pelas professoras para organizarem os alunos durante a realização das atividades de apropriação do SEA; (4) os modos como as professoras interagiram com os alunos e mediaram situações de aprendizagem investigando como a heterogeneidade de conhecimentos sobre o SEA foi tratada.

Os estudos anteriores foram importantes porque trouxeram aspectos relacionados à heterogeneidade em sala de aula, conforme apresentamos nos primeiros capítulos desta Dissertação, mas optamos pelo recorte aqui apresentado. O que nos levou a perceber os avanços e também as limitações sobre como a heterogeneidade de conhecimentos sobre sistema notacional ainda vem sendo tratado.

Os dados produzidos evidenciaram que as rotinas desenvolvidas pelas professoras em sala de aula seguiam um planejamento semanal elaborado por elas mesmas, a partir de um modelo proposto pelas secretarias municipais de educação (de Jaboatão dos Guararapes e Lagoa dos Gatos), porém não havia um detalhamento especificando o que seria feito e nem com a indicação de horários para a realização de cada atividade, o que poderia permitir que elas pudessem avaliar melhor suas práticas e fazer os ajustes ou adaptações de acordo com as necessidades e/ou os avanços dos alunos.

Além disso, mesmo variando as atividades propostas (leituras diversas, atividades no livro didático, assistir filmes na biblioteca, etc.), utilizando diferentes recursos didáticos (quadro, livros, etc.) ou diversificando os agrupamentos dos alunos (dupla, equipe, individual, etc.), percebemos durante as observações de aula que não ficava claro e elas não sabiam explicitar os objetivos didáticos e as habilidades que pretendiam alcançar.

Os dados revelaram também que as professoras buscaram articular as aulas com atividades que contemplassem os diferentes eixos de ensino da língua, mas faltou investir em atividades de produção de textos para diferentes interlocutores, pois os alunos da professora Ana, por exemplo, escreviam para eles mesmos ou para a professora. Também faltou um trabalho com os gêneros textuais voltado para a exploração de suas características e finalidades, situações de uso, etc.

Faltou investir em atividades que contemplassem a oralidade (debates e outros gêneros discursivos), pois na turma da professora Betânia, por exemplo, os alunos não eram instigados a expressar suas opiniões ou conhecimentos sobre determinado conteúdo. Vimos que os alunos desta turma, mesmo quando questionados, não tinham tempo para refletir e dar qualquer resposta, já que a professora as antecipava. Também, nas duas turmas não houve uma rotina sistemática, ou seja, uma regularidade, uma frequência de atividades sequenciais, projetos didáticos ou uso de jogos.

Assim como na pesquisa de Sá (2015), as atividades propostas nas duas turmas foram diferenciadas, mas não estavam adequadas ou adaptadas às necessidades dos alunos em relação aos níveis de escrita mais elementares conforme evidenciou a referida pesquisadora. Tão pouco desafiavam ou estimulavam a reflexão sobre as temáticas abordadas. Em ambas as turmas faltou descentralizar a participação dos alunos alfabéticos e permitir que os demais participassem e exercitassem ou melhorassem suas habilidades em relação a leitura e escrita.

Na turma da professora Ana, por exemplo, os alunos alfabéticos não consolidados e os não alfabéticos participavam pouco das atividades de leitura (liam apenas quando ela os chamava para tomar a leitura) e de produção de texto coletivo. Respondiam aos questionamentos ou emitiam opiniões apenas quando solicitados. Na turma da professora Betânia eles ouviam as leituras realizadas pela professora, sem emitir opiniões durante as atividades propostas, copiavam do quadro para o caderno e não eram estimulados a produzir textos.

As duas professoras participantes desta pesquisa eram graduadas em Pedagogia e tinham vasta experiência na docência, pois começaram a ensinar desde o magistério, a pelo menos vinte anos atrás. Elas também já vinham participando de algumas formações continuadas oferecidas pelos respectivos municípios (Jaboatão dos Guararapes e Lagoa dos Gatos), e mais recentemente participavam das formações do PNAIC, desde 2013. Assim, a perspectiva era que elas

desenvolvessem práticas compatíveis com os estudos que vinham participando e se qualificando ao longo das formações, além das autoformações vivenciadas cotidianamente, ano após ano.

As duas professoras fizeram uso de variados recursos didáticos durante as atividades propostas, no entanto, percebemos que não havia um planejamento quanto à seleção e objetivos de uso de tais materiais, nem mesmo adequações que contemplassem tanto os alunos alfabéticos quanto os não alfabéticos. Na turma da professora Ana, por exemplo, os livros literários foram bastante utilizados e as leituras geralmente eram realizadas em voz alta pelos alunos alfabéticos, enquanto os alunos não alfabéticos ouviam ou treinavam a leitura silenciosa de livros diferentes, para posteriormente, a professora tomar a leitura individual dos mesmos. Já na turma da professora Betânia, assim como ocorria com uma das professoras investigadas na pesquisa de Silva (2014), geralmente quem lia os textos para a turma era a própria professora, e a justificativa para tal prática era que desse modo todos poderiam compreender o que havia sido lido e, consequentemente, poderiam responder as atividades a partir da leitura realizada.

Ainda sobre os materiais utilizados, nos chamou a atenção o fato de em nenhuma das aulas as professoras fazerem uso de jogos, já que havia alunos não alfabéticos nas turmas. O jogo é reconhecido como instrumento que facilita o desenvolvimento e a aprendizagem da criança, uma vez que possui como principal característica a ludicidade. Além disso, o jogo

[...] estabelece limites entre os participantes, criando situações que envolvem respeito mútuo, aceitação de resultados, criação de regras e oportunidade de trabalho em grupo, concretizando, assim, na sala de aula, a ideia de que a construção do conhecimento dá-se na interação do sujeito com o objeto de estudo [...] contribuindo para a elaboração de conceitos relevantes para o exercício de sua cidadania (PESSOA, MELO, 2011, pp. 32-34).

Nesse contexto, a análise dos dados parece evidenciar que as escolhas ou não-escolhas de certos recursos didáticos tiveram relação direta com as concepções de alfabetização das professoras investigadas. Pois apesar de oscilarem entre as perspectivas construtivistas e de letramento, ambas demonstraram em suas práticas uma maior influência dos métodos sintéticos.

Quanto à organização dos alunos durante a realização das atividades, as análises evidenciaram o que outras pesquisas (CRUZ, 2012; SÁ, 2015; SILVA, 2014) já haviam revelado anteriormente: nas duas turmas houve variação dos

agrupamentos. A professora Ana chegou a formar três ou quatro tipos diferentes de agrupamentos numa mesma aula, enquanto a professora Betânia só organizou de forma diferente os alunos da turma uma única vez, quando realizou uma atividade em dupla. No entanto, faltou às professoras, estabelecer critérios de agrupamento voltados para as necessidades dos alunos, promover mais interações entre eles (mesclar alunos com níveis próximos de escrita, e/ou níveis opostos) e, também, considerar os conhecimentos prévios de cada um, especificamente.

Tratando especificamente da professora Betânia, os dados produzidos evidenciaram que por não diferenciar com certa frequência a organização dos alunos na sala, para a realização das atividades propostas, a interação entre eles ficava reduzida a questões mais particularizadas, ou seja, questões pessoais, pois muitos moravam próximos uns dos outros, e, nesse sentido, as interações se voltavam para o compartilhamento de vivência fora do espaço escolar, sem relação com os conteúdos ensinados.

Assim como Leal (2005), entendemos que trabalhar com os alunos nos grupos (pequenos ou grandes grupos, duplas, coletivamente e/ou individualmente) permite formas de interação e mediação que auxiliam muito mais aos alunos, o que acaba sobrecarregando menos a tarefa do professor e, também, contemplando a todos eles ao mesmo tempo. Evitaria-se, assim, que os alunos não alfabéticos ficassem de fora, ou seja, não participassem das atividades propostas, conforme ocorreu na turma da professora Betânia e com uma das professoras investigadas por Silveira (2013).

Em relação ao tratamento da heterogeneidade de conhecimento dos alunos sobre o sistema de escrita alfabética, a professora Ana promoveu interações entre professora e alunos, dedicando atenção individualizada aos que demonstravam alguma dificuldade durante as explicações das atividades propostas ou dos conteúdos trabalhados, demonstrando respeito por cada aluno, sem deixar de lado o coletivo da turma. Percebemos que as atividades coletivas auxiliavam aos alunos não alfabéticos quando havia momentos de revisão e correção coletivas. Embora houvesse um menor investimento do tempo pedagógico por parte dessa professora para estes referidos alunos, vimos que a mesma se esforçava em fazer com que eles participassem, respondendo às perguntas durante as revisões ou votando junto com a turma para a escolha de nome de personagem em um texto produzido coletivamente, por exemplo.

A professora Betânia também buscou atender a heterogeneidade da turma quando propunha atividades diversificadas para sua turma, porém, preferia investir na escrita e na cópia, o que evidenciou uma prática mais tradicional, no sentido de que sua concepção de alfabetização a fazia “crer” que copiando os alunos aprendiam, e depois que tivessem dominado plenamente (ou quase) a escrita, estariam prontos para investir na leitura.

Muitos autores (DURAN, 2006; LEAL, 2005, MORAIS e LEITE, 2012; PERRENOUD, 2000) defendem que há diferentes estratégias exitosas no tratamento da heterogeneidade, inclusive, algumas já foram citadas ao longo da pesquisa: aprendizagem mútua a partir da mediação de aluno para aluno, além da interação professor-aluno; interações monitoradas e ensino ajustado às necessidades específicas; compartilhamento de atividades e organizações diversificadas tanto dos alunos, quanto dos espaços da sala; entre outras.

Tal qual estes estudos, nossos dados revelaram mudanças significativas, apesar de persistirem alguns equívocos e dificuldades das professoras em relação ao tratamento da heterogeneidade de conhecimento dos alunos sobre o sistema de escrita alfabético, se considerarmos que há ainda práticas que pouco valorizam as interações e mediação docente.

Diante da complexidade deste tema, afirmamos que outras pesquisas devem ser realizadas com um quantitativo maior de professores e alunos a fim de ampliar as reflexões tendo em mente outras práticas docentes, outros níveis de ensino, diferentes políticas de gestão pedagógica e concepções de ensino. Sugerimos também estudos com propostas de intervenção e ação que possam desviar o foco sobre o que falta fazer para o que já foi transformado de forma efetiva. Tais estudos poderão ser usados como base para a criação de novas políticas públicas de formação inicial e continuada, a fim de que os professores possam aprofundar os conhecimentos adquiridos na graduação e desenvolver práticas efetivas que atendam a heterogeneidade em sala de aula. Não só em relação ao SEA, mas também nos diferentes aspectos por ela abarcados.

Sendo assim, esperamos que o estudo aqui apresentado possa contribuir com a formação prática e teórica de professores alfabetizadores, e que as evidências aqui elencadas reflitam o quanto ainda precisamos compreender sobre os dizeres-fazeres que circulam nas salas de aula.

REFERÊNCIAS

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